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Passos N.56, Novembro 2004

50 anos de CL / Ecumenismo

O olhar ortodoxo-católico

por Giovanna Parravicini

Ele encontrou o Movimento há 20 anos, clandestinamente, porque naqueles tempos, na Rússia, ser cristão era perigoso. É Viktor Popkov, ortodoxo, um ano e meio de campo de concentração, há algum tempo responsável pelas edições russas dos livros do padre Giussani. “A pessoa percebe alguma coisa, quando se trata daquilo que se estava buscando. Eis aí outras pessoas que procuram viver o cristianismo”

Nós nos vimos pela primeira vez há 20 anos, num dos seminários clandestinos que se organizavam de vez em quando entre italianos e russos, depois de um encontro fortuito entre uma das primeiras comunidades cristãs surgidas espontaneamente na URSS (um grupo de rapazes espalhados entre Moscou, Leningrado e Smolensk) e alguns estudantes de CL. Daquela vez éramos uns 15, amontoados na casa de um amigo, num conjunto popular da abandonada periferia de Leningrado, e recordo, dentre tantos, de um rosto jovem, um pouco amedrontado, dois olhos bem azuis e um olhar sério e curioso. Viktor Popkov vinha de Smolensk, passara a noite num trem para ir encontrar “os italianos”, e trazia consigo a experiência de um ano e meio de campo de concentração, para o qual fora condenado em 1980 por ter se ligado a um grupo cristão.
Agora já faz dez anos que Viktor trabalha conosco, em Moscou, na Biblioteca do Espírito, e com ele compartilhamos o dia-a-dia, das coisas mais banais às escolhas que se impõem no trabalho e no relacionamento com os colegas, dos problemas familiares aos juízos sobre a política. Mas a coisa mais apaixonante é a possibilidade de nos ajudarmos diariamente na caminhada para o ideal, na concretização da obra que temos entre as mãos, testemunhando reciprocamente e ajudando-nos a testemunhar a quem encontramos, a beleza da vida vivida na fé; nós, católicos, e ele, ortodoxo.

O que eu buscava
Viktor viu e participou de perto de toda a trajetória vivida pelo Movimento aqui na Rússia, desde aqueles primeiros encontros e hoje como editor dos livros do “PerCurso” (é ele quem acompanha todo o processo gráfico).
“O que impressionou você, o que você viu no carisma, quando o encontrou?”, pergunto-lhe de imediato, de uma escrivaninha a outra, visto que trabalhamos na mesma sala: “A pessoa percebe alguma coisa, quando se trata daquilo que se estava procurando, e então fica atento aos mínimos detalhes”, responde ele, como que falando para si mesmo. “Foi o que aconteceu comigo ao encontrar o Movimento: naquela época, aqui não havia nenhum tipo de vida religiosa, era uma espécie de deserto, a Igreja tinha sido devastada, só de vez em quando encontrávamos alguém que praticava uma religiosidade toda interior, individual, feita de práticas de piedade e de ascese, mas que não tinha nenhuma chance de incidir sobre a vida. Naturalmente, quando eu tinha começado a colocar o problema do sentido da vida, da realidade social que me circundava e da ligação que tudo isso tinha com o cristianismo, não conseguia encontrar à minha volta respostas capazes de me ajudar a superar o dualismo em que estávamos todos imersos. A minha pergunta era: qual o sentido da vida, o que significa realizar-se como pessoa, vivendo como cristão, mas permanecendo no mundo; aliás, procurando plasmar a realidade segundo a verdade que nós encontramos?”.

Uma confirmação ideal
Uma primeira resposta Viktor encontrou lendo Dostoievski e pensadores cristãos como Solov’ëv, Bulgakov, S’memann, Meyendorf, e assim por diante, mas era sempre uma teoria, uma confirmação no nível puramente ideal: “Eu já estava satisfeito, porque eu dizia para mim mesmo: então não sou o único a pensar assim... E depois o primeiro encontro com vocês, em Leningrado, onde disse para mim mesmo: eis aí outras pessoas que procuram viver o cristianismo. É verdade, porém, que nauqele momento a vossa história me pareceu um pouco exótica, curiosa, acontecida num lugar tão distante...”. Na URSS daqueles tempos nós nos sentíamos completamente isolados, éramos um pouco como marcianos... “Mas para se realizar verdadeiramente como pessoa é preciso encontrar alguém, começar a caminhada junto com esse alguém, e era justamente isso que me faltava... e foi exatamente isso que pude ver quando fui pela primeira vez à Itália e encontrei as vossas comunidades”.
E então? “Bem, vi comunidades feitas de pessoas, umas diferentes das outras, cada uma empenhada com alguma coisa, com responsabilidades e interesses próprios, diferentes, mas também profundamente unidas. Junto com vocês entendi melhor que vivemos num mundo pelo qual somos responsáveis, que não podemos erguer barreiras e defender-nos dele, limitando-nos a pensar na nossa salvação pessoal. Eu sempre pensava que cada um recebeu o próprio talento e deve fazê-lo frutificar lá onde é chamado, segundo a vocação que recebeu. O encontro com o pessoal do Movimento, pelas diversas comunidades que conheci na Itália, abriu para mim essa possibilidade em tudo”. Viktor acha bom salientar que a resposta ele a encontrou por uma vida, uma amizade que vai do trabalho aos passeios na montanha e às partidas de futebol (inicialmente, sua profissão era treinador de futebol, e essa continua sendo sua paixão).

