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Passos N.109, Outubro 2009

ARTE - HENRI MATISSE

Pintura à mão livre

por Cristina Terzaghi

Ao lado de Picasso, foi o pintor que mais deixou sua marca na arte do século passado. Henri Matisse, o pintor de La joie de vivre (A alegria de viver), no fim de sua vida encontrou a felicidade pintando o interior de uma igreja. Uma história pouco conhecida, revelada há alguns anos por cartas e testemunhos, e em exposição no Brasil

Todos o conhecem como o mestre brilhante da era fauve; um mestre capaz de seguir o fio da beleza em um século que o tinha perdido. Henri Matisse foi, sem dúvida, um sol que permaneceu aceso em um século dominado por brilhos bem diferentes. O pintor de La Danza (A Dança) e do Ícaro, de Tangeri: paesaggio visto da una finestra (Tangeri: uma paisagem vista da janela), aquele que foi capaz de captar o ser como fulgor de luz e cores. Debaixo de sua mão, as linhas encontravam uma misteriosa continuidade e harmonia: uma verdadeira exceção em um contexto que viu as linhas, nas mãos dos pintores, quebrarem-se, despedaçarem-se, dobrarem-se à ênfase ou à narração do drama. Matisse era feito de outro material. E isso é demonstrado por uma história pouco conhecida, retomada graças a um livro, que a reconstruiu através de cartas e testemunhos: a história dos célebres afrescos que Matisse, já velho e doente, pintou para a Capela de Saint Paul de Vence, sua última obra-prima.
Internado em 1942 no hospital de Nice, Matisse vê-se na necessidade de uma assistência noturna, e lhe é enviada a jovem Monique Bourgeois em sua primeira experiência como enfermeira. Sobre Monique, um daqueles encontros que mudaram a vida do pintor, sabemos muito pouco. Devia ser muito talentosa, a julgar pelo caderno de desenhos mostrado depois de muito tempo ao artista, que os achou excelentes, e devia ser muito bonita, uma vez que Matisse a retratou muitas vezes, com a permissão da mãe. Dois anos depois de seu primeiro encontro, a enfermeira entrou para o convento de Vence. Para Matisse, foi um duro golpe: fica sabendo por telefone e quase rompe o relacionamento, porque tinha outros planos para Monique, queria fazer dela uma grande pintora.
Chesterton dizia que o universo responde a verdade se o interrogarmos honestamente: ninguém poderia imaginar que obra de arte nasceria daquela amizade que, então, parecia a ponto de naufragar.
Foi em uma das frequentes visitas a Matisse que Monique, já irmã Jacques-Marie, mostrou ao artista um desenho de uma Madona com o Menino Jesus, que tinha pintado quase descuidadamente. Matisse achou que estava perfeito para um vitral. Foi assim que nasceu a idéia da Capela do Rosário de Vence.
Matisse já estava velho e quase paralisado, e Giovanni Testori narra aquele projeto assim: “Vitrais, casulas sacerdotais, píxides: ele fez tudo. E pensar que naqueles anos já estava imóvel e não podia mais usar nem as mãos. Então, desenhava sobre folhas coloridas, vermelhas, azuis, servindo-se de um grande bastão e, depois, sempre com um bastão, as cortava e colava. Até o fim da vida, depois, também intensificou a cor. Provavelmente descobriu que seu grande sonho sempre fora os vitrais, ou seja, a cor, mas, também, algo que ultrapassa a cor: a concentração da luz (...). Uma concentração que se torna fulgor”.
Irmã Jacques-Marie e Lidia, assistente de Matisse durante muitos anos, estiveram constantemente ao seu lado nessa empreitada, tanto que o velho mestre quis que seus nomes estivessem ao lado do seu na cerimônia de colocação da primeira pedra. A Capela foi abençoada no dia 25 de junho de 1951, dois anos antes da morte do pintor que, naquela ocasião, escreveu ao Bispo de Nice: “Excelência, apresento com toda a humildade a Capela do Rosário dos Dominicanos de Vence. Peço que me desculpe por não ter podido apresentar esse trabalho pessoalmente por causa da idade e da minha saúde. A obra precisou de quatro anos de trabalho exclusivo e assíduo e é o resultado de toda a minha vida ativa. Eu a considero, apesar de todas as suas imperfeições, como minha obra-prima. Que o futuro possa dar razão deste juízo mediante um interesse crescente, mesmo além do significado mais alto deste monumento. Conto, excelência, com vossa vasta experiência sobre os homens e com a vossa profunda sabedoria ao julgar o esforço que é resultado de uma vida consagrada à busca da verdade”.
Não parece pouco para quem, quarenta anos antes, afirmara: “Eu sonho com uma arte equilibrada, pura, tranquila, sem sujeito inquietante ou preocupante, que seja para todo trabalhador intelectual, para o homem de ação e para o artista das letras, por exemplo, um lenitivo, um calmante cerebral, algo parecido com uma boa poltrona que o descansa de suas fadigas físicas”, uma morada, em suma. Matisse a construiu realmente.

