Marcia deixou São Paulo para viver em Hiroshima. Por meio de coisas banais é chamada a dar o seu sim a Cristo. A descoberta de uma liberdade impensável antes. Depoimento durante os Exercícios da Fraternidade, no Brasil, dia 5 de maio de 2012
Eu queria contar um pouco para vocês como nasceu o Movimento no Japão, porque é como tocar na mão do Mistério que constrói a história. Independente dos projetos do homem, o Senhor faz acontecer coisas, que é a imensa fantasia de Deus. O Movimento no Japão existe há quase 30 anos. Os japoneses gostam muito de canto lírico, então tudo começou quando um cantor lírico japonês foi estudar canto na Itália e, em Roma, conheceu uma italiana, que era do Movimento, e eles se casaram. Eles tiveram dois filhos na Itália e quando ele voltou para o Japão com a família foi morar em Hiroshima, onde eu moro hoje, e foi trabalhar na universidade de música. Ele dava aula de canto e a esposa dava aula de italiano. Assim eles reuniram alguns alunos mais próximos deles e convidaram para rezar a liturgia das horas, os salmos aos sábados numa paróquia. Alguns alunos aderiram a este convite e esse foi o nascimento do Movimento. Isso aconteceu em 1984 e, coincidentemente, em 1985 eu fui para o Japão com uma bolsa de estudos para estudar a língua japonesa. Eu fazia japonês na universidade e quando já estava lá soube por alguns amigos do Brasil que o Movimento tinha nascido em Hiroshima. Eu estava em outra cidade, mas fui encontrar esse pessoal e passei lá um fim de semana. Lembro até hoje que esse professor de canto lírico estava na estação de trem com a revista do Movimento na mão me esperando. Daquela vez conheci uma japonesa que depois eu reencontrei no Grupo Adulto. Durante dez anos não tivemos contato, mas cada uma fez o mesmo caminho da vocação e, em 1996, essa japonesa pediu uma companhia. Foi Dom Giussani, através do nosso visitor na época, o Mario Molteni, que me fez a proposta de ir para o Japão começar uma casa do Grupo Adulto com ela. Assim, eu fui em 1997 e fiquei até 2007. A comunidade do Japão é bem pequena. Tem umas quinze pessoas em Hiroshima, que é a cidade da bomba atômica; e tem umas dez pessoas em Tóquio, mais italianos do que japoneses. Tem italianos casados com japoneses, outros que estão lá estudando e alguns que vem a trabalho. Por iso eles fazem Escola de Comunidade em inglês, nós em Hiroshima fazemos em japonês. É uma comunidade pequena e a gente vive discretamente porque os movimentos no Japão não são muito bem aceitos. O Japão tem 128 milhões de habitantes e menos de 1% é católico...pouquissimo, por isso a maioria dos bispos e padres temem que os movimentos criem divisão dentro da igreja. Em Hiroshima nós fazemos a Escola de Comunidade na cúria porque a minha companheira de casa trabalha para o Bispo, e pela confiaça que ele tem nela nos permite usar o espaco. Mas nestes anos, como dizia o Carrón sobre a confiança que é fruto da convivência no tempo, muitos padres também começaram a ter um pouco de simpatia pela gente, começam a confiar porque veem que muitos de nós são engajados nas próprias paróquias. Vivemos discretamente, mas intensamente.
A incidência do poder. Sobre o meu caminho pessoal, eu voltei do Japão em 2007 e passei aqui no Brasil quatro anos e meio. Passei esse tempo aqui muito provocada pelo caminho que o Carrón tem nos proposto, sobretudo desde 2007, pois me lembro que me marcou muito quando ele dizia que nenhuma circunstancia que nos é dada na vida é secundária, que a realidade não é inimiga, então, quando um projeto seu não dá certo não devemos ficar com raiva porque é como se Cristo gritasse ali dentro daquela circunstância que aquilo que lhe responde não é que as coisas que você quer dêem certo, mas é outra coisa. Essas palavras foram produzindo um efeito em mim e no ano passado o Carrón dizia, citando Dom Giussani, que o poder não pode impedir o encontro, não pode impedir que o coração encontre aquele que lhe corresponde, que o eu renasça, que o desejo venha à tona, mas o poder procura impedir que isso se torne história. Quando eu escutei aquilo, isso julgou profundamente o modo como eu vivia o relacionamento com os meus pais, porque uma das razões porque eu voltei em 2007 foi exatamente a questão dos meus pais que estavam envelhecendo. O meu pai estava vivendo um momento de dificuldade e a minha cultura original preza muito os pais. Desde crian são a eu aprendi que eu deveria cuidar dos meus pais até o final da vida deles, e, por isso, para mim eu não podia mais voltar para o Japão enquanto eles fossem vivos. Quando o Carrón começou a dizer que o poder impede que se torne história, mas não pode impedir o desejo, eu entendi que nesses anos aqui no Brasil eu fazia de tudo para cancelar e sufocar o meu grande desejo de voltar para o Japão. E o que me impedia de voltar para lá era um juízo implícito, um apego àquilo que eu já sabia, por exemplo, que os pais são os filhos que têm que cuidar até o final da vida. Isso me interrogou muito porque eu dizia: mas se sou eu que tenho que cuidar da vida deles, onde é que Cristo entra nisso? Porque, se o Senhor que eu encontrei na minha vida é o Senhor de toda a realidade, é também o Senhor do destino da vida dos meus pais, e, portanto, eu era chamada a olhar para o meu desejo e não ficar apegada àquilo que eu achava que era certo na vida. Fui falar com o Carrón sobre essa coisa e ele me ajudou a olhar tudo como uma provocação do Misterio a minha vida. Foi um caminho muito bonito que eu entendi assim: “Eu confrontei com a autoridade e eu vou. Se não for esse o desígnio de Deus sobre a minha vida, então eu volto”. E o sinal maior de que era a vontade de Deus é que eu encontrasse um trabalho no Japão, porque eu não podia ir lá e ficar sem um trabalho.
