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Passos N.106, Julho 2009

DESTAQUE - EXERCÍCIOS DA FRATERNIDADE

Da fé, o método

Nestas páginas, trechos de obras de poetas, filósofos e romancistas que exemplificam algumas passagens do percurso desenvolvido durante os Exercícios da Fraternidade. É nosso modo simples de ajudar a mergulhar no texto do suplemento desta edição. Boa leitura!


A fratura entre saber e crer

A nítida separação entre saber e crer, entre conhecimento e fé, é uma síntese das decisões que atravessam e caracterizam a época moderna. Tal separação define – como vimos –, de um lado, uma esfera de saber em que domina uma concepção racionalista da razão (uma razão como “medida do real”, denominava Dom Giussani), que nada tem a ver com a questão do significado último da vida, com o Mistério e com a fé; e, de outro lado e de forma correspondente, uma esfera do crer entendido como âmbito não racional, do sentimento, de decisões subjetivas acerca dos valores, em que está confinado todo o fenômeno religioso. O crer, portanto, encontra-se em drástica oposição a um saber concebido de forma racionalista.
Julián Carrón, Da fé, o método, p. 15

Se é uma loucura confinar a vida
na armadura mental de uma equação,
mais grave ainda é sufocar com a mão
a boca soluçante da ferida.
Que a dor, escandalosa e inconsentida,
sirva de último antídoto à ilusão,
à promessa falaz da perfeição,
essa paixão do ser pela medida.
Há no número um jogo que seduz
para longe de tudo: a alma se nega
à agonia da carne, à flor de pus,
e vai pintar, brincar com a noite cega...
Mas a arte é redenção depois da entrega
à escuridão que vai roendo a luz."
Bruno Tolentino, O mundo como idéia,
Ed. Globo, São Paulo, 2002

Creio ter descoberto o segredo do universo, que consiste no fato de que não existe nenhum segredo. É este o problema dos modernos: não possuem o senso do mistério.
Bruce Marshall, Tutta la gloria nel profondo, Jaca Book

A ciência moderna já pouco pode fazer para restituir-nos o senso experiencial do mundo e, ao contrário, muito tem feito para enfraquecê-lo, infelizmente. Habituados a pensar que há uma explicação para tudo aquilo que nos acontece, delegamos à ciência a formulação das perguntas e das respostas, a ponto de “desaprender” a nossa própria experiência, para deixá-la ser ditada pelo especialista da vez.
Luisa Muraro, No mercado da felicidade
Ed. Mondadori, Milão

Parece uma Igreja destinada a perder-se e a deixar-se substituir por uma mais fácil e experimentável concepção racional e científica do mundo, sem dogmas, sem hierarquias, sem limites para o possível gozo da existência, sem a cruz de Cristo. E se a Cruz de Cristo é eliminada, com tudo o que ela comporta, o que permanece da nossa religião? O que permanece da Igreja? Vendo as coisas dessa maneira, compreende-se como a Igreja encontra-se em dificuldades (...) Será que abriu-se um abismo, que parece intransponível, entre o pensamento moderno e a velha mentalidade religiosa e eclesial? Não teria sido absorvido pela cultura profana o tesouro de sabedoria, de bondade, de sociabilidade, o qual parecia ser patrimônio característico da religião católica, até quase esvaziá-la e privá-la de muitas de suas razões de ser, para substituir este patrimônio pelo costume laico e civil do nosso tempo? Será que ainda é preciso que a Igreja ensine a amar os pobres, a reconhecer os direitos dos escravos e dos homens, a cuidar e dar assistência aos sofredores, a ensinar os analfabetos? Tudo isso, e parece muito melhor, o mundo profano faz por si; a civilização caminha com forças próprias. (...)
Mas, agora, nós propomos uma pergunta, que investe todo o sistema: a Igreja pode superar as dificuldades presentes? A resposta, para nossa sorte, é fácil, porque não é formulada pela prudência humana, não é fundada sobre as nossas pobres forças. A resposta está na promessa de Cristo: non praevalebunt (Mt 16,18); vobiscum sum (Jo 16,33). Para além dos resultados problemáticos que possam ter nossos difíceis confrontos, lembrem-se de que estas são palavras verdadeiras, palavras divinas. Nós podemos, nós todos devemos levá-las a sério. O que significa “levar a sério”? Significa esta nossa postura fundamental: significa dar-lhes crédito; significa acreditar. Dizemos claramente: a fé é a primeira condição para superar as dificuldades presentes. O apóstolo João confirmou isso: “Esta é a vitória, que vence o mundo: a nossa fé”.
Paulo VI, Audiência Geral
Quarta-feira, 11 de setembro de 1974


