Vai para os conteúdos

Passos N.105, Junho 2009

SOCIEDADE - ABRUZZO

A semente da esperança

por Paolo Perego

Os mortos. Os desabrigados. As ruínas. Mas o que está acontecendo em Abruzzo, depois de poucos meses do desastre? Fomos conferir. E encontramos rostos e histórias de um povo que está recomeçando. A Igreja, a visita do Papa e a “flor que desabrocha a partir da fé”

O dia é maravilhoso. O sol já está alto, às onze da manhã. À noite, o termômetro desce abaixo dos dez graus. Daniela sobe a rua carregando uma cesta de roupas. Lavou-as numa pequena fonte, pouco mais abaixo. Atrás dela, Carmine e Daniel, universitários de Teramo carregam duas vasilhas cheias de água. Vão ajudar a irrigar as flores do jardim de Daniela. As plantas estão secando. Desde 6 de abril ninguém as havia aguado. Já se passaram alguns meses. O barulho daqueles 22 segundos em que o movimento da terra destruiu uma cidade “a gente ainda o carrega nos ouvidos”, conta Daniela, casada com Marco Gentile, químico de uma empresa farmacêutica da região. Têm três filhos, a mais velha estuda nos Estados Unidos. São de CL e há quinze anos vivem em Áquila. A casa deles é nova, em Sant’Elia, num terreno voltado para o vale do rio Aterno. Está a cinco quilômetros da cidade; dez minutos de carro até o centro; que, aliás, não existe mais.
Por dias, as “primeiras páginas” sobre o terremoto mostraram ruínas, rostos marcados, e disseram muitas coisas: 297 mortos, 1.500 feridos, milhares de desabrigados, que estão vivendo no espaço entre a cidade das tendas e a costa de Teramo. No entanto, há coisas que pouca gente mostrou. Marco nos conta muitos fatos e histórias. Um denominador comum, segundo ele: “Uma esperança impensável, gerada por uma correspondência que acontece também na dificuldade, que mantém todos unidos”: dor, preocupações, medo, alegria. Uma coisa do outro mundo. Que nasce da fé, da certeza de onde estão as suas raízes.
É essa esperança que nos vem à mente, quando chegamos a este lugar. Na rua principal de Sant’Elia há um trailer, que Piero, cunhado de Marco, trouxe de Milão. Assim, Marco e Daniela podem ficar perto de casa, que apresenta apenas algumas rachaduras. Mas os abalos continuam. Embora os bombeiros tenham dito que não há perigo, o medo não cessa nem um pouco. Ao lado deles há um outro trailer. Também ele “emprestado”: depois da iniciativa de Piero, Marco e os amigos da Companhia das Obras do Abruzzo intuíram que poderia ser útil arranjar casas móveis para permitir que os habitantes fiquem perto de suas residências, à espera da liberação das mesmas. Dito e feito. Esse trailer dos vizinhos foi trazido por Cristiano, de Tolentino. Ele o comprou no ano passado: “Deixo pra você um pedaço do meu coração”, diz ao vizinho de Marco, entregando-lhe as chaves. O vizinho se comove: “Não é possível. Só Cristo é capaz de fazer as coisas gratuitamente”. “Justamente, Cristo”, lhe sorri Cristiano.
O encontro com Marco foi marcado para acontecer durante o almoço, no centro comercial que reabriu há pouco. Ao longo da rua, a visão deixa qualquer um impressionado com as casas destruídas, com o pensamento de que há mortos cujos corpos permanecem enterrados sob os escombros. E com a cidade deserta, com as casas na encosta da montanha todas cheias de trincas, tortas... Tudo precisa ser reconstruído. A começar pela economia, que será difícil pôr em pé novamente. Desde 1908, quando Messina foi arrasada, o terremoto não atingira nenhuma grande cidade italiana. Em Áquila, mais de vinte mil, de um total de setenta mil habitantes, eram estudantes, muitos vindos de outros lugares: grande parte do dinheiro que fazia girar a economia local vinha deles, do seu consumo, dos aluguéis. Agora, a universidade está no chão: vieram abaixo quase todos os seus prédios. E não há mais serviços: o hospital está interditado, a prefeitura e o tribunal ruíram, junto com quase todas as escolas do centro. Até as muitas igrejas paroquiais: Áquila era conhecida como “a cidade das cem igrejas” e agora só cinco permanecem abertas.

