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Passos N.69, Fevereiro 2006

IGREJA - DEUS CARITAS EST

A humanidade da fé

por Massimo Camisasca

No dia 25 de janeiro, foi publicada a primeira encíclica de Bento XVI. Dividida em duas partes. A primeira, sobre a essência do amor: “A unidade do amor na criação e na história da salvação”. A segunda, sobre a caridade eclesial: “O exercício do amor por parte da Igreja. Como comunidade de amor”

A primeira encíclica de um Papa, pelo menos nos anos mais próximos a nós, sempre teve conteúdo programático. Muitos se lembram da Redemptor hominis, de João Paulo II, que Dom Giussani escolheu como texto de Escola de Comunidade por um ano inteiro e que repetidamente retomou e comentou detendo-se, sobretudo, sobre a expressão: Cristo, centro do cosmos e da história.
Os mais velhos talvez também se lembrem da Eclesiam suam, de Paulo VI, que Giussani inseriu antologicamente entre os textos de meditação nos Três dias de Varigotti, em setembro de 1963, a poucas semanas de sua publicação. São textos programáticos porque, de um modo ou de outro, trazem uma leitura do estado da Igreja e do mundo na época e um programa de ação para o futuro.
Bento XVI quis mudar as coisas. Pelo menos, é isso que parece ao lançar como primeira, uma encíclica sobre a caridade. De que modo a caridade seria um programa? Em que sentido faria referência aos homens de todo o mundo contemporâneo?
Tentemos encontrar com profundidade as intenções do Papa e descobriremos que, na verdade, lá onde parece não deter-se em uma análise do tempo presente, detém-se, encontra a sua necessidade mais profunda: a reconciliação entre os desejos do homem e o amor, que parecem hoje irremediavelmente separados um do outro. Anders Nygren, em um livro de 1930, meritoriamente famoso, escreveu que não há possibilidade de encontro entre o ágape cristão (ágape é o termo grego com o qual São Paulo e São João chamaram o amor de Deus) e o eros grego (eros, em contrapartida, é o termo platônico que descreve o amor como atração, sobretudo entre pessoas).

O desejo
Colocavam-se, assim, as premissas de uma separação entre a vida, feita de desejos infinitos, e Deus que, segundo Nygren, queria reinar sobre a morte dos nossos desejos. Isto é o cristianismo? É isto o que a Igreja quer para seus filhos e para os homens da terra? A encíclica parte exatamente daí, invertendo a hipótese de Nygren, que já tinha invadido o mundo ocidental desde o final da Idade Média com o doce estilo novo e o seu amor angelical, o seu amor “distante”.
“Desejo” é uma palavra cara a Joseph Ratzinger. Isto se revela naqueles pólos para os quais ele está mais atento: os Padres de Igreja, em particular Agostinho, e os problemas do homem contemporâneo. Agostinho fez do desejo um dos fios condutores de sua filosofia e teologia. E não poderia ser diferente. Ele sentiu como poucos vibrar em si todos os extremos de cada desejo humano e desenvolveu todo o seu caminho de busca de verdade e de bem como ansiosa e inquieta peregrinação em direção a um lugar, a um “tu” em quem pudesse encontrar resposta. O desejo, de fato, o eros, é amor enquanto sente em si a falta do amado: é o amor que quer possuir aquilo que lhe falta, que se coloca em caminho, que aceita a luta. “Foi a humanidade que abandonou a Igreja ou foi a Igreja que abandonou a humanidade?” perguntou-se Eliot em uma obra muito conhecida. Toda a encíclica do papa se desenvolve no âmbito desta pergunta.
Não há dúvida que, em certa medida, seguindo Aristóteles por exemplo, a Idade Média cristã ocidental viveu um distanciamento entre eros e ágape, entre amor como desejo passional e amor como dom gratuito de si, ou caridade.

Eros e Ágape
Mas a Idade Média não foi só isso: basta pensar nos Padres orientais, nos grandes místicos como São Bernardo ou Guilherme de Saint Thierry, em São Francisco ou em poetas como Dante Alighieri. O Papa chega a afirmar que é mérito da revelação cristã, preparada no Antigo Testamento, ter rompido a distância entre eros e ágape e mostrado sua íntima necessidade recíproca.
O centro da encíclica é, portanto, uma leitura da história da salvação, na mesma linguagem usada pelos profetas bíblicos, que se remete às dimensões constitutivas do amor. Eros é amor enquanto desejo passional de um bem que falta. Eros é propriamente um desejo que tende à união com este bem. Desde que Deus criou o homem, pode-se dizer que eros entrou em Deus. Ele sente em si a nostalgia do nosso retorno a Ele, brama com paixão a resposta do nosso amor. Basta pensar nas palavras do capítulo XV do Evangelho de Lucas: a ovelha perdida e o filho pródigo.
Um amante deseja o amor da amada. Esta verdade revela-se ao homem progressivamente pela história da aliança entre Deus e o povo escolhido por Seu amor eletivo e total. A partir do profeta Oséias, a Bíblia nos apresenta o drama de amor entre Deus e o povo de Israel com imagens de intensidade perturbadora. O Cântico dos Cânticos, além disso, é o livro bíblico onde a natureza “erótica” do relacionamento entre Deus e a nova criatura encontra sua suprema expressão.
Se o amor é entendido como eros e desejo de união com o amado, torna-se claro como só com a encarnação do Verbo se revela plenamente o eros de Deus pelo homem. Mas este eros é, ao mesmo tempo, ágape, dom de si, exatamente porque é um amor que desce em busca do amado e se sacrifica pelo homem até o dom supremo da vida.
Diante de Cristo as palavras do Cântico sobre o mal e a morte do outro tornam-se compreensíveis: forte como a morte é o amor, tenaz como uma criatura do inferno é o ciúme.

