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Passos N.123, Fevereiro 2011

LEITURAS - ENTRE A VIDA E O DESTINO

Virgindade, plenitude de si

por Mauro Grimoldi

No último capítulo de "É possível viver assim?",
Dom Giussani convida a descobrir a dimensão mais verdadeira do amor e do relacionamento com toda a realidade. Para acompanhar a leitura dessas páginas, esboçamos um percurso de prosa e poesia, desde Jacopone da Todi até discursos recentes de Bento XVI


Devemos falar sobre a virgindade, desta inteireza, desta perfeição que nos restitui a nós mesmos, que torna a vida, vida, a realidade, realidade, esta pobreza apaixonada que sabe amar tudo, e nada viola. “Pobreza apaixonada, grande é a tua senhoria!”, exclama Jacopone da Todi, chegando a dizer que o homem que livremente ligou a própria liberdade a liberdade de Deus possui todas as coisas, como se não houvesse mais distância entre o céu e a terra:
“A Deus meu querer foi dado,
possuidor de todo estado;
em seu amor fui transformado,
apaixonada cortesia”
(Jacopone da Todi, Pobreza apaixonada)

Virgindade, apaixonada pobreza! Carregas a nobreza e a profundidade do amor! Tu, juventude jamais perdida, que permaneces no fundo do ser, ainda mais bela do que antes, juventude que “amas e não esperas ser amada: a cada flor que desabrocha ou fruto que amadurece ou criança que nasce, ao Deus dos campos e das estirpes rendes graças no coração” (Ada Negri). Desabrochaste, juventude inteira, virgindade, nas pegadas da Verônica, quando ela abriu passagem entre a multidão no caminho do suplício de Cristo, entre as pessoas que viam a senda que ela percorria. “Teu nome nasceu no mesmo instante em que o coração se tornou a efígie: imagem da verdade. Teu nome nasceu daquilo que fixavas” (Karol Wojtyla). Fixavas um Homem, Verônica, como os discípulos o fixavam, como o fixava Pedro, quando disse: “Senhor, a quem iremos? Só Tu tens palavras de vida eterna”, vida verdadeira, inteira, perfeita; vida desejável que ninguém saberia imaginar ou inventar, mas que reconhecemos porque é a vida que podemos ver, e ouvir, e tocar. “Uma vez alguém falou por inteiro”, escreve Montale, “e foi incompreensível”, porque nenhum pensamento podia defini-lo, contemplá-lo, prevê-lo. Incompreensível, mas real e verdadeiro.
É aqui que começa a virgindade? Quando aconteceu, e acontece, e acontecerá também a nós, distraídos, não confiáveis, mentirosos, dizer “Senhor, sabes que te amo”, como crianças que encontram asilo no côncavo da mão materna? Virgindade possível também a nós, se pudermos repetir todos os dias:
“É este o lugar onde tudo se torna fácil,
A saudade, a partida e também o acontecimento,
E o adeus temporário e a separação,
O único lugar da terra onde tudo se torna doce...
Este é o lugar do mundo onde tudo é reconhecido...
Este é o lugar do mundo onde tudo se torna infante,
Sobretudo este velho de barba grisalha
Com os cabelos movidos pela brisa
E o olhar modesto outrora triunfante.
Este é o lugar do mundo onde tudo se renova
nesta velha cabeça e seus deslumbramentos
E estes dois braços provados nas responsabilidades,
O único lugar da terra onde tudo se torna cúmplice.
E também este louco que era astuto,
(É o vosso servo, ou antes entre os servos),
E que vivia em uma douta esfera,
E que levava água ao seu moinho.
Aquilo que em qualquer outro lugar é resistência
Aqui é apenas seguir e acompanhar;
Aquilo que em qualquer outro lugar é prosternar-se
Aqui é uma doce e longa obediência...”
(Charles Péguy, Oração caseira)

