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Passos N.68, Dezembro 2005

EXPERIÊNCIA / HISTÓRIAS - ÁFRICA

Ser africano, isto é, cristão

por Renato Farina

Pobreza, Aids, subdesenvolvimento. Estes parecem ser os únicos temas dos quais tratar quando se fala da África. Mas, ao contrário, existe algo que vem antes. Algo que compreende o homem

Em agosto, Passos promoveu um fórum para discutir a experiência do Movimento Comunhão e Libertação (CL) na África. A seguir, alguns depoimentos.

Kizito Omala, Kampala (Uganda), professor universitário de Estatística. Para responder à questão de como o Movimento influiu sobre a minha consciência, é preciso compreender a situação africana. Na nossa cultura, a identidade do indivíduo não conta, existe só o clã. O Movimento me ajudou a reconhecer a unicidade do eu. Antes eu não sabia o que fazer. No passado, o cristianismo, sobretudo entre os ingleses, era comunicado como se fosse uma cultura superior, anulando a nossa educação familiar e até a nossa língua tribal. No Movimento aprendi que a tradição do meu povo podia se realizar em Cristo. A proposta do Movimento leva à unidade da pessoa e com os outros. Entre nós, muitos são cristãos, mas vivem com medo, tanto que apelam para a feitiçaria. Mas o Movimento é uma companhia com a qual não precisamos ter medo. O cristianismo é o fato mais humano que existe.

Francis Nkafor, Lagos (Nigéria), administrador de uma escola. CL me ofereceu a oportunidade de encontrar a união entre fé e vida. Eu era católico, mas havia entrado em crise, não havia relação entre aquilo que era ensinado e o quotidiano da vida. Dom Giussani uniu em mim as duas linhas. Falando dos problemas africanos: para ser cristão, eu havia compreendido que devia abandonar a minha africanidade, a minha tradição. Isso foi inculcado em minha cabeça. Eu me sentia dividido. Ao invés, Giussani me ensinou que a minha tradição não podia ser jogada fora, eu não era uma brincadeira da história. Ele me fez compreender a realidade, Cristo se encontrou comigo aí. Seguindo Dom Giussani, encontrei a continuidade entre o cristianismo e os meus pais. O cristianismo não é europeu! É uma proposta que os europeus aceitaram há muito tempo. Agora é também nosso.
Um episódio revelador. Há alguns anos, num acidente, morreu um dos nossos amigos, o Fideles. Fomos à sua aldeia. Para o seu clã, aquela morte era inaceitável, era devido a forças ocultas, fruto do “trabalho” de uma pessoa má. Nossa posição era diferente. Nós e eles chorávamos, mas a consciência era diferente. Para eles, uma negatividade total; para nós, a relação com um Mistério amigo.

George Pariyo, Kampala (Uganda), professor universitário de saúde pública. O ponto fundamental do problema africano é a humanidade. O Movimento despertou e fez dessa consciência uma experiência; começamos a viver. Num momento de grande dificuldade política em Uganda, a fé se manifestou no ato de consagração a Nossa Senhora, em quem Cristo se torna a fonte de uma vida nova. O erro é pensar que a proposta cristã não é verdadeira para todos. “Nós temos uma só mulher; vocês, africanos, têm três!”, como se a mudança fosse impossível. Na Igreja se fala freqüentemente de inculturação, entendendo-a como o modo de se adaptar as coisas boas do cristianismo à cultura africana. Essa mentalidade reduz a fé a fato social, a mediação cultural. Um encontro, em vez disso, muda tudo; com paciência, mas muda.
Exemplos? A questão da Aids. Tratam-nos como animais irremediáveis, gente que não é capaz de controlar o instinto, e então o preservativo... Ao invés, a educação é possível, a nossa experiência nos diz que pertencer a Cristo cria lugares onde se vivem relações diferentes, e muda, por exemplo, o modo de conceber a sexualidade.

Peter Karanja, Nairobi (Quênia), engenheiro. Na África existe pobreza, Aids, subdesenvolvimento, etc. Mas não é isso o que nos define! A coisa fundamental é como nos vemos dentro dessa situação desesperadora. Há gente que vem de fora e quer resolver tudo. Assim, nos vemos diante de um duplo assédio, ocidental e islâmico. Ambos anulam a nossa tradição e oferecem uma resposta falsa à questão do Mistério que está presente em nossa tradição. A proposta do Movimento foi, para mim, antes de tudo, uma tomada de consciência do valor da minha pessoa, qualquer que seja a situação. Fui levado a ir às profundezas da minha vida. Não sou fruto do Acaso ou de um Mistério mau. Sou um dom, não um problema. Isso muda tudo. Só a partir dessa concepção é que podem surgir obras positivas, relações diferentes.

