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Passos N.58, Fevereiro 2005

DESTAQUE / OCIDENTE

Buscar a verdade:
direito inalienável do homem

por Carlo Dignola

Sem liberdade, síntese de todos os direitos humanos, o homem é reprimido em seu desejo último. Sendo assim a liberdade deve ser defendida e valorizada pelo Estado com adequados limites, segundo a “justa ordem natural”. As relações freqüentemente difíceis entre Estados e religiões. Fala Giorgio Feliciani

“A liberdade de religião é, em numerosos Estados, um direito não suficientemente ou não adequadamente reconhecido. Mas o anseio da liberdade religiosa não pode ser suprimido. Continuará sempre vivo e urgente, enquanto o homem estiver vivo”. Palavras de João Paulo II no discurso que fez ao corpo diplomático acreditado junto à Santa Sé, no último dia 10 de janeiro. Um alerta que não escapou da atenção de Giorgio Feliciani, professor de Direito Canônico e de Direito Eclesiástico do Estado na Universidade Católica de Milão, e há muito tempo presidente da associação internacional que congrega os estudiosos dessas matérias.

Os europeus consideram óbvio que um homem possa escolher a sua religião, mas a situação no mundo não é muito risonha.
Em muitos países, a liberdade religiosa é duramente reprimida. Há Estados islâmicos onde se aplica a sharia (lei islâmica) a toda a população, lugares em que é vetada a existência de qualquer lugar de culto cristão, e até as reuniões de oração nas casas particulares são clandestinas. Nem sempre o responsável é o Estado: grupos ou pessoas individuais também fazem a sua parte. Por exemplo, quando em Bagdá são colocadas bombas nas igrejas ou seqüestram bispos, além de fiéis cristãos, evidentemente que também isso é um ataque à liberdade religiosa. Mas há situações mais sutis. O secretário para as relações com os Estados, da Santa Sé, dom Giovanni Lajolo, disse recentemente que quase não há nenhum país em que a Igreja possa afirmar que goza de todos os direitos que ela julga deter.

Nos países de cultura cristã, ao contrário, firmou-se uma liberdade mais ampla: não só para os cristãos, mas para todos.
Digamos que hoje não se pode falar da liberdade da Igreja prescindindo do problema da liberdade religiosa em geral. João Paulo II dedicou grande parte do seu magistério justamente a esse tema, mas já o Concílio Vaticano II dedicou à liberdade religiosa toda uma declaração, a Dignitatis humanae.

Por que é tão importante defendê-la?
O homem tem o direito (e o dever) de buscar a verdade; e deve poder aderir a ela quando a reconhece, e ordenar a sua vida segundo as suas exigências, livre de qualquer coação externa. A esfera religiosa, em última instância, é a esfera da Verdade. Se não existe liberdade religiosa, o homem é limitado, condicionado, reprimido em sua busca e em seu desejo.

É uma questão muito pessoal, íntima?
A liberdade religiosa, que cabe a todas as pessoas, cabe a elas também quando agem de forma comunitária.

Hoje a preocupação é mais com o aspecto individual: a liberdade da Igreja como instituição não é considerada um valor a ser defendido.
Justamente. Mesmo nos tratados internacionais, as liberdades individuais são geralmente previstas e garantidas. No que se refere à liberdade das confissões religiosas, a atenção é bem menor. Por exemplo, na nova Constituição européia as expressões escolhidas são muito vagas. A impostação dada ao problema religioso é muito singular: chega-se a colocar as confissões no mesmo plano das organizações filosóficas...

Cresceu muito a sensibilidade pelos direitos humanos, que também no âmbito católico são considerados a bandeira de uma política de abertura para as diversas culturas. A liberdade religiosa, pelo contrário, é percebida como um direito um pouco menos essencial. Como harmonizar essas duas esferas?
Mais que harmonizar, a questão é a mesma: a liberdade religiosa é um direito humano; aliás, é o que envolve mais as pessoas. Liberdade religiosa significa liberdade de consciência, liberdade de manifestar o próprio pensamento, de poder fazer determinadas formas de propaganda; liberdade de associação, de empreender iniciativas culturais, beneficentes, assistenciais correspondentes ao próprio credo. A liberdade religiosa representa o fundamento, ou, se quisermos, a síntese de todos os direitos humanos. Pode-se afirmar que lá onde ela é reconhecida em toda a sua extensão, também os demais direitos são efetivamente respeitados.

