Nestas páginas, um diálogo com TATIANA KASATKINA, uma grande estudiosa de Dostoievski e uma das protagonistas do Meeting, que aqui se confronta como título: “A natureza do homem é relacionamento com o infinito”. Fala do mal e do perdão, da diferença entre saber e fazer experiência. E o “nome justo” a ser dado ao homem: “O seu movimento contínuo de estar a um outro nível do ser”
Tatiana Kasatkina é diretora do departamento de Teoria da Literatura e presidente da Comissão para o estudo de Dostoievski da Academia de Ciências Russa. A frieza formal destes cargos não transmite a ideia da sua paixão por Dostoievski, o homem que há onze anos a fez descobrir que “o céu não era uma cobertura, mas o céu”. “Quando li O Idiota, a cobertura saltou: percebi que o céu era aberto, porque nem o mundo nem o homem acabam aqui, nem o mundo nem o homem podem ser reduzidos ao que se pode tocar”. Por isso lhe pedimos para comentar o título do próximo Meeting: “A natureza do homem é relacionamento com o infinito”. Entrevistá-la é uma luta contra a banalidade do uso das palavras; não fala à toa, penetra na pergunta e na experiência, é rigorosa no tempo verbal que usa, não se satisfaz com as impressões, mede-se com a verdade. A seguir, eis o que nos disse.
“A natureza do homem é relacionamento com o infinito”. Esta frase de Dom Luigi Giussani diz acima de tudo uma coisa, que o homem tem uma “natureza” própria, não é um ser indistinto na realidade mais vasta da natureza. A senhora, nas suas aulas sobre Dostoievski, diz que a tarefa do homem é dar o nome às coisas e que o nome escolhido não pode ser uma convenção. De onde devemos partir para dar o nome “certo” ao homem?
Infinito é uma coisa que não tem fim, que dura para sempre, ou é o eterno? Aqui reside o enigma daquilo que Giussani diz; por relacionamento com o infinito pode-se entender que a natureza do homem tem necessidade de um movimento contínuo, ininterrupto, ao qual não se podem colocar limites porque, assim que o faz, o homem fica separado de si mesmo. Um homem que viva dentro dos limites estabelecidos, começa rapidamente a sentir uma nostalgia, uma nostalgia que denuncia tudo aquilo que, ao viver assim, é subtraído à sua natureza, porque a sua natureza é feita deste movimento contínuo.
E se por infinito entendermos o eterno?
Então o discurso sobre a natureza do homem adquire outro significado: não uma corrida para frente, mas uma potência que atua em planos e níveis diferentes. Também este aspecto do infinito está ligado à natureza do homem. A essência desta natureza está precisamente no fato de o homem não poder consistir apenas no nível concedido pelo positivismo. Assim que tenta viver dessa maneira, percebe que tem algo além, que tem órgãos que não está usando. Aliás, para permanecer nos limites do positivismo, seria melhor amputá-los.
Não me parece que haja uma contradição entre os dois significados.
Os dois aspectos que descrevi são próprios de uma natureza única; a inquietação do homem, o seu movimento para o infinito, é a tentativa contínua de estar a um outro nível do ser. Então, para darmos o “nome certo” ao homem, temos que levar em conta esta tensão contínua, esta contínua necessidade de ser e de viver para além daquele espaço em que o positivismo mantém o homem prisioneiro.
A mentalidade positivista dominante hoje em dia nos leva a considerar os homens por aquilo que fazem de bem e, mais ainda, de mal. Isto tem como consequência um moralismo sufocante. A senhora, ao falar de Crime e Castigo, explica que o homem nunca é apenas aquilo que faz e, a certa altura, diz que “um assassino pode ser mais apropriado – pode ser mais ‘a mão de Deus’ – do que um servidor da Igreja”. Como se pode olhar assim para um homicida? Como se pode olhar nos olhos um homem que matou e ver “outra coisa”?
