Dos primeiros encontros com os jovens italianos na década de 1970 à fundação da Companhia das Obras, passando por visitas de Dom Giussani e padre Francesco Ricci, pelas lutas dos Solidarnosc e uma creche nascida de uma caritativa... No aniversário da queda do império soviético, viagem à comunidade polonesa de CL, para chegar às raízes de uma amizade que hoje, como naquela época, é capaz de desafiar a confusão
O campanário da catedral enegreceu. É possível vê-lo de baixo. Parece coberto de fuligem. Quase como se não pudesse tirar dos ombros toda a sua história. No entanto, aqui e ali, ainda é possível ver a argila clara da qual é feito. “Está empoeirado, como nós.” Krystyna fala da sua Polônia. Acabou de voltar da Jornada de Início de Ano. Junto com outras quinhentas pessoas do Movimento vindas de todo o país, escutou a palestra de padre Carrón projetada em Jasna Góra, onde ouviu que na vida é possível ficar “sem palavras” diante de um certo modo de sentir e olhar o humano e, “depois de dois dias já ter se esquecido”, não pensar mais a respeito. “Esta é a Polônia”, diz.
Não precisaria acrescentar nada além dela: os olhos azuis na catedral de Swidnica pensa na história grandiosa de sua Nação. Não é uma história distante. “Na Polônia também aconteceu o esquecimento. E, agora, está confusa.” Menos de trinta anos depois do agosto de Danzica, daqueles operários de joelhos que encantaram o ocidente adormecido, do sacrifício da vida de homens que destruíram o regime comunista, “hoje esse país está imerso na confusão”.
Krystyna treme de frio na neblina de Swidnica, pequena cidade perto da divisa com a República Tcheca. Fala da Polônia, mas fala de si. Quando Dom Giussani foi pela primeira vez a Olsztyn, no ano de 1983, disse que o cristianismo estava num nível “fisiológico”. A ela, jovem inflamada pela libertação, pareciam palavras rudes, se não injustas. “Porém, eram proféticas. Era como ouvir dizer que a vida pode ser permeada pela fé, mas de maneira inconsciente, quase mecânica, potencializada pela reação contra o regime.” Krystyna ainda está espantada pelo modo como aquele padre italiano soube ver tão longe. Ou talvez percebesse com profundidade o que estava acontecendo.
“Ele conseguia ver isso melhor do que qualquer um de nós”, irrompe padre Józef Jonczyc sentando-se ofegante em uma taverna no centro de Cracóvia. Com ele, estão Zofia, Anna, Stanislaw, Jacek... os amigos desta comunidade de cerca de trinta pessoas, quase todos adultos. O grupo dos universitários (CLU) coincide com o rosto de Stanislaw, estudante do quarto ano de Engenharia das Telecomunicações. Padre Józef conta que padre Francesco Ricci, um dos primeiros amigos de Dom Giussani que acompanhou, na Polônia, a vida da Igreja, da cultura, e depois do nascimento do Movimento, repetia sempre que “uma tradição que não é consciente das suas origens, não vive”. Pedia àqueles jovens poloneses que acabara de conhecer que vivessem com profundidade, que conhecessem verdadeiramente aquela tradição que a partir da unidade com a vida e da força ideal fez nascer a liberdade e permitiu o testemunho luminoso de Solidarnosc. “É preciso conhecer, ser conscientes. Porque é difícil amar aquilo que não se conhece”, diz padre Józef.
Ele aprendeu isso na própria pele. No décimo ano de sacerdócio. Via como uma divisão o fato de sua fé “não ser suficiente para enfrentar a vida”. Seu empenho com as pessoas não dava frutos e ele estava em crise. Pensava: ou me empenho pouco, ou aquilo que proponho não é uma resposta. “Estava frustrado. Minha maneira de viver era ideológica e a minha compreensão do cristianismo superficial. O encontro com Cristo, por meio do Movimento, salvou minha vida porque me fez compreender isso”. Diz que quem não está contente com a própria vida é porque não a entende. “Por isso o cinismo se espalha pela Polônia.”
