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Passos N.136, Abril 2012

PÁGINA UM

A autoconsciência, o ponto da reconquista

por Julián Carrón

Apontamentos da Assembleia com os Responsáveis de Comunhão e Libertação na Itália. Pacengo de Lazise (Verona), 4 de março de 2012

Que ajuda não receberíamos todas as manhãs para enfrentar as dificuldades e desafios que temos pela frente, se estivéssemos com todo o nosso eu, com toda a nossa necessidade, com toda a consciência do drama, seja qual for, diante da oração que a Igreja acaba de nos fazer recitar! Seria já a primeira vitória sobre a nossa desorientação, qualquer que fosse a sua natureza: “O Senhor para nós é refúgio e vigor, sempre pronto, mostrou-se um socorro na angústia; / Assim não tememos, se a terra estremece, se os montes se dasabam, caindo nos mares, / se as águas trovejam e as ondas se agitam, se em feroz tempestade, as montanhas se abalam: / Os braços de um rio vêm trazer alegria à Cidade de Deus, à morada do Altíssimo. / Quem a pode abalar? Deus está no seu meio! Já bem antes da aurora, ele vem ajudá-la. [...] / Conosco está o Senhor do universo. O nosso refúgio é o Deus de Jacó” (“Salmo 45 das Laudes de domingo”, O Livro das Horas, Ed. Companhia Ilimitada, São Paulo, 2008, p. 20).
Que experiência deve viver um homem para dizer isto! Não é que lhe seja poupada alguma coisa na vida, não é que não veja tudo tremer, mas que raça de consistência dá à vida esta consciência, para poder desafiar tudo com esta certeza: “O Senhor para nós é refúgio e vigor...”.
É a mesma coisa que Dom Giussani nos diz num texto que, por acaso, encontrei recentemente: “Quando realmente a mordaça de uma sociedade adversa se aperta à nossa volta a ponto de ameaçar a vivacidade de uma expressão nossa e quando uma hegemonia cultural e social tende a penetrar o coração, aguçando as já naturais incertezas...”. Antes de continuar lendo gostaria de saber como nós acabaríamos a frase: diante de tal situação, a que apelaríamos, o que nos vem à mente, onde colocaríamos a consistência, onde encontraríamos ajuda? Dom Giussani surpreende-nos de novo: quando isso acontece, “então, é chegado o tempo da pessoa” (L. Giussani, “È venuto il tempo della persona”, por L. Cioni, Litterae Communionis CL, n. 1, 1977, p. 11). E o que é a pessoa? Onde está a sua consistência? “Aquilo que urge para que a pessoa seja, para que o sujeito humano tenha vigor nesta situação em que tudo e arrancado do tronco para dele se fazer folhas secas é a autoconsciência, uma percepção clara e amorosa de si mesmo, carregada de consciência do próprio destino e portanto capaz de verdadeira afeição por si próprio, livre da obtusidade instintiva do amor próprio. Se perdemos esta identidade nada nos vale” (Ibidem, p. 12).
Dom Giussani explica como surge esta autoconsciência: “Encontramos a lei da autoconsciência, por analogia, na experiência psicológica do homem: reconhecemos e amamos a nossa identidade pessoal reconhecendo e amando um outro. Na história psicológica de uma pessoa, a fonte da capacidade afetiva é uma pessoa tão reconhecida que é recebida e acolhida. Para a criança essa presença é a da mãe, de tal maneira que, se isso faltar, a fonte afetiva fica seca. Mas a certo ponto este sinal natural já não basta mais, porque o sujeito evoluiu para a juventude que se encrespa e mostra as características da ausência de afeição: na juventude confusa, desnorteada, descomposta e pretensiosa, é chegado o momento do Outro [com O maiúsculo], verdadeiro, permanente, pelo qual somos constituídos, da presença inexorável e sem rosto, inefável [misterioso]. A juventude é o tempo do Tu [com maiúscula] no qual o coração mergulha [...] como num abismo, é o tempo de Deus”. Assim, é o conteúdo desta autoconsciência que faz a nossa presença ser consistente, a nossa pessoa ser consistente.

