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Passos N.55, Outubro 2004

CULTURA - Meeting 2004

Um outro mundo neste mundo

por Emiliano Ronzoni

Nos anos 50 ele foi um dos primeiros a seguir o fascínio do encontro com padre Giussani, quando o pensamento era confronto de opiniões. Padre Pigi Bernareggi evoca as razões daquele início, relatando os indícios que despertam para uma racionalidade que transforma a vida.

Uma quarta-feira à tarde no Meeting de Rímini. O salão está lotado para o encontro “Razões de um início”. Ali, nas primeiras filas, estão os seus amigos de sempre, aqueles do início, do colégio Berchet, e depois há muitos outros, aqueles para quem Pigi sempre foi conhecido pelo relato dos “amigos dos amigos”, pois foi um dos primeiros a ser enviado em missão ao Brasil, a viver as dimensões do mundo. E também há os muito jovens, para quem esse padre ordenado em 1967 é apenas um nome.
Padre Pigi começa a falar. Recorda-se exatamente, momento por momento, de quando padre Giussani, subindo os degraus do Berchet, deu início a esta história. Vai lembrando. É justo evocar as razões, como sugere o título, no plural. Embora Giussani tenha se expressado no singular a respeito da grande razão para iniciar o que se faria depois: “Porque a única razão é que O conheçam. Que os homens conheçam a Cristo. Não conhecê-Lo é o único pecado”. “É certo, porque – diz Pigi – a única razão, no singular, era clara na cabeça de don Gius”. “Nós, que estávamos do outro lado – continua Pigi –, não tínhamos nada na cabeça, e foi só com o passar dos dias, com o acumular-se dos encontros, que começaram a se juntar idéias, indícios, trechos de razões de variada natureza, fundidas depois na grande racionalidade que decide o destino de uma vida”.
Padre Pigi começa o seu relato das razões fazendo uma lista pessoal delas. Ele tinha diante de si um mundo, vivia dentro desse mundo, o mundo dos seus 14 anos de idade, dos pais, do pós-guerra, do boom incipiente e do catolicismo moribundo, e don Gius chega e o atrai, a ele e a outros, e os arrasta e transporta para um outro mundo, um outro universo.
O seu relato, então, é a descrição da oposição entre dois mundos: o velho e o novo, do novo que os atraía. E enquanto padre Pigi fala de si, fala também de nós. Na medida em que as razões dessa escolha são elencadas, vem uma vontade de dizer: “A mim também aconteceu a mesma coisa”. Não importa o quando, o onde e o como, talvez uma razão se juntou há uma hora, aqui no Meeting, porque é a tal eterna história do encontro com uma presença inesperada.
Eis, então, os pontos de um início, segundo padre Pigi:

História de um início
1) O mundo de onde eu vinha era um mundo problemático. O pensamento era um confronto de opiniões. Todas as opiniões eram relativas, e todas eram, ao mesmo tempo e sem distinção, válidas e não-válidas. “Colocávamos tudo em discussão, inclusive o valor da discussão”. A versão livre do problematicismo? O diálogo. No universo em que nos introduzia don Gius, tudo, ao contrário, acontecia no âmbito da evidência. A evidência comunicada pela pessoa do outro e comparada com as evidências da minha pessoa. O juízo. Como era possível não optar, considerando a força da evidência de Giussani?
2) Os nossos anos eram o paraíso da confusão ideológica: cada aula era com um professor de ideologia diferente. O professor radical, o professor marxista leninista, o liberal, o agnóstico. A ideologia estava lá, proclamada, mas não havia traço algum de um mestre. E nós, ali, confusos a cada hora [E podemos dizer: também nós!]. Giussani falava da sua vida, em seu relato havia sempre os traços daqueles que foram os seus mestres, e, para nós, parecia até que os conhecíamos. Nas reuniões do “raio”1 ele descobria sempre a alma de verdade em cada intervenção de um aluno. Ouvia palavras que eram uma surpresa e uma descoberta, inclusive para ele. Quantas vezes o ouvimos dizer: “O que você disse? Repita-o, por favor”. Assim, na escola éramos alunos diante de professores. Com ele éramos discípulos diante de um mestre [Também nós!]. Podíamos permanecer indiferentes?
3) O caldo de cultura em que estávamos imersos modulava-se pelo Candide, de Voltaire, cabendo a cada um criar ou cultivar o seu reduzido círculo de interesses. Havia uma frase que Giussani gostava de repetir, porque expressava com perfeição o clima cultural daqueles anos: “Saber cada vez mais de cada vez menos, até saber tudo de nada”. E, pelo contrário, Giussani abria para as dimensões do mundo, nos lançava no mundo.
A sua medida era grande. Iniciativas, congressos, encontros com personalidades. Com ele, a frase de Pio XII “As dimensões da Igreja são as dimensões normais da vida do cristão” era um programa.
4) O tédio. O maior contraste entre o mundo de onde eu provinha e aquele que don Gius nos apresentava estava no tédio. Eu passava longas férias em Versilia, o dia inteiro sem fazer nada, conversando sobre bobagens. “Desmotivado”. Em casa, em Milão, eu me contentava em olhar e anotar as placas dos ônibus que passavam na rua para ver quanto tempo levavam para fazer o trajeto. O tédio [Também nós!]. Depois, quando Dino Quartana me laçou e me levou para GS2, as férias em Versilia, que antes me aborreciam, tornaram-se uma outra coisa. Eu procurava os amigos de GS. E na praia fazíamos uma caminhada até Cinque Terre, para encontrar os amigos milaneses e continuar a caminhada também com eles. E a praia fervia de atividades. Antes, sem sentido e tédio. Depois, sentido e alegria. Como não escolher aquele outro mundo ali?

