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Passos N.55, Outubro 2004

Experiência - São Paulo

Contra a violência, uma educação para a liberdade

por Juliana P. Perez

No Centro Cultural Santa Catarina, no coração da avenida Paulista, em São Paulo, mais de 250 pessoas se reúnem para debater sobre o testemunho de uma experiência educativa, capaz de levar uma novidade no mundo.

Haverá realmente um caminho para o problema dos meninos de rua e da violência urbana? A pergunta se coloca a cada dia com mais força, em especial após os assassinatos de moradores de rua em São Paulo e em outras cidades do país. Instituições e abrigos ofereceram prontamente acolhida para os moradores de rua aterrorizados, os criminosos estão sendo procurados, foram exigidas novas políticas públicas pelo arcebispo de São Paulo, Dom Cláudio Hummes. Mas sabemos que o problema da violência urbana é muito mais amplo do que as soluções encontradas para este caso; e talvez até não queiramos admitir que não há realmente uma “solução” prática para o problema da violência, uma vez que o mal está radicado no coração do homem. Se é assim, como é possível ter esperança?
Foi a esta pergunta que um encontro realizado em São Paulo quis oferecer uma possibilidade de resposta. O encontro tinha por objetivo discutir o tema a partir de experiências concretas, contando a história de mudança de pessoas, e aconteceu no dia 20 de agosto de 2004, no Centro Cultural Santa Catarina.
Participaram Dom Odilo Pedro Scherer (Bispo Auxiliar de São Paulo e secretário geral da CNBB), Dr. Munir Cury (procurador de justiça aposentado do Ministério Público do Estado de São Paulo, Consultor da FEBEM e especialista na questão dos direitos da criança) e Sêmea (professora da rede municipal de Brasília).
A primeira parte do encontro foi constituída pelo testemunho de Sêmea, que falou da realidade da educação na periferia de Samambaia-DF, convivendo com jovens em situação social de risco. Através da amizade com ela e outras professoras da escola, o relato de fatos ocorridos na década de 1990, de jovens que conheceram a comunidade católica de Comunhão e Libertação e, aos poucos, decidiram abandonar o tráfico e mudar definitivamente de vida. Um jovem foi assassinado ao dizer que não mataria mais.

Um encontro que muda
Não estamos diante de uma história trágica. É, na verdade, a história de uma entrega total a um amor: quando o rapaz percebeu que no seu mundo de miséria e violência era possível ter esperança, preferiu dar a sua vida para não tirar a vida de outra pessoa. E não vemos somente um caso extraordinário de conversão – antes, a entrega do jovem é o fruto extraordinário de uma educação: em seu encontro com a Igreja Católica, ele recuperou a dignidade da vida e aprendeu a amar a liberdade.
Diante de uma atentíssima platéia de aproximadamente 250 pessoas – que reuniu estudantes, professores e educadores, além de crianças de uma creche da Freguesia do Ó de São Paulo – Sêmea contou os passos da mudança deste jovem e as razões que motivaram seu relacionamento de amizade com o menino. Sêmea, que poucos dias antes do evento havia reencontrado amigos deste jovem, testemunhas de sua morte, repetiu a pergunta que um deles se fez: “Será que se ele não tivesse morrido nós teríamos mudado de vida?”. Em outra conversa, um deles, ex-integrante de uma gangue, disse: “Foi preciso que ele morresse para eu entender o que é a vida”.
A partir daí, a professora contou que a amizade com este jovem e com outros meninos da escola começou com o gesto simples de caridade de brincar com as crianças da escola, gratuitamente. A “caritativa”, como eram chamados esses momentos, era realizada por Sêmea e por outros amigos de Brasília, e nascia do desejo de compartilhar com qualquer pessoa o dom de Cristo que eles também haviam recebido gratuitamente. Assim, a escola da “Quadra 120” tornou-se um ponto de referência para toda a região.

Uma companhia que sustenta
Mas uma mudança assim acontece com o tempo e se for sustentada por uma companhia de amigos que aposta na liberdade. Nada disso foi resultado de um projeto social bem aplicado. Com seu modo espontâneo e verdadeiro, Sêmea resumiu seu “plano educativo” e a sua história: “O maior milagre que aconteceu foi a mudança da minha vida. Antes eu tinha a pretensão de mudar esses meninos, mas quem mudou fui eu. Entendi também que é preciso compartilhar a vida com eles. Se a gente não entra na vida deles não os conhece e não pode fazer nada. E os meninos têm sede de conhecimento – a maior sede desses meninos é conhecer quem eles são e saber se alguém se importa de verdade com eles, se alguém olha para eles. Mas se eu fiz tudo isso, se consegui viver tudo isso, é porque também fui olhada assim; em primeiro lugar por padre Virgilio, que foi como um pai que abraçou a mim e a minha família. Eu agradeço porque tive um mestre, o padre Virgilio Resi, que teve outro mestre, que foi padre Luigi Giussani”.
Um momento marcante da amizade entre a Sêmea e esses meninos foi um momento de férias com um grupo de estudantes de Comunhão e Libertação. No ônibus, voltando para casa após aqueles dias intensos de convivência, uma professora cita o poema O Desconhecido, de Jussara M. Santos, em que diz num dos versos: "De tanto olhar para o céu à procura de ti, meus olhos, negros que eram, ficaram azuis". E esse menino que depois foi morto, manifestou ali o desejo de ter seus olhos mudados também.

Uma história de graça
Após o testemunho de Sêmea, Dr. Munir Cury, consultor da FEBEM e especialista na questão dos direitos da criança, relatou sua experiência. Em primeiro lugar, Dr. Munir ressaltou que o sim a Cristo só foi possível através do sim de Sêmea. Depois explicou, baseado em São João da Cruz, que por essência toda criatura traz em si uma imagem “latente” de Deus, que emerge no tempo. A imagem divina destes jovens pôde florescer porque foi cultivada e educada por Sêmea e pelos outros amigos da comunidade. Em nenhum momento, disse Dr. Munir Cury, os meninos foram tratados como "delinquentes": eles foram tratados pelo que eram realmente, criaturas amadas por Deus. Dr. Munir falou ainda do jogo dramático entre o homem velho e o homem novo, sua filiação humana e sua filiação divina, pois o divino vai se mostrando na vida em um “crescendo”.
Para encerrar o encontro, Dom Odilo Scherer ressaltou que um testemunho assim é uma história em que a graça de Deus é favorecida por impulsos exteriores, que o permitiram tomar certas decisões. Por isso, a Igreja valoriza a educação como uma semente que pode frutificar em um determinado momento. Os meninos de rua não podem ser vistos como “pessoas sem futuro”, pois sempre permanece “um fundo de bondade aprisionado num emaranhado de vícios. Mas se existem pessoas que acreditam na possibilidade de recuperação desses adolescentes e os educa com esse coração, pode aparecer uma outra face”.
Educar para a liberdade é uma possibilidade que nasce de um encontro que abraça a pessoa em sua totalidade e não de projetos burocráticos ou esquemas ideológicos. Não se trata de uma proposição ingênua, mas de uma proposta dirigida a todos – adultos e meninos – que desejam construir juntos uma vida mais humana.