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Passos N.61, Maio 2005

DESTAQUE / DONOS DA VIDA?

A coragem de dar atenção a alguém

por Paola Ronconi

De Bergamo, o testemunho do responsável pelo setor de pacientes em estado vegetativo. Vinte e cinco “Terri Schiavo”. A consciência do valor absoluto de cada pessoa, qualquer que seja a condição em que ela se encontra

Certamente não é pelo dinheiro ou pela possibilidade de fazer carreira que ele se dedica aos doentes em estado vegetativo; no entanto, quando fala dos últimos dez anos da sua vida de trabalho, brilham os olhos do doutor Giovanni Battista Guizzetti, responsável pelo setor que acolhe esses pacientes no Centro Dom Orione, de Bergamo (Itália). Conta que “quando nasceu esta seção, era preciso encontrar alguém que o dirigisse, mas nenhum dos meus colegas estava disponível. O trabalho parecia pouco interessante. Acabei me ocupando disso e depois de dez anos posso dizer que esta foi e continua sendo uma aventura maravilhosa”.



Doutor Guizzetti, os pacientes atendidos pelo senhor provêm de situações traumáticas graves. Depois da reanimação, ou se recuperam ou se fixam num estado de inconsciência.

Sim, na minha seção acolhemos no momento 25 “Terri Schiavo”, pacientes em estado vegetativo. Essa condição é o resultado de um grave dano ao sistema nervoso central, em especial ao córtex cerebral ou às suas conexões, que na maioria dos casos é de natureza traumática ou anóxica, como após a ocorrência de um infarto cardíaco. Esses pacientes apresentam necessidades assistenciais de baixo nível tecnológico, mas exigem um elevado empenho humano e assistencial. Não estão conectados a máquinas, têm apenas um tubinho no estômago ligado um frasco alimentar; a respiração, a função cardíaca, a digestiva, são autônomas; eles têm períodos de sono e de vigília, tal como nós, mas são incapazes de deglutir, e parecem não ter conteúdo de consciência. Antes estavam em coma; depois, a uma certa altura abrem os olhos e a partir desse momento vivem em estado vegetativo.

Para mover um desses doentes, isto é, para levantá-lo da cama, lavá-lo, vesti-lo e colocá-lo na cadeira de rodas, toda manhã dois enfermeiros gastam 50 minutos. É esse o cuidado de que precisam: e, para tanto, necessitamos de pessoas que tenham amor por elas. E em setores como o meu, 90% do trabalho é feito por enfermeiros. Quando eles apanham um doente para lavá-lo, vesti-lo, não o tratam como se fosse uma cadeira; não, eles o acariciam, falam com ele, estimulam-no, enviam mensagens a ele, que são recebidas pelo seu sistema nervoso. É necessário, porém, que os enfermeiros descubram a beleza desse trabalho, se apaixonem pelas pessoas (e, graças a Deus, o pessoal da minha seção trabalha desse jeito, com uma paixão e uma dedicação comoventes). A realidade que têm diante de si é, em geral, muito dura, como a de uma senhora que está em estado vegetativo desde o momento do parto, e o seu marido traz aqui, toda semana, o seu filhinho, agora com três anos de idade. Dos 69 pacientes que nestes anos acompanhamos, doze recuperaram a consciência. Isso, na minha opinião, se deve também ao modo como são acompanhados e tratados, que se torna um ato terapêutico e reabilitador.



Hoje, muita gente não considera essas existências dignas de serem vividas. Veja o caso de Terri Schiavo.

Eu venho, graças a Deus, de uma cultura cristã, onde ninguém jamais questionou o valor absoluto de cada ser humano, qualquer que seja a condição em que se encontra. No entanto, tive que me “aparelhar” para preencher de razões essa consciência. Para mim o encontro com estes doentes foi uma verdadeira revolução. Formado numa universidade onde se ensina que o ato médico consiste essencialmente em curar, tive que mudar radicalmente o meu modo de ver e de viver o meu trabalho. Aqui não se fala em curar, a única coisa que podemos fazer é dar atenção, atender a uma grande e inexprimível necessidade. Assim, temos muito o que fazer: ir atrás de quem pode nos ajudar, organizar seminários, viajar por toda a região à procura de fundos para manter o centro.

Hoje reina uma cultura que diz que a pessoa é definida pelas suas qualidades – entre as quais a consciência – e por isso quem não as possui – e não penso só nos meus doentes, mas também nos doentes mentais, nos doentes psiquiátricos, nos embriões ou nos fetos – não é considerado uma pessoa. Sem dúvida, a consciência é uma função importantíssima, mas continua sendo uma função, e não é ela que define o ser humano. Hoje até se começa a rever a idéia de que esses pacientes não têm consciência, porque ninguém pode afirmar de modo absoluto que eles não têm consciência, como ninguém pode dizer de modo absoluto que não sentem dor. Morrer como morreu Terri Schiavo, isto é, morrer de sede, é uma coisa absolutamente atroz.



O que significa trabalhar com eles?

Estes pacientes estão continuamente no limite: a medicina tecnológica não consegue aceitar esse limite, procura superá-lo, mas não tem êxito; talvez possa deslocá-lo, mas chega a um certo ponto em que não se pode ir adiante. A medicina não pode ignorar esses doentes e não pode propor como solução ao problema a morte por desidratação. Porque seria absolutamente desumano e também porque o passo seguinte poderia ser negar o cuidado a todos os doentes crônicos graves. Na minha opinião, uma sociedade civil digna desse nome deve saber encontrar os meios para dar-lhes assistência contínua. Consideremos também que esses doentes são um “produto” dos progressos da ciência médica; 40 anos atrás, eles não existiam, morriam antes. Postos de atendimento para esses doentes precisam ser criados. Há 50 anos não havia lugar para tratar dos doentes de Aids. Hoje existem. Havia também os lugares próprios para tratar dos tuberculosos, que hoje não existem mais.



O senhor também tem algum trabalho com os parentes desses pacientes?

A relação com eles nem sempre é fácil, porque têm sempre uma enorme expectativa de cura. Quando se tem um filho de 20 anos... Mas eles são indispensáveis. Acontece freqüentemente que uma mãe, um marido ou uma esposa nos dizem: “Quando ele ouve a minha voz, sorri; quando entro no quarto, ele vira os olhos para mim”, e o médico ou o enfermeiro não consegue entender essas coisas. Quem viveu 20 ou 30 anos com eles tem uma capacidade de se relacionar completamente diferente. Captar um sorriso, um movimento dos lábios, que para eles é algo familiar, é uma coisa muito importante.

Agora, na nossa seção, organizamos todos os meses um momento de encontro com todos os parentes, e isso os ajuda a crescer, a avaliar a condição do ente querido e a viver com mais serenidade a situação. Eles contam a própria história e as suas dificuldades. Na última vez, por exemplo, houve três intervenções: uma mãe que falou dos seus sentimentos de culpa por não ter feito tudo pelo próprio filho; uma que estava enfurecida com o mundo, com o destino e com os médicos; e uma outra inicialmente muito insistente em exigir exames e tratamentos reabilitadores – a partir de um certo ponto, eles são inúteis – que disse: “Depois de tantos anos, encontrando-me tantas vezes com vocês, entendi que devo aceitar a minha filha tal como ela é, querê-la bem assim, levá-la para passear, conversar com ela. Não é fatalismo, mas aceitação”.