Um outro mundo
5) Como tantos adolescentes, eu era tímido, achava que não valia nada e a minha auto-estima estava lá embaixo. E com o don Gius florescíamos, nos tornávamos livres. Fazíamos coisas novas, tomávamos iniciativa na escola e fora dela. E eram coisas nossas, nós, meninos, é que agíamos. Havia a amizade; nos tornávamos responsáveis pelo “raio” ou pela secretaria e a organização era um modo para viver juntos a amizade. Justo nós que, por causa de uma pequena espinha, já tínhamos medo de sair de casa [Também nós!]. Era a descoberta do eu! Padre Giussani não estava atrás dos líderes, como ocorria em outras organizações; o que ele procurava era fazer emergir o melhor de cada um de nós. Um outro mundo!
6) E quando vivíamos com a auto-estima lá embaixo, tudo em torno de nós nos falava da afirmação de si. Inclusive com o apoio da família: “Você precisa se destacar mais”. Lembro uma vez que Giussani nos convocou para uma reunião. Nós tivemos que esperá-lo, porque estava um pouco atrasado; assim, enquanto esperava, eu me postei na janela e de repente o vi subindo a rua, sozinho, como uma criança abandonada nas mãos de Deus. Alguém nos disse que a sua voz rouca surgiu de tanto ele gritar com os meninos que lhe tinham sido confiados nos oratórios. A uma pessoa que o censurava pelo seu demasiado entusiasmo, ele respondeu: “Melhor gastar do que perder”. Assim nós, olhando sua figura, íamos nos plasmando. Entre nós destacavam-se não aqueles que se impunham, mas os abandonados, aqueles que se entregavam livremente. De modo que nós, quase sem o saber, saíamos do mundo do poder para entrar naquele dos que se abandonavam nas mãos de Deus.
7) E os passeios? E na montanha? Andávamos todos em fila, e os mais fracos e as meninas ficavam todos na frente. Eram eles que ditavam o ritmo das passadas. Porque ninguém devia ficar para trás, tanto nos passeios quanto na consideração dos outros. E nos jogos? Nunca times prontos, já formados. Os times eram sempre formados a partir do “par ou ímpar”, de modo que todos jogassem, ninguém devia ser excluído. Nos descobríamos irmãos. E essa era mais uma razão para estar ali, naquele mundo, e não no outro.