A TRISTEZA DO PAPA. Os noticiários dizem que nunca houve tantos suicídios entre os jovens como nestes anos. “Agora que somos livres...”, diz Zofia que está ao seu lado. Padre Józef sente-se nos anos 50 na Itália, quando Giussani encontrava os jovens nas lamentações e os via distantes da fé. “Hoje, entre nós, existe uma confusão em relação às razões da existência. É porque não é possível viver sem a fé. E eu sinto compaixão por quem não a tem.” Levanta o olhar e a voz para um jovenzinho na outra ponta da mesa, e diz paternalmente: “Fique atento para que eu não precise ter compaixão de você, Francesco!”. Tem dezoito anos. Ele e os outros rapazes que estão jantando são “os filhos da Igreja”, brinca padre Józef. Mas o são literalmente. Nasceram dos encontros com os primeiros italianos do Movimento que vieram à Polônia por causa de uma trama de relacionamentos. Filhos das peregrinações à Czestochowa ou da construção das igrejas. Seus pais se conheceram assim. Como Luigi, pai de Francesco, enviado de Roma para ajudar a construir a igreja de Santa Edwiges em Cracóvia, junto com outros universitários. Ali, conheceu e se casou com Anna. Ela tinha dezoito anos, agora, janta com Maria nos braços, a filha mais nova. “Eu e meus amigos éramos católicos, mas aquilo que tocou todos nós foi a unidade destes jovens vindos da Itália.” Pareciam amigos de infância e, no entanto, tinham se conhecido na viagem para a Polônia. Na mesa, as crianças escutam a mãe contar sobre o casamento com Luigi, como o viu crescer na fé enquanto sua família crescia, e como a viu desaparecer no período de dez dias, quando os médicos deram a ele dois anos de vida. “A partir daquele momento, tudo o que aconteceu em minha volta foi a comunidade que fez. Foi Deus quem fez. Os turnos diurnos e noturnos, a comida, tudo aquilo de que precisávamos, eles nos ofereceram. E, naquilo tudo, percebi que não estava sozinha.” Padre Józef olha novamente para os menores. “O mundo joga vocês em direção ao nada no qual os jovens como seus pais viviam na Itália. E do qual eles se salvaram seguindo o cristianismo. Aquilo que acontecia lá, agora acontece aqui.”
Os maiores que estavam à mesa viveram o estado de guerra de Jaruzelski, a suspensão dos direitos civis, a censura. Mas agora estão preocupados em enfrentar a vida que avança. “Hoje são colocadas em discussão coisas que sempre foram indiscutíveis. Há alguns anos, não eram sequer imagináveis.” Porém, os primeiros sinais apareceram em 1991, quando, em uma viagem para cá, João Paulo II falou muito duramente sobre o quinto mandamento e sobre o aborto. E pela primeira vez, foi criticado. Não entenderam porque ele levantava a voz exatamente na Polônia. “Ele se dava conta do perigo. Voltou ao Vaticano muito triste”, lembra padre Józef. No entanto, foi exatamente uma visita do Papa, em junho de 1979, a “marcar o início da queda da Cortina de Ferro”, como disse o Cardeal Stanislaw Dziwisz, na época secretário pessoal do pontífice: “A queda do Muro começou ali e não em Berlim”.
MAIOR DO QUE O ESTÁDIO. Reconquistada a liberdade, “ficamos mais preocupados em possuir que em ser”, continua padre Józef. Hoje, na Polônia discute-se o caso de uma mulher que pediu para fazer o aborto porque corria o risco de perder a visão. Ela não recebeu autorização e entrou com recurso (vencendo-o) junto à Corte de Strasburgo. Sua filha, de nove anos, assiste a tudo isso. A vida além da Cortina era feita de uma separação clara entre verdade e mentira. “Ninguém tinha dúvidas sobre qual era o espaço onde o homem podia viver e onde morria”, diz Zofia enquanto saímos da taverna. Parece que pelas ruas da Polônia se pode respirar esse espírito marcado para sempre em sua história. Ruas escuras e silenciosas, de toque de recolher, e as luzes quentíssimas das janelas das casas. Tanto mais intensas as luzes quanto mais densa e fria é a escuridão fora.
Nestas ruas de pedra de Swidnica ficava o bairro soviético. Aqui, morava a Armada Vermelha. E aqui, hoje, fica a creche da Fundação Ut unum sint, que acolhe crianças das famílias mais pobres da cidade e alguns órfãos. É um refúgio pensado para eles em cada detalhe. Os bordados nas janelas, as cadeiras minúsculas e os armariozinhos pintados. Os pequenos, que vêm de casas sem eletricidade, comem em companhia de um elegante piano de cauda. Danuta é a responsável “faz-tudo”. Sua vida se desenvolveu junto a esta obra de caritativa. Tinha dezesseis anos quando, na festa de São Nicolau, por gratidão pelo encontro com o cristianismo, levou junto com seus amigos presentes para as crianças mais necessitadas. Não as deixou mais, tornou-se sua irmã, mãe e avó. Hoje, na creche, estão os filhos daquelas primeiras crianças. Fica com elas da manhã à noite, batiza-as e as faz crescer. À tarde, há o reforço escolar para os jovens e ainda curso de línguas, oficinas, esporte.
Agora, a partir da Ut unum sint nasceu, em Zdzieszowice, perto de Opole, uma outra obra educativa chamada Otwarte serce (coração aberto), que deu vida a uma atividade de reforço escolar. “Nada disso existiria”, diz Danuta, “sem a amizade que me sustenta. Nem mesmo poderia pensar em fazê-la. A pessoa pode ser muito competente, mas sozinha se consome”.
É a mesma coisa que, no dia anterior, ouvi Jacek, um construtor civil de Wroclaw, de trinta e cinco anos, dizer. É a partir dele que está nascendo a Companhia das Obras (CdO) polonesa. Dele e de seu “fracasso” profissional. Este ano, sua empresa tinha em mãos um projeto importante: a construção do estádio para os Jogos Europeus de 2012. O trabalho iniciou bem, depois começaram as complicações, até a decisão de se retirar do projeto. “Faltou unidade. Nem mesmo um objetivo grande e bonito como o estádio foi capaz de manter as pessoas unidas. Para mim, ficou uma desconfiança e entrei em crise.” Então, seus amigos disseram uma coisa simples e revolucionária: “Que eu sou maior do que o projeto do estádio”. Convocou seus colaboradores tendo em mente essas palavras. “Naquele dia, disseram-me que era a primeira vez que encaravam o trabalho assim. Eu pude ver que o que me faz crescer não é o trabalho em si, mas a possibilidade de conhecer a minha consistência nas coisas que acontecem. Aquilo que me salvou foi o juízo. E este juízo foi dado em companhia.” Assim, em volta desta mesa de madeira maciça, diante dos copos fumegantes, a CdO, a fundação, a creche, se colocam no seu lugar. “São apenas uma consequência, uma ajuda”, diz padre Jurek Krawczyk. Ele é o responsável pelo Movimento na Polônia, que hoje tem comunidades em muitas cidades do país, de norte a sul. “Se falta o meu 'eu', nada é suficiente. Não importa o que eu faça, o problema é quem responde à falta que trago dentro de mim. Aqui, percebo que todos nós precisamos de uma grande ajuda no trabalho que nos é proposto sobre o juízo. Dou-me conta disso porque ultimamente, na minha vida, tudo mudou.”
Depois de vinte e dois anos de sacerdócio e treze como pároco, ele precisou voltar ao seminário. É orientador espiritual em Opole. “Eu poderia pensar que é apenas uma mudança de função, mas é muito claro que Deus está me falando. Está me educando por meio dos fatos, me despoja de tudo para me fazer ver do quê eu tenho necessidade.” E, depois de vinte anos, entende aquilo que padre Ricci disse a ele no histórico encontro entre Gorbatchev e Wojtyla: “Para vocês, terminou a luta feroz. Agora virá a cultura sem Deus. Vocês se enfraquecerão se não ficarem juntos e não se deixarem educar”. E pensa no telefonema que acabou de receber de um casal ucraniano, que se mudou para a Polônia exatamente porque são católicos. Trabalham em uma fábrica e quando, no domingo, param para ir à missa, todos zombam deles. “Chamaram-me para me perguntar onde a Polônia terminou.” O jovem Jacek diz que ele a encontra no santuário de Jasna Góra, onde sempre há uma grande multidão. “Quando vi jovens de todo o país irem lá para rezar, disse a mim mesmo que a Polônia não acabou.” E vêm em mente as palavras do Cardeal Dziwisz diante dos universitários em peregrinação a Czestochowa: “Vocês são a realização das palavras de João Paulo II: Não tenham medo, abram, ou melhor, escancarem as portas a Cristo”.
O MANTO DA VIRGEM. Ainda hoje é assim, a igreja de Jasna Góra é lotada. A multidão é silenciosa, os casacos pesados e os cachecóis, todos ajoelhados, durante muito tempo. Um povo para quem se ajoelhar é familiar como se sentar. Entre as cabeças inclinadas está a loiríssima Annette. Alemã, veio à Polônia há quinze anos para acompanhar o marido Wojciech, prefeito de Swidnica. Hoje, estão aqui juntos para a Jornada de Início de Ano. Mas, ontem, Annette recebeu um telefonema de sua mãe: seu pai teve a doença agravada e poderia morrer de um momento para outro. “Queria ir para Heidelberg, mas vim para cá. Rezar e oferecer todo o medo é a coisa mais importante para eles e para mim.” Veio para confiar-se a Deus. Balançando no ônibus que atravessa os campos, vejo atrás de mim Czestochowa, a colina e o manto desta Virgem Negra que sempre protegeu a verdade do espírito polonês, e penso nas palavras de padre Ricci: “Se se deixarem educar, vocês serão uma fortaleza para a Polônia”. Querem ver logo esta fortaleza. Assim que voltaram para Swidnica, Annette entrou em casa e telefonou para a mãe. Sente-a serena, confortada, “não tem mais medo da morte que está chegando: contou-me que teve um dia cheio de amor e de afeto com meu pai”. Ele, que nos dias anteriores não conseguia nem falar, hoje, diante do padre que lhe dava a extrema unção, cantou o Hino ao Espírito Santo. “Isso é obra de Deus”, diz Annette, “Deus me responde e me liberta quando me entrego a Ele”.
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