Qual é o conteúdo desta autoconsciência, qual era o conteúdo da autoconsciência do salmista? Esta presença do Tu é a presença “que deve ser reconhecida, acolhida e amada; caso contrário desaparece a identidade [...]. É na juventude que surge a dramaticidade da vida; [porque] a dramaticidade da vida consiste na luta entre a pretensiosa afirmação de si mesmo como critério da dinâmica do viver e o reconhecimento desta Presença misteriosa e penetrante”. Por isso, “o fenômeno que permite que a personalidade se exprima é a iniciativa”. Que tipo de iniciativa? “A iniciativa que documenta o início de uma identidade cristã verdadeira [...]: o desejo da memória de Cristo, o desejo da consciência dEle, da Sua presença” (Ibid). É esta luta que é necessária entre nós, em nós, em cada um de nós: se depositamos a nossa consistência em algo criado por nós, numa afirmação última de nós mesmos, de uma imagem nossa, de um projeto nosso, de um esforço nosso, com toda a sua inconsistência, ou no reconhecimento desta Presença. Não há alternativas, e quanto mais a vida progride, mais uma pessoa decide, mais uma pessoa se encontra numa posição ou noutra.
“Ter a coragem de afirmar que o problema fundamental é tornar habitual o desejo da Sua recordação, [da Sua memória,] a consciência da Sua Presença não pode deixar de nos chegar como pretensão de qualquer coisa abstrata [como acerta no alvo da questão!], que se acrescenta ou se sobrepõe aos problemas sentidos como mais prementes e concretos”. Com efeito, é aqui que está a nossa resistência. Por isso, “o desejo de recordação de Cristo amadurece como história em nós, cresce não automaticamente mas, tal como cresce cada capacidade nossa, seguindo alguém”. E assim como “o projeto da nossa maturidade não o podemos ter nós, assim também nós não podemos escolher o mestre, temos apenas de reconhecê-lo. O mestre a seguir foi dado pelo Senhor, foi o Senhor que o colocou na estrada na qual nos pôs, no caminho que vamos percorrendo. Escolhermos nós mesmos o mestre significaria escolher alguém que nos seja conveniente, escolher alguém que responde ao nosso gosto, ao nosso desejo de ver encorajado nosso projeto. Seguir quer dizer identificar-se com os critérios do mestre, com os seus valores, com aquilo que ele nos comunica, e não ligar-se à pessoa que em si é efêmera. É neste seguimento que se esconde e vive o seguimento de Cristo. Não o apego à pessoa, mas o seguimento de Cristo é que é a razão do seguimento entre nós. É a esta maestria – conclui Dom Giussani – que deve tender a amizade entre nós, pois o verdadeiro amigo é aquele que, com discrição e respeito, ajuda o outro rumo ao seu destino” (Ibid).

Esta é a decisão que cada um tem de tomar, e o pedido de abertura da causa de canonização de Dom Giussani é uma nova ocasião, decisiva, que nos desafia no presente: queremos seguir isto, queremos seguir aquilo que Dom Giussani nos propôs, estamos dispostos ao que acabamos de escutar, ou seja, a fazer um caminho em que nós, ao segui-lo, nos identificamos com os seus critérios? Porque quando vemos acontecer isto, na tentativa que estamos fazendo, observamos – como o dia de ontem documentou manifestamente – o aparecimento de um sujeito novo, que se converte em presença. Todo o dia de ontem, as duas assembleias, foi a documentação desta presença segundo todas as diversas modalidades com que apareceu nos muitos que falaram e nos diálogos entre vocês ou entre nós e com aqueles que não puderam intervir. E por quê? Por que esta riqueza de presença? Unicamente pela certeza daquilo que Dom Giussani acaba de dizer, que para muitas pessoas se torna cada vez mais a autoconsciência o que lhes permite permanecer na realidade livres, livres das circunstâncias e nas circunstâncias, não fora das circunstâncias, mas nos ambientes, livres até dos ataques (porque a única coisa que não apareceu ontem foi a dureza das acusações, quase não houve sinais disto); livres, portanto, da dependência do poder, qualquer que seja a modalidade em que se exprime. Fico admirado que esta certeza não coincide e não depende de ter nas mãos um poder, porque o Senhor pode não dá-lo. A história do povo de Israel é belíssima deste ponto de vista, porque na antiguidade a divindade e o poder estavam tão ligados que, quando um povo perdia o poder, isso determinava também o fim da divindade, tirando uma exceção: o povo de Israel. O Deus de Israel pode permitir que o seu povo seja derrotado, pode mandá-lo para o exílio e, no entanto, continuar a ser o seu Deus. O Deus de Israel e a consistência do povo não estão ligados a qualquer poder; aliás, Deus pode consentir a perda deste para purificar o povo, como dizem os profetas, para que Israel adquira uma consistência própria independentemente de qualquer acontecimento histórico. Porque Deus quer gerar uma criatura, um sujeito de tal maneira novo, com tal consistência que, por mais voltas que a história dê, possa permanecer por ter uma rocha onde se apoiar. Que rocha é essa? Qual é o conteúdo desta autoconsciência que se converte em rocha, se não Ele? E não só Deus não o poupou ao Seu povo, mas nem sequer a Seu Filho: pode ferir o pastor e as ovelhas dispersam-se, mas para recuperá-las de novo, para a vitória definitiva de Cristo. Por isso é que compreendo bem por que Dom Giussani diz que neste momento chegou o tempo da pessoa; de fato, pergunta a cada um de nós, a você, a mim: onde está a sua consistência? Onde a coloca? Se nós não formos livres das circunstâncias, faremos parte do problema, não da solução.
Porém, vemos que, precisamente nesta curva da história em que tantos estão desorientados, podemos – ainda que tropeçando, com todas as nossas limitações que conhecemos muitíssimo bem – ser uma presença, que muitos reconhecem e para a qual se voltam, como acontecia com o povo de Israel, quando as pessoas queriam agarrar o seu manto para caminhar com ele, não porque Israel tivesse algum poder, mas porque possuía aquilo que permite viver a vida. E é exatamente uma presença assim, não dependente de nada a não ser dEle, que nos faz estar abertos à necessidade, como vimos, qualquer que seja a natureza dessa necessidade: da dos futuros professores à de quem perdeu o emprego, não tem esperança ou vive em crise. Isso demonstra a natureza da necessidade diante da qual temos de viver, que chega até à necessidade de uma esperança para continuar a viver. Portanto, só se fizermos esta experiência é que podemos encontrar uma resposta à nossa necessidade, e portanto podemos apresentar na sociedade uma resposta à necessidade dos outros, que é um lugar onde o nada seja vencido, uma companhia que seja verdadeira companhia, uma amizade que seja verdadeira amizade para o destino.