É possível deixar tudo por Ti, porque a tua vontade é “aquele mar para o qual tudo se move, que Ela cria e que Natura faz”, escreve Dante no canto III do Paraíso. Contigo nada se perde, mas tudo é levado à realização. De Ti vem aquele brilho de perfeição que resplandece nos gestos, na palavra, no olhar daquelas criaturas que fazem da nossa vida um canto que se canta assim:
“Será que o fim da vida é viver? Será que os filhos de Deus manterão seus pés fixados a essa terra miserável? Não viver, mas morrer, e não tornar a cruz mais leve mas subir nela e dar, sorrindo, o que temos. Eis a alegria, eis a liberdade, eis a graça, eis a juventude eterna!”
(Paul Claudel, O Anúncio feito a Maria)

Como a menina da qual fala Giacomo Leopardi em um trecho memorável de Zibaldone:
“Realmente, uma jovem com idade entre dezesseis e dezoito anos tem em seu rosto, em seus gestos, em suas palavras, movimentos, etc., algo de divino, a que nada pode se igualar. Qualquer que seja sua característica, seu gosto: alegre ou melancólica, caprichosa ou sisuda, vivaz ou modesta; aquela flor puríssima, intacta, fresquíssima de juventude, aquela esperança virgem, incólume que se mostra em seu rosto e em seus gestos, ou que ao olhá-la é possível perceber nela e através dela; aquele ar de inocência, que ignora completamente o mal, as desventuras, os sofrimentos; em suma, aquela flor, aquela primeiríssima flor da vida; tudo isso, mesmo sem vos provocar paixão, mesmo sem despertar vosso interesse, vos causa uma impressão tão viva, tão profunda, tão inefável, que não vos enfadais de olhar aquele rosto, e eu não conheço outra coisa que seja tão capaz de elevar nossa alma, de nos transportar a outro mundo, de nos dar uma ideia dos anjos do paraíso, da divindade, da felicidade. Tudo isso, repito, sem nos despertar a paixão, isto é, sem nos levar ao desejo de possuir aquele objeto”.

Virgem, isto é, incólume. Não apenas no sentido de intacto, mas, como sugere Pietro Citati em seu livro sobre Leopardi, etimologicamente, propriamente, incólume significa inteiro. Foi assim que Beatriz pareceu a Virgílio no II canto do Inferno: a graça desta criatura, cujos olhos resplendem mais do que as estrelas, leva o poeta mantuano a obedecê-la espontaneamente, antes mesmo de conhecer o motivo da inesperada visita. Só uma pergunta não pode deixar de fazer, depois correrá para realizar a missão que ela lhe confiou: Não temes – pergunta – por tua integridade, vagando sozinha neste abismo de maldade, neste centro tão distante do lugar de tua beatitude? Beatriz responde que não tem medo porque só devem ser temidas as coisas que têm poder de corromper e
“Tal fui feita por Deus, sua mercê,
que vossa miséria não me afeta,
nem chama deste incêndio me molesta”
(Dante, II Inferno)

Do mesmo modo avança a voz de Girôlama no coração mau de Miguel, como um raio de verão em uma caverna noturna habitada pelas alucinações sonhadas na doença: “Vi, um dia, uma irmã da Misericórdia aventurar-se sozinha no vermelho recinto dos suplicantes”, (Oscar Milosz, Miguel Mañara). Assim é a voz de Girôlama: terrível de inocência. Umberto Saba entrevê esta reverberação de integridade, de perfeição no amor de Lina, sua mulher: ele, que conheceu todos os amores humanos e se define nascido de obscuras batalhas, por causa dela, e somente por causa dela, quiz começar de novo, de novo escolheria viver,
“porque foi tudo no mundo, e nunca prudente,
E tudo soube, exceto a si mesma, amar”.
(Umberto Saba, E amou novamente)

Ainda mais eficazes são os versos dialéticos de Noventa:
“Porque há em teus grandes – Olhos de judia
Como que uma luz – Que me consome”
(Giacomo Noventa, Gh’è nei to grandi – Oci de ebrea).

