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Passos N.69, Fevereiro 2006

SOCIEDADE - DEBATE: LAICISMO

Igreja livre e Estado limitado: o caso americano

por Paolo Carozza

O caráter religioso da cultura norte-americana e o papel da Igreja no debate político. Eis por que, nos EUA, é supérfluo um acordo entre Estado e Igreja

É difícil, para alguém que não morou algum tempo nos Estados Unidos, perceber o quanto nós, norte-americanos, somos – difusa e sinceramente – um povo religioso. Sem essa percepção, o hábito americano de invocar Deus em público pode parecer só um gesto cínico e instrumental, e as intervenções dos líderes religiosos em questões de interesse público pareceriam representar uma corrupção da política democrática.
Todavia, antes de tudo deve-se constatar uma realidade muito simples: aquilo que afirmamos em público é um reflexo da centralidade da religião na vida da grande maioria dos americanos. Conseqüentemente, aqueles que gostariam de eliminar as expressões religiosas da vida política e de censurar as intervenções públicas dos líderes religiosos estão ignorando e negando uma realidade que está na origem do significado da vida para muitas pessoas. Nos EUA também há muitos fatores de tal laicismo anti-humanista, mas nos últimos tempos tenho notado que na Itália esse fenômeno também tem sido muito difundido e, certamente, com um tom ideológico mais agressivo. Até o forte anticatolicismo presente em grande parte da história norte-americana nunca esteve, a não ser muito recentemente, em oposição à religião em geral.

Uma questão de história
Todavia, embora seja um ponto de partida necessário, o caráter religioso da cultura americana não é suficiente, sozinho, para se compreender o papel da Igreja no debate público nos Estados Unidos. É também uma questão de história, de direito, própria do conceito tipicamente americano de Estado e, em definitivo, do significado atribuído à razão.
Desde o início, a nossa história foi repetidamente marcada pela forte presença da experiência religiosa em todos os acontecimentos públicos importantes. Da fundação das colônias, por parte dos imigrantes religiosos, ao papel central desempenhado pelos cristãos na luta pela abolição da escravatura e, depois, no movimento pelos direitos civis, até aos atuais debates sobre o papel da América no mundo, a concepção religiosa da vida deu significado e razões ao modo de os americanos entenderem a liberdade, a igualdade, a responsabilidade e o bem comum. Ajudou na resposta às perguntas sobre quem somos e o que desejamos ser, perguntas que qualquer controvérsia pública importante não deixa de apresentar, pelo menos no nível implícito.

Liberdade religiosa
A nossa lei respeita e defende o papel central que a religião desempenha na vida pública. Temos uma concepção de largo alcance a respeito da liberdade religiosa, que reconhece como um elemento importante da liberdade das comunidades religiosas a possibilidade de falarem e agirem publicamente. Ao mesmo tempo, na América o conceito de “liberdade de expressão” é substancialmente mais amplo do que na Europa. A nossa tolerância em relação à presença de opiniões baseadas em convicções religiosas sobre questões sociais controversas nasce, em grande parte, da idéia de que se deve dar espaço de presença pública a qualquer opinião, mesmo que ela possa parecer impopular ou desagradável a alguns cidadãos. Isso é particularmente importante devido ao pluralismo de identidades e de práticas religiosas entre os americanos.
Não cabe ao Estado estabelecer o que é aceitável como discurso público, por isso a lei defende a liberdade de todos de expressar as próprias opiniões. Aqui existe uma estreita ligação entre a opinião dos americanos sobre o papel da religião nos negócios públicos e sua opinião sobre o Estado. Enquanto as teorias constitucionais do século XIX, na Europa continental, colocam em evidência o monopólio do Estado como encarnação do interesse público, os Estados Unidos pertencem a uma tradição constitucional muito mais propensa a ver o Estado como um ator limitado dentro do tecido social. Na Europa, a Concordata parece uma resposta à necessidade de se instituir uma série de defesas em favor da Igreja, contra a pretensão do Estado de deter poder e autoridade exclusivos e definitivos. Todavia, num contexto como o americano, onde a liberdade da Igreja é amplamente garantida pelos limites estruturais do Estado, a Concordata parece uma coisa supérflua. Um exemplo: não há necessidade de um acordo especial para garantir à Igreja o direito de instituir o seu próprio sistema educacional, pois o Estado não detém o monopólio da educação e não pode proibir a criação e a atividade de escolas religiosas.

Aberta troca de idéias
A nossa concepção de liberdade de religião ou de expressão favorece, de modo decisivo, um aberto e ilimitado intercâmbio de idéias, ao passo que o papel dos grupos religiosos no debate público é submetido a regras e limitações como (algo talvez surpreendente para os europeus) acontece em relação ao direito tributário americano. Entes sem fins lucrativos, como as organizações religiosas, somente ficam isentos de impostos se não se comprometerem politicamente. Em virtude disso, as Igrejas e as organizações religiosas estão sempre atentas em não tomar posições que possam favorecer um partido, em detrimento de outro, ou um candidato, em prejuízo de outro, concentrando-se mais nos princípios e nas questões reais que estão em jogo nos debates de interesse social. Essa, pois, é a linha de demarcação entre as intervenções geralmente aceitas, da parte de grupos religiosos, e aquelas consideradas ilícitas.
Implícita nessa distinção entre inaceitáveis tomadas de posição políticas e aceitáveis intervenções públicas está a convicção de que juízos sobre questões de interesse público baseados em convicções religiosas podem ser aceitos. Ou que sejam capazes de oferecer motivações aos outros, motivações em linha com a convicção do que é bom para toda a sociedade e de convencer os outros a respeito da verdade de tais afirmações.
Na América, como na Europa, mas talvez em menor medida, aqueles que negam que uma perspectiva baseada em convicções religiosas possa falar de modo adequado de questões de interesse público têm uma opinião bastante redutiva da capacidade da razão humana. Essa é, em definitivo, a questão em jogo nas disputas sobre a participação da Igreja no debate democrático público. Permitir e defender tal papel é uma afirmação da mais ampla e alta concepção da capacidade da razão de compreender, propor e apoiar a verdade.