Caridade, dom de si
É na Eucaristia – continua o papa – que de modo eminente contemplamos e descobrimos o mistério do eros-agape de Deus pelo homem. A imagem do entusiasmo de Deus por Israel torna-se uma realidade que, antes, era inimaginável. Graças ao dom que Deus faz de si, entramos em comunhão com seu corpo e seu sangue, somos unidos à sua vida. Aqui, mostra-se a familiaridade do papa Ratzinger com o mistério eucarístico, que se revela como a chave para a compreensão de todo o seu magistério atual.
Entende-se, assim, como a autêntica caridade cristã, longe de contrapor-se ao eros, é, na verdade, o seu cumprimento. O homem (na comunhão cristã) experimenta sobre si o amor apaixonado de Deus por ele, e só por isso pode doar-se livremente ao próximo porque vê nele a imagem do “Amado”: Jesus Cristo.
Assim termina a primeira parte da carta do papa.

A caridade em ação
A segunda parte, dedicada ao exercício da caridade pela Igreja, leva em consideração as estruturas caritativas nascidas nestes séculos dentro da comunidade eclesial, de modo especial a Caritas. Na sua intervenção na janela do Vaticano, em 18 de janeiro, o Papa – exatamente referindo-se à segunda parte da encíclica – afirmou que a Igreja “seja como Igreja, como comunidade ou como instituição, deve amar. E esta assim chamada “Caritas” não é simplesmente uma organização como outras organizações filantrópicas, mas uma necessária expressão do gesto mais profundo do amor pessoal com o qual Deus nos criou”.
Passos falará sobre a segunda parte encíclica no próximo número, propondo testemunhos de pessoas e de obras que são um reflexo de seu conteúdo.
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Deus Caritas Est
Propomos alguns trechos da encíclica

Introdução
“Deus é amor: quem permanece no amor, permanece com Deus, e Deus com ele” (1 Jo 4,16). Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a conseqüente imagem do homem e do seu caminho. Além disso, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula sintética da existência cristã: “Nós conhecemos o amor que Deus tem para conosco, e acreditamos nele”.
Nós acreditamos no amor de Deus – deste modo pode o cristão exprimir a opção fundamental da sua vida. Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande idéia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo. No seu Evangelho, João tinha expressado este acontecimento com as palavras seguintes: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que (...) todo o que n'Ele crer tenha a vida eterna” (3,16). (...)

