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Passos N.117, Julho 2010

MOVIMENTO - 16 DE MAIO DE 2010

O povo, Pedro e eu

por Alessandra Stoppa

Desafiados por uma proposta, eles partiram de noite, de lugares distantes. Um dia de viagem para um gesto de poucos minutos. Todos (duzentos mil) sob aquela janela. À espera do Regina Coeli, rezado por Bento XVI. A seguir, o relato do que aconteceu naquela praça superlotada, numa comunhão silenciosa

O trem desliza devagar, novamente. Nem chegou a retomar a velocidade depois da última estação, e já para de novo, em meio aos campos. Onde? Não se sabe. A única certeza é que já se passaram dez horas de viagem. E que deveríamos estar em casa há algumas horas. Falta luz nos vagões. Sentado ao lado da janelinha, alguém olha para fora, para aqueles campos ainda tomados pela noite. E vislumbra um céu estrelado. Chama os outros para verem; meio adormecidos e famintos, todos procuram um jeito de matar o tempo. Todos praticamente pensam a mesma coisa: “Observem com mais frequência as estrelas... Olhem as estrelas... Então a vossa alma encontrará repouso”.
Cada um a repete a sentença como pode, talvez pela metade. O que está intacta é a intensidade do que todos sentiram quando ouviram essas palavras na Praça São Pedro, algumas horas antes. Assim, num lugar qualquer entre Voghera e Pavia, distraem-se com o Céu. E o trem, a essa altura insuportável, se torna repentinamente simpático, porque nos permitiu ver as estrelas.