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A correspondência

“A primeira condição para que o acontecimento, o Movimento como acontecimento, como fenômeno imponente, se realize, a primeira condição é exatamente esse sentimento pela própria humanidade [...]: a ‘afeição por si’”. E o que quer dizer essa afeição por si? Não é um sentimentalismo: “A afeição por si reconduz à redescoberta das exigências constitutivas, das necessidades originais, na sua nudez e vastidão [...]: uma espera sem limite. [...] Essa é a originalidade do homem; com efeito, a originalidade do homem é a espera do infinito’”.
Mas é isso que tantas vezes falta entre nós, esse senso do mistério, de modo que, no final, faltando o Mistério, tudo nos “corresponde” porque tudo é a mesma coisa. “É esta a desgraça dos modernos: não possuem o senso do mistério”. Muitas vezes, falando entre nós, essa é a coisa que mais falta.
Julián Carrón, Da fé, o método, p. 23

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo – que foi? passou – de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

– Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.
Manuel Bandeira, Lira dos cinquent’anos,
in: Estrela da vida inteira, 1993

És tu a Primavera que eu esperava,
A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
Poemas escolhidos, 2004

Antes de amar-te, amor, nada era meu:
vacilei pelas ruas e coisas:
nada contava nem tinha nome:
o mundo era do ar que esperava.

E conheci salões cinzentos,
túneis habitados pela lua,
hangares cruéis que se despendiam,
perguntas que insistiam na areia.

Tudo estava vazio, morto e mudo,
caído, abandonado e decaído,
tudo era inalienavelmente alheio,

tudo era dos outros e de ninguém,
até que a tua beleza e tua pobreza
de dádivas encheram o outono.
Pablo Neruda, Cem sonetos de mor,
Ed. L&PM, Porto Alegre, 2001

A sua vida lhe parecia agora tão vazia com relação aos dias anteriores, alegrados pela presença de Tamar. E não apenas vazia: tinha a impressão de que antes do seu aparecimento tivesse agido sem refletir, de modo mecânico, automático, superficial. Mas agora, cada coisa que lhe acontecia, cada pessoa que encontrava, cada pensamento seu... tudo se recolhia e se direcionava a um único ponto central, profundo, borbulhante de vitalidade.
David Grossman, Alguém com quem correr,
Ed. Mondadori, Milão

Quem é alguém que caminha
Toda a manhã com tristeza
Dentro de minhas roupas, perdido
Além do sonho e da rua?

Das roupas que vão crescendo
Como se levassem nos bolsos
Doces geografias, pensamentos
De além do sonho e da rua?

Alguém a cada momento
Vem morrer no longe horizonte
De meu quarto, onde esse alguém
É vento, barco, continente.