Só uma comunidade assim é incidente na história, porque – como dizia Giussani – quando “a realidade da fé investe o homem”, investe “todas as expressões da sua realidade pessoal, [...] no sentido em que investe a totalidade da pessoa e por conseguinte transforma o sujeito” (L. Giussani, “A fé é clareza, coerência e (também) graça”, entrevista realizada por F. Dante, La nostra assemblea, Comunidade de Sto. Egídio, nº 9-10, janeiro de 1978), e por conseguinte qualifica a ação deste sujeito na história. Esta é a primeira questão, o drama diante do qual se encontra cada um de nós.
“Em segundo lugar a fé vivida, e portanto uma comunionalidade eclesial, vivida justamente onde o homem vive, no ambiente, [...] porque o ambiente para nós é a realidade da vida da pessoa enquanto investida, e implicada, e diligentemente utilizada pelo poder social para os seus próprios fins [...]. Uma comunionalidade vivida no nosso próprio ambiente realiza uma presença que, se for real, ou seja, uma presença vivida, não pode deixar de ser percebida, sentida e querer-se imersa nos problemas que constituem o tecido da vida do ambiente; porque um ambiente humano é cheio de problemas. Nesse sentido, há uma inevitável incidência política que é produzida pela mera presença de um fato cristão, ou ainda de uma pessoa cristã. Digo com frequência – continua Dom Giussani – que a comunionalidade é uma dimensão de uma pessoa, não necessariamente uma agregação hic et nunc de indivíduos. [...] A comunionalidade, se é dimensão da pessoa, é essencial à presença cristã onde quer que esteja a pessoa; portanto, se estiver sozinha viverá esta consciência como aspecto e contexto do modo como se vê a si mesma e a sua responsabilidade pessoal; se houver outras, explicitará esta comunionalidade na unidade fraterna com elas” (Ibid), mas cada pessoa que vive esta consciência tem a comunhão dentro da autoconsciência de si mesma, exprime esta comunhão como consciência de si.
Portanto, quando vivemos esta autoconsciência no real, no ambiente, como vimos nas intervenções de ontem, nós passamos a ser um fator da vida social, e esse é o nível que cabe a nós, que cabe à comunidade cristã, ou seja, a nós como presença do Movimento no real. Há, depois, “na acepção mais estrita, política, [...] a tentativa de imaginar, de realizar estruturas sociais, estruturas de convivência, mais justas, que exprimam melhor o humano”: a este nível político em sentido estrito corresponde a responsabilidade do indivíduo que decide vocacionalmente dedicar-se à política. “O nosso dever [de comunidade cristã] é formar as pessoas na fé, por meio de uma vida de comunionalidade vivida, que [...] não pode evitar comprometer-se também com os problemas do ambiente” (Ibid).
Voltar para casa depois destes dias, depois do que vimos, com esta consciência, é aquilo que vai nos tornar sempre mais presentes, na medida em que crescer a autoconsciência, ou seja, a força da pessoa que vem de dentro de uma pertença a Cristo na Igreja, no Movimento. Como diz Giussani, quando cresce a autoconsciência que se apoia no único fundamento que resiste a qualquer circunstância, nós adquirimos aquela consistência que nos permite permanecer na realidade.
A nossa amizade é a ajuda a crescer nesta autoconsciência, porque sem isso nós não poderemos dar nenhuma contribuição, e acabaremos por ser levados pela torrente da confusão, com o poder ou sem o poder nas mãos.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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