Perspectiva alterada. É a viagem de volta, depois do Regina Coeli com o Papa. Fazia meses que martelava na mente aquele pedido dele, no primeiro dia de seu pontificado: “Rezem por mim, para que eu aprenda cada vez mais a amar o Senhor. Rezem por mim, para que eu não fuja, por medo dos lobos”. Os lobos: o pecado dos seus filhos e os ataques do mundo. Que nestes tempos se escancararam. E encheram as páginas dos jornais, as bocas, os pensamentos.
Então, os movimentos católicos e as associações leigas decidiram reunir-se num dia preciso (16 de maio), para que aquela oração recitada pelo Papa fosse também de cada um. Organizaram-se trens, ônibus, caravanas de carros. Tudo parecendo um passeio familiar. Adiaram-se compromissos e batizados, a pergunta era: como e por quê? Discussões em casa. Mudanças de planos. Tudo depois das palavras do padre Julián Carrón: “Queremos pedir a Deus que vença sempre essa ligação com o ponto histórico que é o Papa, que impede que a gente se perca e caia na confusão mais completa. Não vamos a Roma para apoiá-lo, mas porque nós precisamos dele”. Podia até ser um slogan. Ou uma nova perspectiva para quem reservou sua passagem no trem.
Ida e volta em 24 horas; das quais, dezoito de viagem. Tudo por dezenove minutos com Bento XVI. Outras duzentas mil pessoas fazem o mesmo caminho. Cada um a seu modo: hospedando-se em Roma por dois dias, ou chegando ao alvorecer, de ônibus, vindos de Basilicata, da Alemanha, do Trentino, ou chegando em cima da hora, de trem. Todos de olhos bem abertos, atentos àquela janela.
E é mesmo como a gente imaginava: um mar de cabeças iluminadas pelo branco das colunas de Bernini, embora o tempo esteja nublado; os cartazes, os balões coloridas, os cachecóis dos mais prevenidos, as camisetas dos otimistas... Parecia um chamamento às armas. No entanto, é um exército com músculos e tendões cansados que, mesmo sem dizê-lo, olha em volta para ver melhor o que veio procurar. E treme. Todos se aproximam. É difícil ir de um lado para o outro da praça, atravessar a barreira de mochilas e gente. Os mais temerários se arriscam, outros decidem falar ao celular, no intervalo entre uma manifestação e outra.
Um exército que abarca todo mundo, os de cabelos brancos e os que sugam uma mamadeira. Cláudio está preparando a comida para os filhos, a mãe ao lado. E todos esperam. Um olho no relógio e outro na janela.
“A santa inquietação de Cristo... Para ele, não é indiferente que tanta gente viva no deserto. E há muitas formas de deserto.” Do adro da Basílica de São Pedro é lida aquela homilia pronunciada por Bento XVI, no dia 24 de abril de 2005. Sob a luz incomum dessa manhã romana, o povo observa o cartaz estendido entre as colunas que abraçam a praça: “Não tenham medo, Jesus venceu o mal”. Sem medo, ao lado, pessoas quase que desconhecidas começam a recitar o Rosário, pela cura de uma amiga. “Rezemos uns pelos outros”, continua a voz dos alto-falantes: “Para que o Senhor nos sustente e nós aprendamos a carregar o fardo uns dos outros”.
Sofia conheceu, há apenas um ano, os estudantes que estão ali com ela. Na praça, está um pouco deslocada. Pensa, e quanto mais pensa mais fica em dúvida se realmente é uma participante desse gesto. Em seguida, a multidão entoa um canto: Non nobis, Domine... “Passei a cantar também. E alguma coisa dentro de mim se moveu”, diz ela. “Eu fiquei maravilhada e feliz de invocar o Santo Padre assim.” Outros cantos, leituras, a Liturgia da Palavra, o cardeal Bagnasco lê a pergunta feita por Cristo a Pedro: “Tu me amas?”.
Todos à espera do Papa. Que finalmente aparece. É ele. O aplauso é um estrondo só que sobe da praça. Em seguida, o silêncio. Tudo é completamente diferente do instante anterior. A praça é subitamente outra. “Não um pensamento, não um sentimento religioso”, escreveu Dom Giussani. “Um acontecimento, algo que antes não era e, a certa altura, passa a existir.” O Papa é um pontinho branco na imensidão do conjunto vaticano. E já está falando; explica a solenidade da Ascensão: “O Senhor dirige o olhar dos apóstolos – o nosso olhar – para o Céu, para lhes indicar como percorrer a estrada do bem durante a vida terrena”. O Céu na Terra. A gente olha aquele pontinho branco que abre os braços e sabe que é verdade. Uma evidência imprevista. É isso que paralisa os duzentos mil presentes e nos faz permanecer em silêncio. O método de Deus. “Você percebe? Tudo se apoia sobre esse pontinho. Sobre um nada”, nos diz uma voz amiga. Enquanto o Papa insiste com o Céu: “Quando tiverem um peso no espírito, olhem para as estrelas”.
A gente não sabe que são palavras de Pável Florenski. Não sabe que se trata de uma carta escrita no gulag. Mas sabe o que ele está dizendo: não fique olhando para dentro de si. Eleve o olhar. Como todos estão fazendo agora, enfocando o Papa. Que revigora esse exército cansado. E o faz porque se comove. Agradece mais de uma vez: “Eu vos agradeço de coração. Obrigado!”. Abraça-nos lá da janela, e permanece ali mais um tempo, bem mais do que o costumeiro. O “protocolo” terminou, mas ele continua a nos abraçar.

“A vida voa”. Uma amiga, lá de um distante hospital, ouve as palavras do Papa transmitidas ao vivo pela televisão, a partir de um celular erguido sobre as cabeças na praça. “As provações permitidas pelo Senhor nos convidam a uma radicalidade ainda maior.” E ele agradece de novo. Em poucos minutos, Bento XVI apela ao seu povo. Dá-lhe dicas para a caminhada. Lembra o “verdadeiro inimigo a ser temido e combatido”: o pecado. “Vivemos no mundo, mas não somos do mundo. Nós, cristãos, não temos medo do mundo. Devemos, ao invés, temer o pecado e, para isso, estar fortemente enraizados em Deus.” Pede a cada um: “Prossigamos juntos, com confiança”. Saúda os estrangeiros. E depois, mais uma vez, manifesta “grande gratidão e alegria”. “Caminhemos no Senhor, com a Sua graça!” E se recolhe. Tudo está terminado.
“A vida voa como um sonho e frequentemente a gente não consegue fazer nada antes que ele desapareça, o instante da sua plenitude”. Em seu testamento espiritual, que fala a respeito do céu, Florenski, prisioneiro, escreve a partir das ilhas Solovki, poucos meses antes de morrer. E diz o que significa viver: “Preencher cada instante com um conteúdo substancial”. E hoje é como aquele primeiro dia do pontificado de Bento XVI. O mesmo conteúdo. Que o tempo não consome, antes torna verdadeiro. Contra todas as expectativas. “Aquele que crê nunca está sozinho – nem na vida, nem na morte. A Igreja é viva e nós o vemos: a Igreja é viva – ela é viva porque Cristo é vivo, porque Ele ressuscitou de verdade. Nós existimos para mostrar Deus aos homens. E somente onde se vê Deus começa verdadeiramente a vida.” Recitou essas palavras cinco anos atrás. Hoje, enche a praça com a sua gratidão. E isso vem antes de qualquer conteúdo. Sua comoção é o primeiro conteúdo. Seu olhar para a multidão.