Primeira parte:
A unidade do amor na criação e na história da salvação
Um problema de linguagem
2. O amor de Deus por nós é questão fundamental para a vida e coloca questões decisivas sobre quem é Deus e quem somos nós. A tal propósito, o primeiro obstáculo que encontramos é um problema de linguagem. O termo “amor” tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, à qual associamos significados completamente diferentes. (...)
5. Dois dados resultam claramente desta rápida visão sobre a concepção do eros na história e na atualidade. O primeiro é que entre o amor e o Divino existe qualquer relação: o amor promete infinito, eternidade – uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência. E o segundo é que o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. (...)
Isto depende primariamente da constituição do ser humano, que é composto de corpo e alma. O homem torna-se realmente ele mesmo, quando corpo e alma se encontram em íntima unidade; o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado, quando se consegue esta unificação. Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade. (...)
Mas, nem o espírito ama sozinho, nem o corpo: é o homem, a pessoa, que ama como criatura unitária, de que fazem parte o corpo e a alma. Somente quando ambos se fundem verdadeiramente numa unidade, é que o homem se torna plenamente ele próprio. Só deste modo é que o amor – o eros – pode amadurecer até à sua verdadeira grandeza. (...)
O modo de exaltar o corpo, a que assistimos hoje, é enganador. O eros degradado a puro “sexo” torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma “coisa” que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se mercadoria. (...)
6. Faz parte da evolução do amor para níveis mais altos, para as suas íntimas purificações, que ele procure agora o caráter definitivo, e isto num duplo sentido: no sentido da exclusividade – “apenas esta única pessoa” – e no sentido de ser “para sempre”. O amor compreende a totalidade da existência em toda a sua dimensão, inclusive a temporal. Nem poderia ser de outro modo, porque a sua promessa visa o definitivo: o amor visa a eternidade. (...)
12. A verdadeira novidade do Novo Testamento não reside em novas idéias, mas na própria figura de Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos – um incrível realismo. Já no Antigo Testamento a novidade bíblica não consistia simplesmente em noções abstratas, mas na ação imprevisível e, de certa forma, inaudita de Deus. Esta ação de Deus ganha agora a sua forma dramática devido ao fato de que, em Jesus Cristo, o próprio Deus vai atrás da “ovelha perdida”, a humanidade sofredora e transviada. (...) Na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si próprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvá-lo – o amor na sua forma mais radical. O olhar fixo no lado trespassado de Cristo, de que fala João (cf. 19,37), compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Encíclica: “Deus é amor” (1Jo 4,8). É lá que esta verdade pode ser contemplada. E começando de lá, pretende-se agora definir em que consiste o amor. A partir daquele olhar, o cristão encontra o caminho do seu viver e amar. (...)
13. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação. (...)
14. A união com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele Se entrega. Eu não posso ter Cristo só para mim; posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou tornarão Seus. A comunhão tira-me para fora de mim mesmo projetando-me para Ele e, deste modo, também para a união com todos os cristãos. Tornamo-nos “um só corpo”, fundidos todos numa única existência. O amor a Deus e o amor ao próximo estão agora verdadeiramente juntos: o Deus encarnado atrai-nos todos a Si. (...)
15. Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudá-lo, é o meu próximo. O conceito de próximo fica universalizado, sem deixar todavia de ser concreto. Apesar da sua extensão a todos os homens, não se reduz à expressão de um amor genérico e abstrato, em si mesmo pouco comprometedor, mas requer o meu empenho prático aqui e agora. (...)
16. É realmente possível amar a Deus, mesmo sem O ver? (...)
17. Com efeito, ninguém jamais viu a Deus tal como Ele é em Si mesmo. E, contudo, Deus não nos é totalmente invisível, não se deixou ficar pura e simplesmente inacessível a nós. Deus amou-nos primeiro – diz a Carta de João citada (cf. 4,10) – e este amor de Deus apareceu no meio de nós, fez-se visível quando “Deus enviou o seu Filho único ao mundo, para que tenhamos vida por meio dele” (1Jo 4,9). Deus fez-Se visível: em Jesus, podemos ver o Pai (cf. Jo 14,9). (...) Também na sucessiva história da Igreja, o Senhor não esteve ausente: incessantemente vem ao nosso encontro, através de homens nos quais Ele Se revela (...)
A história do amor entre Deus e o homem consiste precisamente no fato de que esta comunhão de vontade cresce em comunhão de pensamento e de sentimento e, assim, o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais: a vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impõem de fora os mandamentos, mas é a minha própria vontade, baseada na experiência de que realmente Deus é mais íntimo a mim mesmo de quanto o seja eu próprio*. Cresce então o abandono em Deus, e Deus torna-Se a nossa alegria (cf. Sal 72,23-28).
(...)
18. Revela-se, assim, como possível o amor ao próximo no sentido enunciado por Jesus, na Bíblia. Consiste precisamente no fato de que eu amo, em Deus e com Deus, a pessoa que não me agrada ou que nem conheço sequer. Isto só é possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento. Então aprendo a ver aquela pessoa já não somente com os meus olhos e sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo. O seu amigo é meu amigo.
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Nota: *. Cf. Santo Agostinho, Confissões, III, 6, 11: CCL 27, 32

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A gratidão do Movimento ao Santo Padre

Exatamente nas primeiras linhas da sua encíclica, o Papa nos lembra que “ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande idéia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”. O Papa acentua que Cristo toma toda a natureza humana – alma e corpo – e a leva a cumprimento; mostra, assim, a humanidade da fé, pela qual é razoável ser cristãos. A encíclica fala de um Deus que se deixa comover pela situação do homem, até o ponto de se tornar em Cristo “carne e sangue”, de tal modo que “sejamos envolvidos na dinâmica da sua doação”. Ainda hoje, o amor de Cristo se torna visível também “através de homens nos quais Ele se revela”. Quem aceita deixar-se envolver por esta iniciativa de Cristo, pode se tornar ele mesmo testemunha de caridade como dom comovido de si, isto é, como partilha do desejo mais profundo de felicidade dos irmãos homens e como tentativa de criação dos sinais e das obras de humanidade nova nas circunstâncias da vida. Nestes tempos de confusão, agradecemos a Bento XVI por ter lembrado a todos qual é a natureza do cristianismo, e aos cristãos a necessidade contínua de mudar para que a fé não se reduza a idéia ou a ética.

Julián Carrón, Milão, 27 de janeiro de 2006