O cristianismo é uma vida
“Enfim, percebi que as perguntas que eu tinha dentro de mim, na verdade, muitos as faziam também, e estavam procurando respondê-las seriamente, colocando em prática as tentativas de resposta. Para mim, foi a confirmação de que o cristianismo como tal, como vida, é uma coisa possível, mas até então, uma dúvida tinha permanecido: uma coisa é ouvir a fala dos teólogos e estar de acordo com o que dizem; outra coisa bem diferente é encontrar pessoas comuns, normais, que vivem uma vida cristã encarnando-a na própria experiência, cada uma de um modo diferente, segundo suas características, os dotes e escolhas profissionais próprias... Ah!, e uma outra coisa que me impressionou, nesse sentido, era o nome, Comunhão e Libertação. Fiquei tocado com a idéia que havia por trás, porque me recordava os ditos dos Padres da Igreja sobre a liberdade, entendida não como escolha entre várias alternativas, mas como novidade de vida, tornada possível por uma comunhão vivida. Em suma, era impossível esquecer o Movimento depois de o ter encontrado, justamente porque era isso que me faltava”.

O trabalho na Biblioteca do Espírito
Depois essa vida transbordou, em certo sentido, também na Rússia, pelo trabalho da Biblioteca do Espírito... “No âmbito do trabalho – retoma Viktor – o encontro com o Movimento demonstrou que a vida cristã pode ser real, realizar-se e ser compartilhada com o outro – por diferente que ele seja de nós – e se cria a possibilidade de comunhão, de companhia, que cada um pode enriquecer pela própria contribuição original. E isso gera uma ocasião de encontro, de unidade, até então impensável: é a coisa que mais me fascina no nosso trabalho, quando encontramos no coração do povo uma correspondência com aquilo que nós propomos, e nos tornamos um instrumento para que cada um possa se realizar segundo a própria vocação”.
Trabalhando com os livros do padre Giussani, qual o aspecto que mais o impressionou? “Padre Giussani tornou-se familiar para mim por aquilo que você me contava, depois chegaram as primeiras traduções, das quais eu não entendia quase nada: sua linguagem era muito poética, densa de imagens, de metáforas, que eu no começo penava para decifrar. O primeiro livro que eu comecei a entender (nesse meio tempo, talvez as traduções também tenham melhorado) foi O Senso Religioso. E me senti em casa, porque reencontrei a idéia, a mim familiar, da responsabilidade que o homem tem diante de Deus frente à realidade, em cada um dos seus fragmentos, por força da vocação que lhe foi dada”.

A respiração do homem e o cosmo inteiro
Cristianismo e política. Um binômio nada fácil na Rússia de hoje, mas que Viktor liga estreitamente ao que há pouco se disse sobre a responsabilidade, ponto em que o pensamento do padre Giussani está estreitamente ligado ao dos filósofos religiosos russos. E cita, a esse propósito, Florenskij: “Até a respiração do homem tem valor para o cosmo inteiro”. E logo em seguida cita Giussani: “Desejo que vocês jamais fiquem tranqüilos”, que nunca se escondam diante do desafio constituído pela realidade, a todo instante, dizendo: “Não me diz respeito”.
CL é um Movimento nascido na Itália, de um sacerdote católico. Você, como ortodoxo, o que pode receber dele? “Formalmente, claro, é um grande Movimento nascido no Ocidente, com sua história e sua tradição, diferentes daquelas da Igreja Ortodoxa, mas o seu impulso interior, o seu método, é a via do cristianismo, na qual todos podemos nos reconhecer, católicos ou ortodoxos, porque é uma via voltada para a transfiguração do mundo ao nosso redor. É a via do cristianismo, e não se pode dizer que seja uma via puramente católica (evidentemente, há elementos católicos, porque nasceu num ambiente católico, e é composto principalmente por católicos), mas é realmente universal, interessa a todos, é a posição do homem cristão como tal, porque refere-se ao anúncio de Cristo ao mundo e ao testemunho da sua Glória humana. E eu creio que cada um de nós pode e deve realizar esse testemunho permanecendo aquilo que é, na Igreja na qual foi batizado, educado e onde fez já uma certa caminhada”.