Verdadeira autoridade
8) O mundo político nos via como uma força espantosa. Fascista ou social-comunista, não importa. Tinha que ser o que eles diziam ser. Don Gius explicava: para obedecer, é preciso identificar-se de tal modo com as razões da verdadeira autoridade que, no final, você também se considere uma verdadeira autoridade. Assim, nós também aprendíamos a ser autoridade, introduzindo-nos nas razões do outro.
9) A carreira, o dinheiro, o futuro. O futuro era decidido em função do sucesso. E cada um de nós fazia a sua escolha autônoma, independente, na solidão. Na comunidade, pelo contrário, a opção era feita em comum, um ajudando o outro a escolher aquilo que melhor correspondesse ao desejo do seu coração. De um lado, o mundo do monólogo, da solidão; do outro, o mundo do diálogo.
10) Os anos 50 eram os anos do boom. O homem começava a evidenciar-se e a ser teorizado como função do valor econômico. O homem consumidor. E Giussani dizia: quando você traz um amigo para o grupo, não o deixe sozinho. Fique sempre com ele [conosco também foi assim!], torne-se eternamente responsável pelo seu amigo. Porque a pessoa vale mais do que qualquer uma de suas manifestações.
11) Milão, a grande metrópole, com o seu barulho, o barulho da modernidade. O tráfego, as luzes, os bares, o rock and roll, e Giussani nos ensinava o silêncio. Certa vez, em frente a uma Igreja, viu-se diante de uma mulher em lágrimas, porque uma bomba havia destruído sua família, o marido e os filhos. “Coloque-se ali, em silêncio, diante do Cristo crucificado”. Nas férias o silêncio à noite para recitar uma dezena do Rosário. Ou o silêncio antes de dormir. Dizia: “Silêncio do piso ao teto”, e tudo calava. Ou o silêncio na recitação da Liturgia das Horas, ao longo do dia, ou o silêncio para escutar o coral. O silêncio da Presença e da memória. Como não ficar fascinado? Mas isso não ocorria por acaso. Vinha de um universo novo. Era e é um mundo novo.

O desafio
12) Certa vez, no colégio, um amigo tirou o casaco. Na camiseta, o símbolo da Ação Católica. Logo um dos nossos coordenadores o aborda: “Vejo que você é cristão. Quer vir conosco? Nos encontramos tal dia e tal hora, e vamos tratar deste tema. Esta é a ordem do dia. Quer vir?”. Que diferença! Não o jeitinho dos cristãos mimetizados, mas o desafio. O primeiro jornalzinho que fizemos chamava-se justamente O desafio. Também aí era como se a gente passasse de um mundo para o outro.
13) E o cristianismo? Aprendíamos que não devíamos nos emporcalhar com as coisas do mundo. As coisas sagradas não deviam ser aviltadas. E don Gius repetia, ao nosso coração de jovens, uma frase de Justino: “Nada do que é humano me é estranho”. E nos estimulava a procurar o desejo de Cristo em cada ação humana. E nós partíamos com as fichas de revisão crítica dos conteúdos. De Giotto a Leopardi, passando pela física de Heisenberg.
Padre Pigi conclui o relato dos mil indícios, das mil razões que nos
abriam para a grande racionalidade que decide uma vida. Dele, que se tornou padre no Brasil, e de cada um de nós, que agora o escutamos. Também para nós, razão após razão, uma coisa ficou muito evidente. A mítica “idade de ouro” do início é agora. As suas mil razões são as mil razões também do último colegial que acaba de encontrar o Movimento. Naquela época padre Pigi abriu-se para o mundo; agora, aqui no Meeting, o mundo bate à nossa porta. Vemos personalidades políticas, encontramos homens de cultura, discutimos e analisamos os dramas das várias regiões do mundo. Nós comparamos as evidências da pessoa deles com as evidências do nosso coração. Damos juízos, lavamos os pratos, preparamos as notas para a imprensa, trabalhamos na secretaria. Nós somos protagonistas. Silenciamos enquanto rezamos. Cantamos e escutamos as canções. Limpamos os banheiros voluntariamente e o primeiro encontro que abre o Meeting é para nós. Porque nós estamos no início da fila. E você também dialoga e luta para que o futuro corresponda, antes de tudo, ao desejo do seu coração.

Notas

[1] Reunião que acontecia semanalmente em cada escola e para a qual os estudantes convidavam seus colegas com base numa ordem do dia que dava a direção para a discussão. Segundo a sua própria definição, o “raio” se propunha como estrutura não fechada, mas aberta a todos, cujo objetivo era comunicar a própria pessoa, através do relato e da comparação da própria experiência. Do “raio” participava livremente quem quisesse.
[2] GS é a sigla de Gioventù Studentesca (Juventude Estudantil), primeiro núcleo do movimento Comunhão e Libertação.