Vai para os conteúdos

Passos N.134, Fevereiro 2012

SOCIEDADE - RUMO AO ENCONTRO MUNDIAL

Retrato de família

por Paola Bergamini

É o núcleo fundamental da sociedade, mas hoje se tenta anular o seu significado. Tendo em vista que acontecerá este ano o VII Encontro Mundial das Famílias de 30 de maio a 3 de junho, em Milão, estabelecemos um diálogo com um pai, uma socióloga, um sacerdote e uma jornalista sobre a sua experiência e as palavras do Papa: entre o “amor humano” e o “Amor eterno”

Em 1968, as feministas gritavam: “Não mais mães, esposas e filhas; abaixo a família”. Naqueles mesmos anos, o psiquiatra David Cooper escrevia: “Não tem sentido falar da morte de Deus se não somos capazes de conceber a morte da família”, sublinhando assim que os dois fatores estavam ligados entre si. Passaram-se mais de quarenta anos: nem Deus nem a família morreram. Não foi por falta de tentativas. A cultura dominante tentou e continua tentando eclipsar Deus – se existe, não nos interessa – e paralelamente, e não por acaso, colocar para escanteio a família. Ou melhor, despojá-la de seu único e verdadeiro significado: “Espaço humano do encontro com Deus”, como disse Bento XVI ao Pontifício Conselho para a Família, em vista do VII Encontro das Famílias, que se realizará em Milão de 30 de maio a 3 de junho. Em setembro passado, dirigindo-se aos noivos em Ancona, o Papa havia dito que “todo amor humano é sinal do Amor eterno que nos criou”. Impressiona o adjetivo “humano”. Mais que uma preocupação, nas palavras do Santo Padre emerge um amor apaixonado pelo homem e a esperança certa de que neste momento de crise, de esfacelamento do eu, a família é a pedra angular, reflexo de um Além. Como se dissesse: o caminho é esse.
Em torno desse tema reunimos personalidades diferentes: a escritora e jornalista Chiara Beria di Argentine; a professora de Psicologia da Família na Universidade Católica Eugenia Scabini; padre Carlo Romagnoni, há mais de quarenta anos pároco na Itália; e Paolo Tosoni, advogado, mas neste caso na qualidade de marido e pai de sete filhos. Nasceu uma discussão inteligente, ou melhor, um caminho, a partir das palavras do Papa e da experiência de cada um.

O Papa disse aos noivos: “A mesa está repleta de coisas deliciosas, mas, como no episódio evangélico das núpcias de Caná, parece que acabou o vinho da festa”. O que é que está faltando?
Padre Carlo. Vêm-me à mente os rostos dos noivos que acompanhei nestes anos. Eu percebo que os nossos jovens, em meio a uma situação de desastre humano, são tomados pelo sentimento de amor que os leva a se unirem, mas é como se faltasse o fundamento, isto é, o horizonte do infinito. É um caminho que nós precisamos fazer com eles partindo da experiência humana do relacionamento.
Eugenia. Aproveito esse gancho da experiência humana. O interesse de toda a tradição da Doutrina da Igreja – me refiro, por exemplo, à Familiaris consortio – parte da relação conjugal, não dos filhos. Hoje, o laço conjugal é o ponto de máxima dificuldade, e isso faz pensar. No casamento nos defrontamos com outra pessoa que é diferente em termos de sexo, de sensibilidade e de história familiar. Na relação com os filhos prevalece o dado da semelhança, do prolongamento de si. Desse ponto de vista, o amor é submetido à prova sobretudo na relação com o cônjuge. Hoje, tão logo passa o período da paixão – que tende naturalmente a enfatizar os aspectos de semelhança, de entendimento – e o outro emerge em sua diversidade, a relação tende a ruir. O outro não pode ser capturado, não pode ser modificado à vontade. Com o cônjuge, o confronto é com alguém que me é semelhante, mas também diferente. Emerge, assim, o mistério aludido pelo Papa aos noivos. O casamento é o encontro de duas personalidades diferentes, e o desafio é que o amor não se encaixe na linha da homologação, mas que se estabeleça uma relação construtiva.
Paolo. Lendo esses textos tomo consciência, depois de vinte anos de casamento, da correspondência da sabedoria da Igreja com a minha vida. O amor, tal como a vocação, se descobre no tempo. No encontro com o Movimento de CL eu passei a confiar na Igreja sem me dar conta plenamente da promessa que havia dentro do casamento. Sem queimar etapas, hoje eu estou mais apaixonado ainda por minha esposa: em meio às brigas, às dificuldades, numa palavra, à diversidade, a Igreja me ajudou a ver minha mulher como um sinal. A elevar o olhar. Isso permitiu e permite aquele respeito que tem como horizonte o infinito. Todo dia é um início, que é “para sempre”, como disse o Papa. Aliás, não se pode amar uma pessoa se não é para sempre.
Chiara. No cenário cinzento em que vivemos, os discursos de Bento XVI me aqueceram o coração. Como jornalista digo que o Papa conhece bem as dificuldades, os problemas, que os jovens precisam enfrentar: a falta de trabalho, de moradia. Ter filhos tornou-se um luxo. Tenho lido alguns dados: queda no número de casamentos, aumento das separações, dos divórcios e também das convivências. É a destruição do casal. Todavia, neste momento de crise a família – ainda que só como refúgio – permanece sendo uma segurança, talvez a única. O Papa dá um passo a mais; diz: não se sintam sozinhos, vocês não estão sós, são um bem precioso, amar é reconhecer-se no outro. São palavras de extraordinária importância, embora tenham pouca repercussão. Costuma-se reduzir a Igreja a um “proibicionismo”, a regras.