Eu voltei para o Japão em agosto do ano passado e depois de três dias que estava la fui chamada para uma entrevista e uma semana depois eu comecei a trabalhar. Era um trabalho de meio período em um abrigo para menores. É uma instituição fundada por uma congregação religiosa depois da guerra para acolher os órfãos de guerra. Hoje essa instituição acolhe crianças órfãs de pai ou de mãe, ou então que a família não tem condições de criar, mas a maioria foi tirada da família por causa de violência e maus tratos. Todas as crianças carregam uma ferida muito grande. A instituição acolhe crianças de 3 a 18 anos e agora nós temos umas vinte crianças até 12 anos e umas vinte de 13 a 18 anos. No inicio me foi proposto ajudar no escritorio, fazer faxina do dormitório onde eles moram, e uma hora por dia eu deveria ajudar as crianças até 12 anos a fazer a tarefa de casa. Com as crianças não deu certo por duas razoes: como são crianças que carregam uma grande ferida muitas vezes eram agressivas e eu nao sabia como lidar com a situacao. A outra dificuldade muito concreta foi que eu consigo traduzir Dom Giussani para o japonês, mas eu não sei a tabuada em japonês e não entendia o enunciado das questões de matemática. Assim me dei conta de que não podia continuar fazendo aquilo e o meu trabalho passou a ser praticamente faxina. Nunca limpei tanta janela de vidro na minha vida! Por causa disso em dezembro eu tive uma tendinite que não conseguia mais levantar o braço... De janeiro para ca estou so no escritorio.
Uma nova liberdade. No Brasil eu sempre dei aula de japonês, sempre fui professora na vida. Foram 15 anos dando aula, então, para eu fazer aquele trabalho de faxineira, eu precisava sempre recuperar as razões do por que eu fazia aquilo, porque não era automático. As crianças me viam todo dia fazendo a faxina e às vezes elas passavam e me falavam: “Mas você gosta de fazer isso?”. Ou então elas me perguntavam: “Quem mandou você fazer isso?”. E eram perguntas que eu tinha que responder, não a elas, mas a mim. Eu tinha que responder e isso me ajudava muito a me dar as razões do por que eu fazia aquela coisa. Só que em vários momentos - essa coisa que o Carrón falava hoje, de que a gente está imerso na mentalidade positivista racionalista que faz com que você reduza a realidade a um particular- me vinha na cabeça como uma voz que me falava: “Teus pais estão lá velhinhos, sozinhos. Seria mais justo se você voltasse para lá para cuidar deles do que ficar aqui e passar essa humilhação toda”. Então eu me dei conta, num certo momento, que aquela humilhação, aquilo que eu estava vivendo, era o modo como o Mistério estava dizendo alguma coisa para mim. Eu não compreendi na hora, e aí comecei a ficar de joelhos, pedindo para entender o que é que Ele estava me falando através destas circunstâncias. E aquilo que eu entendi foi a coisa que me libertou. Depois do encontro, talvez tenha sido a maior coisa que me aconteceu na vida: eu comecei a entender que todas as palavras, os juízos, aquilo que eu repeti durante anos na minha vida (por exemplo, o salmo 131: “Meu coração não é orgulhoso, não se eleva arrogante o meu olhar”, ou a música “O desígnio” que cantamos agora, que “a minha liberdade é Seu desígnio sobre mim”) estavam sendo colocados a prova, entendi que através destas circunstâncias o Senhor estava me dizendo: “Você precisa me dizer se tudo aquilo que você veio dizendo esses anos todos é real, se é verdade, se é uma experiência sua”. Fazendo a faxina, ou triturando papel e fazendo buraco em folhas no escritório, eu me dizia: “Mas eu preferiria fazer outra coisa? O que é que me importa na verdade: fazer aquilo que eu penso que tenha mais valor ou fazer aquilo que me pedem e dizer o meu sim todos os dias para aquela coisa que me esta diante dos olhos? Era evidente aquilo que me correspondia e isso me fez provar uma liberdade e uma certeza da presença dEle dentro da minha vida. Eu comecei a entender o que significa dizer que Cristo é justaposto exatamente por meio destas circunstâncias que eu vivi, e entendi que é o desígnio de Deus que eu esteja ali. E como para confirmar isto que entendi, no último dia de trabalho antes de viajar, uma colega de trabalho saiu comigo e quando fomos nos despedir, ela me disse: “Você vai voltar?” Eu falei: “Se Deus quiser eu volto”. E ela: “Para mim é muito importante que você volte, pois você me ajuda muito”. Eu perguntei: Mas ajudo em quê? Eu fico triturando papel, fazendo buraco em folha, encadernando coisas no arquivo. E ela insistiu: “Para mim basta que você fique ali”. Eu fiquei impressionada com aquilo porque quem pode dizer uma coisa dessas? Eu não faço nada especial, faço coisas banais, totalmente banais, e quem olha diria que não tem valor. Se não fosse todo esse trabalho que Dom Giussani começou e Carrón está continuando a fazer conosco, eu não olharia, não me relacionaria com a realidade desse jeito. Fico pensando que aquilo que dá consistência para a minha vida é esse relacionamento com o Senhor, a Quem eu preciso dizer o meu sim todos os dias. Um sim que é fruto desses anos, quase 30 anos, de um caminho, que foi facilitado dentro dessa companhia de vocês. Obrigada.
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón