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Passos N.131, Outubro 2011

EUA - 11 DE SETEMBRO

Como mudou o sonho americano

por Marco Bardazzi

Dez anos atrás, ocorria o atentado que transformou o rosto do Ocidente. Hoje, em meio a outras guerras e a crises, que fim levaram os ideais sobre os quais se baseava a civilização? Quem responde é alguém que, como correspondente estrangeiro, conheceu bem os Estados Unidos antes e depois do 11 de Setembro. E que hoje pode dizer: existe algo que não foi destruído

“Cada um pergunte para si mesmo: estou melhor hoje do que há dez anos?”. Para Ronald Reagan conquistar a Casa Branca bastou lançar essa pergunta aos seus concidadãos. Os americanos de 1980 olharam para trás, viram uma década marcada por Vietnã, pelo Watergate e pelo “mal-estar” que acompanhou a péssima presidência de Jimmy Carter, e decidiram mudar.
O que vê um americano que se colocar essa mesma pergunta hoje, dez anos depois do 11 de setembro? A resposta é mais difícil do que aquela de 1980. Porque o mundo se tornou mais complicado, e os Estados Unidos com ele.

Do terraço. Há, porém, um ponto em comum – e decisivo – com os Estados Unidos de trinta anos atrás. Enganava-se, na época, quem visse o país como que condenado a um inevitável declínio e a uma convivência forçada no planeta, em pé de igualdade, com um império soviético que se propunha durar para sempre. Enganava-se quem pensasse que o “sonho americano” fosse só uma velha retórica já sem conteúdo, desfeita pela derrota no Vietnã, pelas manobras de Nixon e pela crise econômica. Uma década depois, a URSS evaporava, enquanto que os Estados Unidos – mais fortes do que antes – preparavam-se para exportar para o mundo uma novidade chamada Internet, acompanhada das ideias desses jovens geniais chamados Bill Gates e Steve Jobs.
Do mesmo modo, engana-se quem olha os EUA de hoje, em plena crise econômica, com uma taxa de desemprego próxima dos dois algarismos e compromissos militares não solucionados no Afeganistão e no Iraque, e conclui que não só está morto o “sonho americano”, mas também foi sepultado o “século americano” (o XX), que deixou espaço para o suposto “século asiático”, que estamos vivendo agora. Ousa-se até um prognóstico para as próximas décadas: os Bill Gates e os Steve Jobs de amanhã – mas também os próximos Mark Zuckerberg (o fundador do Facebook tem apenas 27 anos, mas na era da web as trocas de gerações são rapidíssimas) – terão ainda passaportes americanos, não chineses, mas nesses passaportes made in USA serão cada vez mais frequentes as fotos de rostos hispânicos, indianos, ou de gente com os olhos puxados.
Eu me lembro muito bem dos Estados Unidos do início do Milênio – os primeiros anos do século XXI que precederam o ataque ao World Trade Center e ao Pentágono. Eu havia desembarcado no país em 2000, com esposa e três filhas pequenas, como jornalista, numa Nova York belíssima, enérgica e enlouquecida. Tudo era caro demais, todos pareciam entregues ao sonho de se tornar milionários com a New Economy, tudo parecia possível. Na Casa Branca, um Bill Clinton já desacreditado pelos seus instintos sexuais aguardava impotente o final do mandato, enquanto dois candidatos não especialmente carismáticos, Al Gore e George W. Bush, disputavam a sua sucessão. Mas a política despertava pouco interesse, e o futuro presidente parecia destinado a se dedicar apenas à administração ordinária; afinal o mundo, visto de Nova York, parecia tranquilo. Quando vinham da Itália amigos para nos visitar, nós os levávamos para observar Manhattan do terraço da Twin Towers. Na sala de casa, ainda hoje há uma foto de nossa filha caçula dançando sorridente no World Trade Center, tendo ao fundo a silhueta inconfundível das Torres: o pedaço de arranha-céu que se vê na imagem é o mesmo que se tornou tristemente célebre depois do 11 de setembro, porque era o único retalho do esqueleto externo de uma torre que permaneceu de pé.