Caminhamos para uma sociedade multiétnica: será preciso tutelar também as escolhas de outras religiões?
Certamente. Evitando-se discriminações entre elas. Não é aceitável o discurso de quem diz: assim como a Igreja não tem reconhecido os seus direitos nos países islâmicos, então nós também não devemos reconhecer os direitos dos muçulmanos na Itália. É uma estupidez. Seria como dizer: assim como no Iraque ou no Timor Leste, mais do que na China, se violam os direitos humanos, então vamos violá-los também na Europa. Isso obviamente não dispensa as autoridades políticas de insistir para que se estabeleçam condições de reciprocidade.

Na Itália, o senhor colocaria a Igreja católica, o Islã e o budismo no mesmo plano?
Em razão de tradições históricas, da importância que uma confissão religiosa teve e ainda hoje tem na vida de um determinado país, ela pode pedir e exigir um estado particular, em certo sentido “privilegiado”: desde que isso não comporte uma limitação da liberdade dos aderentes a outras confissões ou das próprias confissões. Atenção, porém: a Constituição não diz que todas as confissões religiosas são “iguais” diante da lei, mas que são “igualmente livres”.

E quando a liberdade religiosa conflita com algum princípio do Estado?
Devemos dizer que a liberdade, tanto no caso do indivíduo quanto no da comunidade, não é ilimitada. Deve encontrar os confins naturais ao exercício dos direitos do homem. O Concílio falou numa “justa ordem natural”. Por exemplo, se uma confissão religiosa aceitasse a prática dos sacrifícios humanos, não se poderia permitir que isso acontecesse. O respeito à dignidade humana, à democracia, à igualdade não pode ser questionado.

Portanto, a Igreja católica reconhece o fato de que o Estado pode fixar limites às práticas religiosas?
A Dignitatis humanae, documento do Concílio, diz isso expressamente.

Hoje, muitos na Itália invocam uma separação mais nítida entre Igreja e Estado.
Não é possível uma separação tão nítida; uma distinção de esferas, sim. A Igreja e o Estado são duas realidades independentes e soberanas. Mas como se dirigem essencialmente às mesmas pessoas, é preciso que entre eles se estabeleça uma sadia colaboração, tendo em vista a promoção do homem e o bem do país. Eles não podem ignorar-se mutuamente. O fato de um Estado não ser confessional – e não deve sê-lo, mesmo – não implica que deva ser indiferente, ou mesmo contrário ao fenômeno religioso. Aliás, o Estado deve garantir a liberdade religiosa, e valorizar o fenômeno religioso, pelo potencial que ele tem de ser útil e construtivo para a convivência social.

O senhor acha que hoje existe o risco de tomar pé um fundamentalismo católico?
Já nos Atos dos Apóstolos, Pedro, diante do Sinédrio, que lhe impõe não falar de Jesus Cristo, rebela-se: “O que dizeis: é preciso obedecer a Deus ou aos homens?”. É a reivindicação do primado da consciência, frente à autoridade civil e também à religiosa, como a do Sinédrio.

Significa que o cristão quer autonomia também frente à religião constituída?
Na doutrina católica se diz que o último critério é a própria consciência. Desde que seja retamente formada. Devemos admitir que se manifestaram fundamentalismos também na história da Igreja. Mas é justamente o absoluto reconhecimento da dignidade da pessoa humana que impede uma autêntica posição católica de assumir essa abordagem. O respeito devido à dignidade de cada um coloca a Igreja numa posição de atenção e de valorização diante de todos.

Parece que é o que o Papa está fazendo: nestes anos não só se pronunciou contra a guerra; é o único, no cenário internacional, que fala em defesa de todos.
A tarefa do cristão é ajudar a caminhada da humanidade, segundo todas as articulações e condições em que se encontra.

Uma liberdade religiosa vivida até o fim não defende só o cristão, mas o homem.
E procura também o diálogo com todos os homens religiosos. Pelo menos, os de boa vontade.