A busca. No centro comercial as lojas estão abertas; vazias, mas abertas. Na calçada de uma pizzaria, as pessoas se sentam em torno de mesinhas, mas com uma perna para fora: “Se a gente sente uma vibração, começa logo a correr. É preciso sair imediatamente...”, diz Marco. Seu rosto aparenta cansaço. Ele retomou o trabalho na empresa; não aquele ordinário, pois antes é preciso arrumar toda a estrutura. E também ajudar muita gente que perdeu tudo, dos amigos mais queridos aos simples conhecidos. E não só. “A primeira preocupação, depois de a gente tomar consciência de que todos da família estavam bem, foi procurar os amigos. Todos responderam ao chamado, e estão bem”. Buscas intensas. Foi a mesma coisa que, pouco antes, nos contou padre Luigi, o pároco da universidade, a quem havíamos procurado de manhã. “Em meio à poeira e ao barulho todas as pessoas procuravam alguém: foi incrível. Justamente no momento em que o indivíduo poderia estar preocupado apenas consigo mesmo..., vem à tona a necessidade do outro, que o outro esteja vivo”.
Marco precisa retomar o trabalho. Voltamos ao trailer com Francesco, doutorando em Física na universidade de Áquila. Em junho vai se casar com Valentina. São de Pescara, mas o casamento será aqui, onde vivem. Na noite do terremoto estavam na costa, pois tinham que ir à Prefeitura providenciar os proclamas do casamento. A casa de Valentina foi destruída. “Queremos ficar aqui. Não somos doidos, nem é o orgulho que nos move; mas é isso que temos hoje diante de nós, e é preciso dar uma resposta”. De novo em Sant’Elia, onde está o que se tornou o coração do Movimento na cidade. Um trailer sempre aberto, uma mesa de plástico na parte externa... E um grupo de pessoas conversando, rindo, contando casos: adultos, universitários. Chega Gino, médico do trabalho. Sua casa, na cidade, pode ser reparada, mas sua mulher, Grazia, e as duas crianças, Paolo e Maria, estão em Termoli. Ele ficou num trailer, junto com seus pais, há alguns quilômetros dali. “Estávamos preparados. Tínhamos um plano para escapar, em caso de emergência. Naquela noite, Maria, de quase um ano de idade, chorava porque estavam despontando seus dentinhos. Grazia a levara para a nossa cama. Nunca fazíamos isso... Escapamos, mas de manhã, entrando na casa para recuperar alguma coisa, encontramos o berço dela recoberto de destroços!”.
As preocupações, hoje, são muitas: a casa, a escola dos filhos, o trabalho... Mas, embora seja esperável que desponte algum sinal de desespero, não o vemos em nenhum momento. Entre as pessoas, não há orgulho nem revolta pelo que aconteceu. Nem mesmo raiva. Isso se percebe em todas as pessoas que encontramos: a pergunta que carregam dentro de si não é sobre o porquê aconteceu essa coisa, mas sobre como enfrentá-la e vivê-la. Girando pelas ruas, por entre as tendas, padres e freiras caminham sem que ninguém grite na direção deles: “por que Deus permitiu isso?”. Padre Luigi pensava que isso iria ocorrer: “Eu cheguei a ter medo de girar pela cidade vestido de padre. Ao invés, o povo se aproximava, me procurava, eles procuravam a sua Igreja. O povo do Abruzzo tem uma fé bem enraizada”.