Priscilla Ndonga, Nairóbi (Quênia), bancária. Gostaria de abordar o ponto da educação, que vem sendo reduzida, nos vários projetos de desenvolvimento, a mera instrução, especialização. O povo acha que se tiver um pedaço de papel, vale mais. Essa educação não nos ajudou em nada. Talvez cheguem donativos, dinheiro, mas isso não muda nada, porque as pessoas continuam como antes, pois falta a educação do eu. No Movimento, somos ajudados a entender que devemos ser protagonistas, não como parte de um programa de desenvolvimento social, mas para a nossa plenitude, e isso acontece no encontro com Cristo. Para responder a essa necessidade educacional, nós, os pais, estamos nos reunindo e levantando escolas. Mas a verdadeira escola é a Escola de Comunidade (encontros do Movimento; nde). Sem a educação do “eu”, nada muda e nós não somos protagonistas de nada.

Veronica Ndung’u, Nairóbi (Quênia), diretora de escola. Vocês podem não acreditar, mas o primeiro problema da África não é a fome, mas o niilismo que invade o Ocidente e que está se infiltrando sobretudo no mundo universitário. Os jovens não têm mais esperança em nada. O que vale é cada um se virar por si, passar nos exames; se não fizer isso, está acabado.
A verdadeira necessidade, portanto, é de uma educação total.

Ester, Nairobi (Quênia), economista. Sim, a partir deste método nascem obras que atendem a necessidades verdadeiras. Graças ao encontro com o Movimento, meu irmão criou um “Banco de Alimentos”.

Padre Peter Kamay, Jos (Nigéria), professor no seminário. Infelizmente, há um outro fator a se levar em conta: a difusão das seitas pentecostais. E entre os meus alunos, futuros padres, há a tendência de imitá-los. Trabalham em cima do medo, e não fazem a experiência de uma humanidade plena. As coisas começaram a mudar, entre os meus seminaristas, quando trabalharam sobre o livro Por que a Igreja?, de Dom Giussani.

Francis. Os pentecostais, na Nigéria, respondem à violência islâmica com mais violência. Têm a mesma visão de fé; o cristianismo é um não-cristianismo. A fé não é uma proposta à pessoa, mas moralismo. O que falta é a identidade. Em Lagos, a nossa clínica e a nossa escola estão abertas a todos, inclusive aos muçulmanos. Cristo é de todos. Quem vem a nós passa a ver quem somos, e fica livre para se decidir.

Pascal Ouma, Nairobi (Quênia), professor de informática na universidade. Muitos africanos estão fragilizados: mesmo tendo uma retaguarda cristã, cedem ao niilismo e ficam impotentes diante do Islã. Isso porque a fé era apenas um aspecto da vida. Cristo, no entanto, é a realização da vida, de todos os anseios do coração. A experiência cristã, proposta de modo verdadeiro, total, é a maior ajuda contra o niilismo que aflige os homens no Ocidente, e também na África.

Veronica. No Quênia, mas também em muitos outros lugares, há uma grande penetração do Islã. Está se procurando introduzir a sharia, a lei do Alcorão, na Constituição.

George. Nossos alunos muçulmanos recebem ajuda dos países islâmicos; os professores recebem até dinheiro.
Kisito. Leciono numa escola cujo diretor é muçulmano; o anterior, que era católico, foi demitido. Há um forte movimento, por parte dos islâmicos, para ocupar a escola pública.

Padre Peter. O proselitismo islâmico não usa só o dinheiro (que no norte da Nigéria vem da Arábia Saudita), mas também a violência. Tivemos recentemente quatro grandes conflitos, com muitos mortos.

George. A penetração islâmica é sistemática, inclusive no campo da saúde. Visto que – com a crise econômica e em nome do liberalismo – todas as instituições sociais estão em decadência, as organizações muçulmanas entram e tomam conta. Desse ponto de vista, os países europeus não oferecem qualquer ajuda. Os fundos mundiais reduziram o apoio. E quem os substituiu? Os “particulares” muçulmanos. Por tradição, os católicos atuavam no âmbito escolar. Agora que cessaram os financiamentos, os muçulmanos chegam e tomam conta.