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Passos N.46, Dezembro 2003

CULTURA

Nossa Senhora da Boa Morte

por José Eduardo Ferreira Santos

A festa da irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, em Cachoeira, na Bahia. A dormição e glória de Nossa Senhora, comemorada por mulheres negras, descendentes de escravos africanos. Diante do sofrimento, uma resposta de reunir-se e promover a resistência e a comunhão

Todo ano, no mês de agosto, os olhos e as atenções do povo baiano voltam-se para um grupo de mulheres negras, com idades entre 50 e 70 anos, descendentes de escravas, que, em torno da devoção a Nossa Senhora da Boa Morte, percorrem as centenárias ruas da cidade de Cachoeira, no Recôncavo, perfazendo o antigo ciclo da dormição de Maria, com o cortejo fúnebre, a assunção de Maria aos céus, e a festa, tudo isso envolto na dinâmica cultural das tradições brasileiras e luso-africanas. Cachoeira é uma cidade colonial do Recôncavo baiano, com um inestimável patrimônio histórico de igrejas, casario e artesanato, sendo bastante conhecida pela existência das fábricas de charutos.
A irmandade da Boa Morte, como é conhecida, tem suas origens no início do século XIX, entre 1820 e 1823, na igreja de Nossa Senhora da Barroquinha, em Salvador, sendo ela uma das igrejas da Bahia, cuja predominância das irmandades era de negros alforriados, numa tradição mantida até hoje, por exemplo, na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no Pelourinho.
Uma curiosidade existente é que dentro dessa irmandade vai se dar, para os negros no início do século XIX, a reconstrução da identidade de parentesco e religiosidade africana, com a reconstituição de linhagens de famílias tradicionais vindas de várias partes da África. Interessante notar que esse fato de reconstituição da tradição de origem vai ser um traço que é diferente do sincretismo religioso, pelo fato de constituir a identidade cultural dos negros residentes na Bahia Colonial.
Outra peculiaridade da irmandade da Boa Morte está no fato de ser uma organização basicamente constituída de mulheres, sendo que um dos objetivos era angariar recursos para a compra de cartas de alforria para os negros escravos da época, compra de roupas, pagamento de missas e funerais para escravos e ex-escravos.

A festa de Nossa Senhora
Dentre as diversas inovações de Nossa Senhora associadas à vida e à morte, temos muitas delas presentes na tradição católica, espalhadas pelas igrejas da Bahia. As invocações de Nossa Senhora da Vitória, da Glória, da Esperança, da Boa Viagem, da Guia, da Conceição, da Assunção, das Dores são a maneira de denominar uma proximidade entre a Mãe de Deus e os homens. Podemos perceber que as invocações de Nossa Senhora acompanham a vida em sua inteireza, em todos os momentos. A Boa Morte é uma dessas percepções de que a morte não é um fim, mas carrega uma certeza e a esperança dada pela ressurreição de Cristo.
Tradicionalmente, a Virgem do Rosário é identificada como a padroeira dos escravos e dos homens de cor. Em torno dela, foram criadas diversas irmandades que movimentaram a vida colonial com seus cortejos, procissões, celebrações e festejos nos mais diversos contextos do Brasil, numa continuidade das tradições.
O mistério da dormição e glória de Nossa Senhora remonta aos inícios do cristianismo, sendo bastante difundida no oriente, celebrada em comunidades muito antigas do cristianismo. Segundo este mistério, Maria foi assunta em corpo e alma à glória celeste, participando, assim, da ressurreição de Seu Filho.
A festa de Nossa Senhora da Boa Morte é um sinal de pertença de todos os povos - em especial do povo negro, disperso na diáspora escravista, desde o século XVI - à presença materna de Maria. A devoção pode também ser associada à identificação das mulheres com estes fatos da vida de Nossa Senhora, a dormição e a glória, ou seja, um resgate da vida ante o sofrimento presente.
No âmbito da cidade de Cachoeira e do Recôncavo baiano, a irmandade da Boa Morte trabalha durante todo o ano, recolhendo donativos e ajudas para a realização anual da festa, o que inclui, também, a preparação de comidas e organização de palestras, lançamento de livros, exposições e um belo samba de roda que encanta a todos os que estão na cidade. A cada ano vai se tornando mais freqüente a participação de crianças, jovens e novas irmãs, o que vai dando um novo colorido à festa.

A irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte
Das muitas irmandades que existiram na Bahia, mais de 60, hoje temos notícia e podemos conhecer mais de perto, a cada ano, a Irmandade da Boa Morte de Cachoeira. É formada por um grupo de mulheres negras, em idade avançada, que faz, durante três dias, diversas manifestações culturais e religiosas em torno da Virgem Maria., celebrando os mistérios da sua dormição (boa morte) e glória (assunção). A data, que é móvel, centra-se no mês de agosto, geralmente, na segunda quinzena. Neste ano, porém, a festa retornou ao seu ciclo de três dias fixos: 13, 14 e 15 de agosto. No primeiro dia, há a procissão conduzindo a imagem de Nossa Senhora da Boa Morte pelas ruas da cidade; a missa em louvor às irmãs falecidas, Ceia Branca e Vigília à imagem de Nossa Senhora. No segundo dia, há celebração, louvor e procissão em homenagem a Nossa Senhora da Boa Morte pelas ruas da cidade. No terceiro dia, há alvorada de fogos, missa solene e exaltação da Assunção de Nossa Senhora aos Céus, com festejos, procissão com a imagem de Nossa Senhora da Glória, comida e samba de roda.
Em cada uma dessas cerimônias, as irmãs vestem-se com trajes específicos, roupas de baiana, para as procissões com o esquife e o momento festivo, variando as cores branca, vermelha e preta e colorida. As irmãs devotas por dois dias velam e fazem procissões com a imagem de Nossa Senhora da Boa Morte. No último dia, dá-se a programação mais festiva, com a procissão de Nossa Senhora da Glória e os festejos musicais, culturais e as comidas típicas.
As cerimônias sagradas da irmandade são públicas e privadas, tendo um caráter agregador em torno da devoção a Nossa Senhora, que percorrem as ruas e muda a face da cidade de Cachoeira, que a cada ano recebe muitos visitantes, vindos de todas as partes do mundo para conhecer e acompanhar os cortejos e as celebrações.
Nas últimas décadas, a irmandade conseguiu adquirir uma sede na cidade de Cachoeira e reúne-se na antiga igreja da Ajuda. O espaço é amplo, com três andares, uma capela, cozinha, onde existem diversas obras de arte retratando a beleza da irmandade, com fotos, roupas e quadros. Conta-se que a irmandade já teve cerca de 200 mulheres negras alforriadas e em 1988 saiu às ruas com apenas 35, possuindo uma juíza, uma provedora e uma mesa administrativa.

A festa
Essa festa é uma das últimas existentes no Brasil, onde a presença da Virgem Maria consegue reunir em torno de si um grupo de mulheres de uma tradição cultural específica, promovendo, com isso, um conjunto de rituais e olhares sobre uma localidade. É fascinante a síntese da catolicidade presente na festa de Nossa Senhora da Boa Morte. Andar pelas ruas de Cachoeira, seguindo as velhas irmãs é acompanhar o ciclo da vida que se renova a cada ano. É inesquecível almoçar a grande feijoada preparada pelas irmãs e se divertir nas ruas, com o samba de roda apresentado pelos diversos grupos e por elas, que preparam toda a festa para os convidados. Ou mesmo experimentar a maniçoba - prato feio com folhas e carne - e os licores vendidos na cidade.
Sendo uma boa festa, ali se pode fazer a experiência de estar inteiro nas cerimônias religiosas e nos festejos, sem a fragmentação atual da cultura, que equivocadamente separa as pessoas e as experiências, não favorecendo a experiência de unidade dessas mulheres, fiéis a uma presença constante em suas vidas.
Apesar de toda redução que tentam colocar sobre a experiência da irmandade da Boa Morte, não podemos negar que Nossa Senhora continua a movimentar a realidade brasileira, nos mais diversos contextos, promovendo encontros e descobertas.
As mulheres da Boa Morte sabem o peso da vida, por isso levam adiante a devoção a Nossa Senhora, como guia e estrela, movidas pela fé. Elas continuam, neste canto da Bahia, a ser as mulheres que rezam, cantam, cuidam dos afazeres, preparam a comida, amam e vivem intensamente cada aspecto da existência, tendo ao lado a presença de Maria.

Fontes:

[1] Boa Festa, de Suzana Varjão, Jornal A TARDE, 16/08/02, Salvador.
[2] Tradições culturais da irmandade da Boa Morte - Festa da Boa Morte - Cachoeira, Bahia. IPAC, CDDPC - SEP. Apostila, s/d.
[3] A festa da irmandade da Boa Morte e o ícone ortodoxo da dormição de Maria, de Sebastião, Héber Vieira da Costa, 2002, Zuk Comunicação, Bahia.
[4] Boa Morte, uma irmandade de exaltação à vida! Aiyê-orun, de Gustavo Falcon. Acessado em 06/09/2000 (www.geocities.com/wellesley/4528/historia.htm).

 
 

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