Muitos criticaram a presença religiosa nas campanhas eleitorais deste ano. Mas, numa democracia, não seria evidente, e até desejável, que organizações sociais com altos índices de confiança da população -como são as igrejas- se expressem nos momentos de eleições?
É verdade que as democracias precisam se defender de práticas antidemocráticas nascidas do fundamentalismo religioso -bem como da manipulação da mídia, de vanguardas e elites encasteladas em postos de poder ou do próprio governo. Esses mecanismos, porém, não podem se tornar, eles mesmos, autoritários.
No caso do aborto, Dilma e Serra, ao se declararem contra mudanças na lei atual, estariam apenas atendendo à maioria, se esta é a posição de 71% da população, como diz pesquisa Datafolha.
O erro esteve no clientelismo político, em função do qual essa posição foi assumida como concessão eleitoreira, e não como vontade da maioria ou direito humano.
Religiosidade e crença são grandes formadores da autoconsciência e dos valores morais -marcando nossas posições no mundo, mesmo quando não seguimos os preceitos das igrejas. Ajudam a construir nossa consciência ética individual e coletiva. Desse modo, entram no debate político -o que implica o compromisso com o bem comum, mas não "neutralidade".
No debate político, a forte oposição ao fator religioso nasce de sua insistência em declarar que público e privado não podem ser separados, como insiste a ideologia moderna. A dominação em nossa sociedade se baseia na crença de que a pessoa tudo pode na vida privada, desde que se conforme à ordem pública e ao bem comum.
Oculta que nossa privacidade é permanentemente invadida e manipulada pelo mercado, pela propaganda, pelas políticas públicas etc. A autonomia da vida privada é a ilusão que permite a dominação moderna em todas as esferas. A religião é justamente o espaço em que as éticas privada e pública se encontram, em que o sentido da vida deixa de ser questão individual para ser trabalhado como construção social.
Por isso, a lógica religiosa questiona e desafia a organização ideal da política moderna, e a presença das igrejas neste cenário -mesmo quando não são fundamentalistas e ajudam na luta pelo bem comum- incomoda tanto. O aborto, sem dúvida, é um tema emblemático desse debate, mas não é o único.
O fundamentalismo se caracteriza pelo sectarismo e pela recusa em participar do debate racional. O leitor pode encontrá-lo entre religiosos e laicistas. A construção do bem comum exige de ambas as partes o esforço de se deixar questionar pela outra. A relação entre público e privado é o pano de fundo, pouco expresso, desse debate.
FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO é coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP e um dos organizadores dos livros "Um Diálogo Latino-Americano: Bioética & Documento de Aparecida" (Difusão, 2009) e "Economia e Vida na Encíclica Caritas in Veritate" (Companhia Ilimitada, 2010).
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