Fixemo-nos nesse ponto: não se sentir sozinhos. O que isso significa no âmbito familiar?
Eugenia. O Papa apela para que se evite o fechamento “em relações intimistas, falsamente tranquilizadoras”. O amor é diferente, projeta para além de si. Há duas palavras-chave. A primeira: comunhão. A Igreja liga-a a Trindade: uma união de pessoas diferentes. Comunhão, pois, como uma relação que une diversidades, como um laço profundo e misterioso. Para que esse laço floresça em família é preciso afeto e respeito, que significa parar na soleira do outro, que sempre nos excede. A segunda: comunidade de gerações. Hoje há essa estranha ideia segundo a qual o casal nasceria como um mundo novo, sem ligações com a história que a gerou. Tudo é nivelado no presente – como a sociedade, que se esqueceu do senso da história –, ao passo que a família é um encontro enriquecedor, uma revisita do que existiu antes. Por isso, é necessário ampliar a relação para uma fraternidade horizontal e vertical que mantém dentro os irmãos, os amigos e os avós.
Paolo. Para esse ponto minha mulher literalmente me educou, ela que tem uma família numerosa. Com frequência ela se encontra com os irmãos, que sem dúvida têm problemas, dificuldades. Tal como eu sou feito, eu ficaria fechado na minha concha. A família “ampliada” horizontalmente é o modo concreto – melhor do que muitos discursos – de apoiar e ajudar a sociedade: há um contágio, uma osmose. O modo mais simples de testemunhar aquilo em que creio é por meio da minha família.
Padre Carlo. O Papa diz que a “família baseada no casamento é a realização particular da Igreja, comunidade salva e salvadora, evangelizada e evangelizadora”, portanto, total abertura. Há um ano trabalho num pequeno povoado. Então, quase que por reflexo, ficaram essas relações, as tradições, mas é como se tivessem perdido o significado. O que de belo o cristianismo construiu ainda existe em certas “ilhazinhas”, mas tem o fôlego curto, porque em geral falta a consciência do significado do outro. Há uma carência de consciência da própria existência como indivíduo e como família. O positivo é engolido por uma cultura que rema contra os relacionamentos.