O abraço de um pai. Em Paganica quem ficou foi Ada, do Movimento. Seus pais, anciãos, têm um estábulo com animais, na parte de baixo da casa. Não foi afetado, mas com os animais ali, não podem sair. Foram transferidos para um depósito de concreto, arrumado para eles. Entre os pacotes de feno e as ferramentas de trabalho, uma estante faz as vezes de dispensa, e uma velha cozinha. Num outro ambiente, mais ajeitado, as camas. Em volta de uma velha mesa batemos um papo, contentes por ainda podermos fazê-lo. Conseguimos até sorrir, e pensar nos próximos Exercícios da Fraternidade. “Conseguiu chegar, Ada?”. “Sim, sim”, responde ela imediatamente. “Sim, pois a gente já disse muitas vezes que a vida é um dom. Mas agora essas palavras se tornaram carne”, diz Gino, enquanto entramos no trailer. Ali estão também Matteo e Graziella, cujo carro está estacionado ali perto, com duas crianças (Giovanna e Andrea), que dormem em suas cadeirinhas. Marco chega com o amigo Paolo. É preciso decidir, junto com Tonino e Pasquale, da CdO de Pescara, onde ficará o contêiner que chegará amanhã, para criar um ponto de primeiro socorro para as empresas da área. Devem chegar também alguns universitários do CLU, que logo estarão envolvidos também numa atividade nas tendas, alternando-se em turnos de trabalho. A reunião é a céu aberto, em parte no trailer. Ao fundo, as montanhas nevadas do Aquilão. “Está decidido: partimos segunda-feira”. Servindo ao Cristo lá onde Ele nos chama, como dizia Grazia. “Hoje – diz Marco, enquanto jantamos, com Daniela, na tendópolis de Sant’Elia – eu observo Grazia. Eu sigo o que ela diz, porque tem mais claro o que é mais importante fazer. Foi um amigo, que veio nos encontrar, quem também disse: o terremoto destruiu não só as coisas, mas sobretudo a tentação de fazer de Cristo apenas uma ideia. Hoje a demanda mais urgente é reconhecer a Sua presença. Isso é o que conta”.
E podemos constatar isso no rosto alegre do pessoal. Como o bispo, Dom Giuseppe Molinari, que estava com Marco. Tínhamos marcado uma entrevista. Mas logo percebemos que mais do que fazer perguntas, basta olhá-lo. Trezentos mortos: trezentos filhos! Ele escapou por milagre; devido a um mal-estar, não estava na cama. O quarto veio abaixo. Ele tem setenta anos, esta é a sua terra, a sua gente. “De onde partir, excelência?”. “De Cristo”, responde com uma mão sobre a cruz, no peito.
“Dom Giuseppe é, de fato, um pai”, diz Marco. Dirá algo parecido a respeito do Papa, depois da sua visita, dia 28 de abril: uma grande paternidade. A mesma coisa dirá também Stefano, um dos doze universitários que esperaram Bento XVI diante da Casa do Estudante, onde morreram vários colegas. “Ele não fez promessas, não fez discursos. Interessou-se por nós, esteve conosco: O que você estuda? O que você está fazendo? E nos dá um abraço”. Justamente como um pai, escreve Grazia numa carta: “Porque, diante de um filho que perde tudo, casa, pessoas queridas, talvez o emprego, o que diz um pai? Antes de tudo, corre ao encontro do filho (ele veio até nós), abraça-o, reza por ele, procura ajudá-lo a erguer a cabeça (nos indicou Nossa Senhora) e depois lhe doa a coisa mais preciosa que possui (a estola papal, o pálio)”.
Um abraço que a gente reconhece também na solidariedade despertada na costa do Abruzzo, onde o povo acolheu mais de vinte mil aquilanos desabrigados. Muito gente jogou-se de cabeça no trabalho de ajuda. Da Defesa Civil em Giulianova ao Centro para o Voluntariado da província de Teramo, aos estudantes das escolas superiores, passando pelas obras de misericórdia, associações, grupos de torcidas organizadas locais, ONGs... Mais de vinte mil pessoas, de todas as idades e segmentos sociais, envolvidas no trabalho espontaneamente. Quase um voluntário por desabrigado. “Temos ajudado um produtor local de queijo a vender seus produtos a grandes distribuidores do norte da Itália. Antes seu principal mercado era em Áquila”, explica Giuseppe Ranalli, presidente da CdO Abruzzo Molise, empenhada não só na busca de trailers para os desabrigados, mas também no apoio às empresas locais. Mimmo, do Banco de Alimentos de Pescara, conta que o trabalho após o terremoto não tem fim. É preciso reabastecer as entidades e apoiar os novos pedidos daqueles que vão chegando aos centros de acolhimento. E também recolher a ajuda que chega, vinda em caminhões de toda a Itália, além de administrar as contribuições trazidas pelo povo comum. O mesmo vale para os Bancos de Solidariedade de Teramo e Roseto, a linha de frente do acolhimento, onde as pessoas fazem fila para conseguir um par de sapatos ou um macacão.

“Não vou te deixar”.
“É como se, milagrosamente, o povo tivesse renascido; renascido sobretudo na evidência do que é essencial, do que está verdadeiramente no fundo e no significado de tudo. É uma pequena semente. Uma grande novidade, que veio à tona por entre os destroços”. E o comentário de Marco Gentile, ao final de um jantar em Téramo, ocasião para muitos membros de CL de Áquila se reverem, depois daquela noite. As crianças se abraçam, falam do monstro que sacudiu a casa, do barulho. Cada um tem uma história. Cantam juntos: “Meu coração não se perdeu... Nem da morte, nem da vida, do presente, do que há de vir, o teu povo não tem medo, a tua rocha está bem firme”. Dá um frio na espinha, mas que é verdade, não paira dúvida. É inegável, basta ouvir essa gente. Basta vê-los juntos. Sem floreios. Está aí a esperança, em seus rostos. Uma esperança para todos. Inclusive para quem perdeu tudo. Até o próprio filho. Lucilla conta de um seu aluno, Filippo, um daqueles que gostava de fazer perguntas, de provocar. Morreu no terremoto. No enterro, ela se aproxima da mãe do garoto e lhe fala das perguntas de Filippo, e do fato de oito mil meninos dos colegiais, no Tríduo de Rímini, terem rezado por ele naquela noite. A mãe a abraça com força: “Ela me disse, chorando: Eu não vou te deixar – conta Lucilla –. Mas ela não dizia isso a mim. Dizia-o a Cristo”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página