Envergonho-me de ter olhado estes olhos porque respondes ao meu vício com toda a graça de teu bom coração, porque trata as minhas vontades como se minhas vontades fossem amor. És uma serva, ou a tua, é a devoção de uma santa? O que acontece de fato é que eu, que me acreditava um homem livre, me vejo ligado à tua senhoria.
Antes de ti, escreve ainda Noventa em outra poesia, o sabor do pão e a luz do céu eram incertos. Contigo, hoje o pão cotidiano é uma graça. Graças a ti, conheço a proximidade de Deus (cfe. Giacomo Noventa, O sabor do pão).
Mas se é verdade aquilo que Jacopone da Todi escreve em Vergen plu ca femena, isto é, que “todo homem nasce inimigo”, é em Maria, na “Santa Maria beata, mais que mulher, digo”, que se reconstitui aquela original amizade com a vida, consigo mesmo, com os outros, com o cosmos, rompida pela estraneidade do pecado. Nela, de fato, a “vida eterna” fez morada neste mundo, recriando-o: “O verbo que criou todas as coisas está contigo, Virgem”. No anúncio do Anjo, Jacopone reúne o mundo, todos os “povos”, que em um silêncio cheio de fremente suspensão o sim de Maria invoca. Jacopone ainda diz “Ajuda-nos, Senhora, porque o mundo se desfaz , se demoras em responder, se não te apressas”. Desmorona o mundo se a tua resposta não chega solícita, Maria, “fonte vivaz de esperança”. (Dante, XXXIII Paraíso).
O ideal de perfeição chega assim ao seu vértice ardente: Maria é mais do que a mulher que decidiu conservar-se intacta para se doar num casamento futuro. Em Maria, como observa Giacomo Biffi, em Canto Nupcial, “o presente e o futuro coincidem”: Deus, o destino ao qual toda a criatura tende, fez-se morada nela em seu presente de mulher. Assim, Maria é mãe “supremamente fecunda porque supremamente virgem, isto é, supremamente possuída pela potência do Altíssimo”.
Esta fecundidade investe todo o mundo, a Cidade dos Homens, como declara a história de Pedro de Craon. No primeiro crepúsculo do dia o construtor de catedrais despede-se silenciosamente da casa que o hospedou. Vai-se, marcado pela negra flor da lepra, sozinho, antes que o sol desperte homens e animais. “Eu não vivo no mesmo nível dos outros homens”, diz a Violaine, que surpreendentemente o espera para despedir-se, “mas sempre sob a terra, com os alicerces; ou no céu, com o campanário” (Paul Claudel, O Anúncio feito a Maria). Pedro de Craon constrói a morada de Deus e dos homens. Esperança é o nome da igreja em que está trabalhando. Não é uma empreitada para pouco tempo porque, como escreve T. S. Eliot nos Coros de “A Rocha”: “Lá, onde o templo não existe, jamais existirão moradas, conquanto possuís refúgios e instituições, precárias casinholas por cujo aluguel se paga, porões soturnos onde o rato em profusão procria ou pocilgas sanitárias com portas numeradas ou uma casa algo melhor que a do vosso vizinho geminado”.
“Que destino! O homem que carrega embutida debaixo da pele a marca da corrupção é chamado a resgatar o mundo, a cidade dos homens que, sem templo, está condenada à destruição.
... e no final nossa Sião
será uma perdida Sodoma que dança por tolos
motivos
até que o coração exploda, uma cansada Gomorra
envaidecida de seu antigo eu
e cujos caros sonhos, embora ainda imperantes,
são fatos formais que não rejuvenecem mais”
(Wystan H. Auden, A idade da Ânsia)

Então, para construir a obra de Pedro é necessário viver em um outro nível: na profundidade e à altura daquela pobreza apaixonada que permite “possuir cada coisa com o espírito de liberdade” Jacopone da Todi, O amor pobre). Dante chama o Paraíso de cidade sincera, a cidade sem fingimento, sem artifício, sem disfarces, inteiramente pura. Maria é esta Cidade, e com Ela, a Imaculada, a Cidade se torna uma morada humana:
“O olhar de Maria é o olhar de Deus sobre cada um. Ela nos olha com o mesmo amor do Pai e nos abençoa. Comporta-se como nossa “advogada” – e assim a invocamos na Salve Rainha: “Advogada nossa”. Mesmo se todos falassem mal de nós, ela, a Mãe, falaria bem, porque seu coração imaculado está sintonizado com a misericórdia de Deus. Assim ela vê a cidade: não como um aglomerado anônimo, mas como uma constelação onde Deus conhece todos pessoalmente pelo nome, um a um, e nos chama a brilhar com sua luz”.
(Bento XVI, Solenidade da Imaculada
Conceição, 8 de dezembro de 2010)