Beijado pela graça. À sombra de uma coluna está Alessandro, com o seu corpo infantil e doente. A mãe o trouxe até aqui, estacionou a cadeira de rodas no fundo da praça e arrumou a coberta do filho. Deixou-o ali, exposto ao olhar do Papa. E relembra quando o trouxe para uma Audiência, na quarta-feira: “Para mim foi uma vitória”, disse ela. “O Papa até o beijou na face. Foi tudo!”
Beijados pela Sua graça. Que certamente surpreendeu até a ele, o sucessor de Pedro, enquanto nos olhava lá do alto. Tão pequeninos, na perspectiva da praça e na fidelidade a Deus. “Isso sim é que é surpreendente”, diria Péguy. “Que esses pobres filhos vejam como vão as coisas e creiam que amanhã será melhor. Que vejam como vão as coisas hoje e creiam que será melhor amanhã de manhã. Eu próprio estou surpreso. Qual não deve ser a minha graça e a força da minha graça para que essa pequena esperança – vacilante ao sopro do pecado, trêmula com todos os ventos, ansiosa frente ao mínimo abalo – permaneça invariável, fiel, ereta, pura; e invencível, e imortal, e impossível de ser extinta. Uma chama vacilante atravessou as profundezas da noite.”
Atravessa a escuridão da História e da história de cada um nessa praça. “Foi-me feita justiça.” São as palavras de Chiara, num abraço antes de deixar a Praça São Pedro. Que se esvazia como que num passe de mágica. Meio vazia, aqui e ali pequenos grupos tiram fotos. É uma praça eterna. É o centro, onde quer que a gente esteja. A Igreja. “Eis o lugar do mundo onde tudo se torna novo... O que em qualquer outro lugar é coerção, aqui não passa de ímpeto e entrega... O que em qualquer outro lugar é uma norma de conduta, aqui nada mais é que conforto e alegria... O que em qualquer outro lugar é confusão, aqui é o dia da boa aventura.”
Com as mochilas nas costas, o mar desse povo se dispersa para fora da colunata.

Vittorio e Caravaggio. Dá tempo para um lanche rápido, porque o trem parte daqui a pouco, sem tempo para uma volta por Roma, ou para uma visita à Basílica. Vittorio aproveita para ir com um amigo à igreja de São Luís dos Franceses, para rever a obra A vocação de São Mateus, de Caravaggio. E pela primeira vez entende o que está escrito no folheto: entre quem observa a obra e Cristo está Pedro. “São Pedro, reflexo de Cristo: de fato, repete com o dedo o mesmo gesto dele”, relata Vittorio. “E nós, que para poder ver plenamente Jesus, precisamos passar através de Pedro.” É ele quem garante a nossa fé. É o que dizem os túmulos dos Papas, no subsolo da Basílica vaticana. Maria vai visitá-los antes de deixar Roma e seu espírito se renova. O mistério de Deus a alcança, por intermédio daquela corrente de homens e santos que, um depois do outro, conduziram a Igreja. “Tire um da lista”, pensa ela, “e o mistério não teria chegado até a mim”. Mas chega. Hoje de novo. Com aquela doce responsabilidade de que se sentiram investidos: “Caminhemos no Senhor, com a Sua graça!”. O longo 16 de maio terminou. Mas a viagem de volta tem o sabor de uma viagem de ida. Como escreve Noemi a um amigo: “Vim a Roma, mas não concluí nada. Comecei tudo”.