Alguém me diz toda a noite
Coisas em voz que não ouço.
Falemos na viagem, eu lembro.
Alguém me fala na viagem.
João Cabral de Melo Neto, O engenheiro,
in:O Cão sem plumas, Ed. Alfaguara Brasil – Objetiva, 2007

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Algo que vem antes

“Deparar-se com uma presença de humanidade diferente vem antes não apenas no início, mas em cada um dos momentos que se seguem ao início: um ano ou vinte anos depois. O fenômeno inicial – o impacto com uma diversidade humana, o maravilhamento que nasce desse impacto – está destinado a ser o fenômeno inicial e original de qualquer momento do desenvolvimento. Pois não se dá nenhum desenvolvimento se esse impacto inicial não se repete, ou seja, se o acontecimento não continua a ser contemporâneo. [...] O fator que está na origem é sempre o impacto com uma realidade humana diversa”.
Por isso precisamos acrescentar ao que foi dito nesta manhã: a contemporaneidade de Cristo não é condição só do início, mas de cada passo do caminho. A alternativa é clara: ou se renova, reacontece, ou nada avança, não se dá verdadeira continuidade e o carisma está morto e sepultado. Mas a coisa mais perturbante é que se não se renova agora, sequer entendemos o que nos tinha acontecido no início, porque “se a pessoa não vive agora o impacto com uma realidade humana nova, não entende o que lhe aconteceu antes. Só se o acontecimento reacontece agora é que o acontecimento inicial se esclarece e se aprofunda e, assim, se estabelece uma continuidade”.
Julián Carrón, Da fé, o método, p. 38

Antecipa quanto quiseres o teu despertar: vais encontrá-lo lá, ele chegará sempre primeiro.
Bernardo di Chiaravalle, Sermão sobre o Cântico dos Cânticos,
Piemme, 1999

O acontecer é mais originário que o fazer, cujas obras vêm mais que tudo tecidas nas tramas do acontecimento.
Hanna Arendt, Cadernos e Diários,
Neri Pozza, 2007

A repentinidade dos dons divinos não tem nada de fugaz. Aquilo que vem... chega sem preparativos...; mas, com a sua irrupção, abre um tempo novo, de uma novidade que não passa e incessantemente nos renova.
Jean Louis Chrètien, O Inesquecível
e o Inspirador
, Cittadella, 2008

A vida não é um estar, um período: é um fazer-se que deve ser sustentado por algo que simplesmente já está lá anteriormente.
Maria Zambrano, Os Sonhos e o Tempo,
Pendagron, 2004

Com teu olhar suave
alguém que não és tu me olha: sinto
confundir-se ao teu um outro amor indizível.
Alguém me ama nos teus “te amo”,
acaricia minha vida com tuas mãos e infunde
em cada teu beijo o seu palpitar.
Alguém que está além do tempo, sempre
atrás do oculto limiar do ar.
Miguel d’Ors, Crônica

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A flor da esperança

Se nós não podemos conhecer realmente que Cristo ressuscitou, se não podemos vencer a fratura entre o saber e o crer, não existe a possibilidade da esperança. Se não existe esse conhecimento da realidade, da ressurreição como fato real, documentada pela mudança que nós podemos ver agora como viam aqueles que encontraram Pedro e João, não existe a possibilidade da esperança.
É só porque Cristo ressuscitou, porque existe, que agora podemos olhar no rosto a grande pergunta: “Esses desejos serão satisfeitos, sim ou não? Este é o ponto. Esses desejos, feitos segundo as exigências do coração [desejos do infinito], podem estar certos de serem realizados [...] só na medida em que – não é fácil dizer! – uma pessoa confia no conteúdo da fé, só na medida em que se abandona, confia e se abandona à Presença que a fé indicou [a presença de Cristo ressuscitado]”.
Julián Carrón, Da fé, o método, p. 47

Eu vi um rosa
- Uma rosa branca -
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha
No jardim, na rua.

Sozinha no mundo.

Em torno, no entanto,
Ao sol de meio-dia,
Toda a natureza
Em formas e cores
E sons esplendia.

Tudo isso era excesso.

A graça essencial,
Mistério inefável
- Sobrenatural -
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.

Sozinha no tempo.

Tão pura e modesta,
Tão perto do chão,
Tão longe na glória,
Da mística altura,
Dir-se-ia que ouvisse
Do arcanjo invisível
As palavras santas
De outra Anunciação.
Manuel Bandeira, Lira dos cinquent’anos,
in: Estrela da vida inteira, 1993

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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