A HUMANIDADE DO PINTOR. “De sua janela, ele via apenas o mar, e uma casa branca em meio ao azul, na casa de uma mulher, Maria”, conta uma poética canção de Lucio Dalla. Uma sensação de repouso, refrigério e liberdade não muito diferente daquela, intensa e profunda, transmitida pelo Tangeri: paesagio visto da una finestra, a extraordinária obra de Henri Matisse (hoje no Museu Puskin, de Moscou).
Também autor do chamado Ícaro (título original: Jazz), um dos cartazes de Páscoa do Movimento Comunhão e Libertação, que faz questionar quem é Henri Matisse, este pintor que ilustra a vida segundo uma sensibilidade com tanta afinidade com a história e a tradição cristãs.
“Normalmente, quando começo a trabalhar, na primeira sentada, anoto sensações recentes e superficiais. Há alguns anos, este resultado às vezes me bastava. Se hoje me satisfizesse, convencido como estou de ver a realidade com uma profundidade maior, restaria algo de indefinido na minha pintura; teria registrado sensações fugidias, ligadas a um instante que não me definiria inteiramente, e que dificilmente reconheceria no dia seguinte.” Assim se exprimia, em 1908, Henri Matisse, com 37 anos, já famoso por ter abalado o mundo da arte com as cores puras e gritantes das suas telas. Estas, expostas em uma mostra parisiense em 1905 em volta de uma estátua da renascença, tiraram de um crítico a exclamação: “É Donatello em meio às feras (fauves, em francês – que quer dizer animais selvagens –, como foram logo depois definidos os poetas que aderiram a esta poética)”.
Nos primeiros passos de um longo caminho, que se concluirá quarenta e quatro anos depois daquele distante 1908, quando a morte o surpreenderá ainda em atividade, Matisse observa as coisas, os objetos, as pessoas, a realidade inteira, investigando-a até conseguir “uma combinação viva de cores, uma harmonia análoga a de uma composição musical”. E as suas telas desprendem em efeitos esta mágica combinação, assiduamente buscada em uma absoluta confiança na positividade do real, quase um milagre se levarmos em conta que a história de Henri, único artista no mundo que pintou um quadro intitulado La joie de vivre, a alegria de viver, atravessa duas guerras mundiais.
O percurso pictórico de Matisse é constelado de “janelas”, abertas para Tangeri, Nice, Paris. Os interiores quase sempre dão para uma janela e até as mulheres, tão amadas pelo artista, são frequentemente representadas perto de um peitoril, como se o pintor não pudesse renunciar a uma abertura ao que está além daquilo que naquele momento chama a atenção, um dado indispensável ao equilíbrio e à harmonia daquilo que aparece: “Vou pintar um corpo de mulher: em primeiro lugar deve ter graça, fascínio; mas o problema é dar-lhe algo a mais. Procuro, então, condensar o significado deste corpo buscando as linhas essenciais. O fascínio será menos aparente à primeira vista e deverá, ao contrário, surgir ao longo da nova imagem que terei obtido, e que terá um significado mais amplo, mais plenamente humano. O fascínio será menos relevante, não sendo a única característica, mas continuará a existir igualmente, encerrado no conceito geral da minha figura (...). O que mais me interessa não é a natureza morta nem a paisagem, é a figura humana. Só esta me permite exprimir melhor o meu sentimento quase religioso da vida”.