Voltemos às palavras do Papa quando diz que em nossa sociedade “cada um é estimulado a mover-se de maneira individual e autônoma, com frequência apenas no âmbito do presente”. É a tentativa de eliminar a possibilidade da ligação boa que nos une ao outro.
Eugenia. Nesse sentido, a família é o epifenômeno de uma crise das ligações. Funciona o indivíduo que escolhe aquilo que lhe agrada, mas quando o relacionamento precisa de cuidado, de educação, de responsabilidade, tudo cai, desanda. Mas os filhos, além de com o pai e a mãe, se identificam com a relação que existe entre eles. O que quer dizer: entende-se a relação quando ela é vista em ato. Teorizou-se sobre os laços familiares e sociais como “ligações ligeiras”, das quais a pessoa entra e sai com desenvoltura. Nada de mais falso. Os laços precisam ser cultivados e têm sempre um forte impacto sobre a vida das pessoas.
Chiara. Nesse sentido eu vejo, além da ausência dos pais, de avós inexistentes, também um espaço urbano que se desenvolveu sobretudo em sentido vertical, que certamente não favorece a possibilidade de relacionamentos. Mas há um outro dado que me impressiona, sobretudo quando penso nas jovens mulheres: tudo está programado. Em primeiro lugar está o compromisso profissional, a carreira, depois vêm os filhos. Claro, as políticas familiares, diferentemente de outros países europeus, remam contra o desejo de ter um filho, faltam estruturas. Parece-me, porém, que essas mulheres, ao chegarem a certa idade, então decidem “querer” um filho, às vezes sem um pai. É a geração do computador. Mas aí, sem querer condenar tudo, me parece haver um medo. E também uma dor. O Papa compreendeu muito bem esse medo quando fala da convivência, que não só queima etapas, mas também não é sequer garantia para o futuro. Nada pode garantir o amor a não ser o sacrifício, que não é se suportar, e sim um sinal de bem. Programar a vida é trágico. Como diz o Papa, falta a esperança. Durante anos deu-se importância ao sucesso, ao dinheiro, aos bens efêmeros, mas agora essa crise tão profunda faz vir à tona o sumo, o significado pelo qual vale a pena viver. A conversa fiada acabou. Se eu pudesse voltar atrás, teria mais filhos e menos furos jornalísticos!
Paolo. Concordo, faltam estruturas, não há políticas familiares adequadas, mas conheço famílias que, embora não recebendo salários elevados, têm mais filhos. É difícil, mas a energia para enfrentar as dificuldades é dada pelo ideal que vivemos. Fico impressionado que, não obstante toda uma batalha midiática feroz, a família se mantém. Precisamos de afeto, de significado. Essa crise é mesmo uma oportunidade para testemunhar com a própria vida o significado que sustenta a vida.
Eugenia. Gostaria de enfatizar um ponto. O Papa e a Igreja jamais disseram que o valor da família é proporcional ao número de filhos que se põe no mundo. O número não é o código. Nem a generosidade. Porque a generosidade sem gratidão é suspeita. O amor é o reflexo do que nós recebemos e não de algo que nos faz melhores. Se vivermos essa atitude, seremos capazes de sacrifícios, de perdão. Nas relações familiares, um pouco de mal sempre existe. O problema não é não se ferir, mas possuir essa energia que nos faz capazes de superar, de ir além. O positivo nunca é uma coisa automática. É preciso buscar alimento naquela fonte benéfica, na segurança de um amor que nos precedeu. “Mesmo que teu pai e tua mãe te abandonassem, eu nunca te abandonaria”, diz a Bíblia. Esse é um ponto que nos dá paz. Do contrário, nos destruímos porque não pode alcançar tudo, porque não faz o bastante para os filhos, etc. Essa atitude generativa se expressa também no trabalho: nos geramos também no modo como trabalhamos, como cuidamos do outro. A família é uma forma de relação que se dilata também para as outras relações. Por fim, gostaria de dizer que também faz parte da saúde de uma relação a presença de um pouco de ironia. O que significa ser um pouco desapegado de si e não pretender que o outro seja exatamente o que temos em mente. A ironia é uma forma de perdão. E está incluso aquela custódia do outro de que fala o Papa – retomado pelo cardeal Scola em sua carta para o encontro mundial – quando sublinha a fidelidade junto com a indissolubilidade e a transmissão da vida, que são os três eixos da família.
Paolo. Uma coisa é certa: a família é, de fato, uma aventura para cada um, porque é “a experiência inextinguível de um bem”, como disse padre Carrón. E por isso é um recurso para toda a sociedade. É isso que me faz ser feliz e grato todas as manhãs, quando me levanto e olho minha mulher e meus filhos.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página