Se alguém pensa em Nova York pré-11/9 e a compara à de hoje, dificilmente pode dizer que os Estados Unidos, dez anos depois, sejam um lugar melhor. Entre 2001 e 2011aconteceu de tudo: duas guerras que o mundo poderia ter evitado (sobretudo a do Iraque); uma reação desproporcional à ameaça jihadista; descobertas torturas militares; restrições à privacidade e aos direitos civis; o furacão Katrina; a ruína do mercado imobiliário e a pior crise econômica do pós-guerra (há quem sustente, como o ex-diretor da Economist, Bill Emmott, que o 13 de setembro de 2008, dia em que ruiu o banco Lehman Brothers, foi mais devastador do que o 11 de setembro de 2001).
Mas essa década foi muito mais do que isso. É o período em que o Google – uma pequena empresa californiana fundada por dois estudantes de Stanford, Larry Page e Sergey Brin – se tornou o colosso global que todos conhecemos. Facebook não existia até 2004; hoje reúne 750 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo todo. Dez anos atrás quase não se falava de energias alternativas: hoje elas formam uma indústria promissora e uma oportunidade de trabalho para as próximas gerações. Ninguém, dez anos atrás, poderia imaginar um presidente negro na Casa Branca. Sobretudo, nenhum país do mundo seria capaz, numa década, de levar ao poder, a partir do nada, três novidades políticas como o neoconservadorismo, Barack Obama e os Tea Party (que até 2009 não existiam e em 2010 praticamente conquistaram o Congresso).
Mas esses, no fundo, são apenas os sinais mais visíveis da vitalidade do país. Muito, muito mais, nessa década, aconteceu no nível do pensamento e das relações pessoais. Longe dos holofotes nasceu e cresceu uma rede de amizades e de solidariedade reforçada pelos traumas do 11/9, das guerras, do desemprego. Os Estados Unidos não se resumem aos que gritam nas reuniões do Tea Party ou às marchas de protesto da esquerda liberal. São constituídos também por um tecido de igrejas e comunidades nas quais foi diluída boa parte do egoísmo e do carreirismo que os caracterizaram antes do ataque terrorista aos EUA. É um corpo social continuamente renovado pela linfa vital de alguns dos imigrantes mais motivados do mundo, sobretudo os indianos, os vietnamitas e principalmente os hispânicos: para eles, o “sonho americano” está mais vivo do que nunca.
Para entender por que o século XXI continuará sendo um século americano – embora a Europa tente nos convencer do contrário –, é preciso esquecer Noam Chomsky e ler os ensaios de estudiosos como Anne-Marie Slaughter, que acabou de reassumir sua cátedra na Princeton, depois de dois anos passados ao lado de Hillary Clinton no Departamento de Estado (difícil, por isso, suspeitar que se trate de uma “perigosa” neocon...). Num mundo que se parece cada vez mais com um gigantesco social network – essa é a sua tese – os EUA mantêm uma vantagem básica: a criatividade de um ambiente realmente “social”, fruto do mix étnico, de uma cultura que encoraja o desafio ao status quo, e de um sistema universitário que continua sendo o melhor do mundo. Qualquer um que entre num câmpus americano sente a energia que se respira ali. É o que se percebe também em muitos novos campi chineses, com uma diferença substancial: na China, tudo está focado na ordem, na perfeita gestão; em suma, na tranquilidade política. Mark Zuckerberg jamais teria conseguido criar o Facebook no futurista câmpus do parque científico-industrial de Zizhu, em Xangai.

Raízes sólidas. Se considerarmos todos os fatores, hoje se daria à pergunta de Reagan uma resposta mais articulada do que um simples “sim” ou “não”. Os Estados Unidos, em seu conjunto, não estão melhores do que dez anos atrás, quando foi ferido pela Al Qaeda. Mas o PIB e os dados sobre o desemprego não são os únicos indicadores da felicidade. O “sonho americano” permanece e tem raízes sólidas. A nós, deste lado do Atlântico, seria bom continuar a pesquisar os seus segredos, como fazia Tocqueville tempos atrás, em vez de sucumbir à febre asiática.