Esta pergunta lembra-me outra, que foi feita muitas vezes na segunda metade do século vinte: ainda podem existir poesia e teologia, ainda se pode falar de Deus, depois de Auschwitz? Todos os desafios feitos a Deus se fundamentam no pensamento de que Deus é um assassino, porque não protege as pessoas das desgraças. Se pensamos isto de Deus, como é que podemos ver um homem em alguém que cometeu um ato terrível? Esta pergunta não é superada pela outra: como é que podemos ver a bondade do Senhor tendo como pano de fundo os acontecimentos trágicos que acontecem na nossa vida e na história? O olhar que me permite ver Deus é o mesmo que permite justificar o homem. Não é por acaso que compreender significa perdoar. Se pensarmos em nós, entendemos bem que nós não somos as nossas ações, aliás, muitas vezes aquilo que fazemos é o oposto daquilo que somos, é um delito de nós mesmos contra nós mesmos. Quando, muitas vezes depois de um gesto maldoso, nos exprimimos com ações que têm um sentido oposto à precedente, não podemos negar a boa ação porque a primeira foi má. Nem dizer que o homem não tem um rosto porque esse rosto está coberto de lama.
Dom Giussani diz que a mão pode matar, mas o coração não ser assassino...
O homicídio parece um pecado grave porque pensamos que nós não o cometemos. Não é verdade. Nós, com qualquer sentimento de repulsa em relação ao nosso próximo, até com os nossos desejos em relação a ele, começamos a matá-lo. É um pecado que todos, absolutamente todos, cometemos. De ninguém se pode dizer que “é” um homicida. O homicídio não faz parte daquela pessoa, não é uma manifestação do seu ser, mas um momento em que a sua natureza se obscureceu.
Neste sentido, como é que um homem que matou pode ser a “mão de Deus”?
Uma pessoa capaz de gestos grandes no mal, pode ser igualmente grande na outra direção. Mas qualquer pessoa pode ser a “mão de Deus”, qualquer pessoa que deixe a Deus a possibilidade de agir através de si. As pessoas assim tão grandes, tão vastas, são aquelas com quem Deus pode fazer mais. Deus não escolhe as pessoas pedindo a carteira de trabalho, nem olhando para o que uma pessoa veste; Deus age em cada um tanto quanto a pessoa lhe permite agir. Não existe o cristão de profissão.
A grande tentação da cultura contemporânea é o niilismo, o pensamento de que as coisas – e o eu – não são nada. Como é possível, em sua opinião, que o juízo da inconsistência da realidade e do homem ande lado a lado com a afirmação da total autonomia da realidade do homem? Com a total soberba, com a pretensão da ciência e da técnica e, portanto, do poder, de dominar e determinar totalmente a natureza, manipulando-a, até mesmo a natureza humana?
O homem fechado na realidade positiva encontra-se numa situação de inconsistência, suspenso, privado das suas raízes e dos seus ramos. A ideia de autonomia conduz a uma situação em que a origem e o fim do homem se encontram fora daquilo que o homem pode perceber, já não lhes tem acesso, passam a ser seres fantásticos.
Como se passa da autonomia do homem à soberba da ciência?
A ciência opera no seio destes limites fechados e mantém fora tudo aquilo que não cabe neles. Só que assim, sobra pouca coisa. O homem percebe que tem desejos e órgãos que, naquela vida restrita, não lhe servem para nada, mas como continua a tender para o infinito, a técnica vem em seu auxílio com todo um sistema de próteses que se substituem ao homem de uma forma rude e primitiva.
Há uma relação entre a restrição da realidade e a hipertrofia da técnica?
São duas faces da mesma moeda. Nesta situação de autonomia, nós já não tentamos entrar em relação com os outros, mas queremos governar a relação, sentimo-nos então no direito de manipular tudo o que para nós é objeto inanimado; começamos com a terra e acabamos com o homem. Já não somos capazes de uma relação entre sujeito e sujeito.
A razão procura, o coração confirma que a razão encontrou, a senhora diz parafraseando Puskin. Bento XVI fala de uma unidade profunda entre razão e coração, Dom Giussani diz que a religiosidade (o coração) é o vértice da razão e que este coração exprime o seu relacionamento com o infinito em certas perguntas inevitáveis e inextinguíveis. Os três dizem a mesma coisa?
Falamos de diferentes aspectos duma mesma coisa. A unidade entre coração e razão é uma unidade que se alcança, não é dada, é a unidade de coisas diferentes que muitas vezes entram em contradição. Penso que Bento XVI fala de unidade como um processo dinâmico e não como uma realidade estatística. Dom Giussani fala do fato de o coração colocar continuamente perguntas verdadeiras, perguntas que refletem a essência da natureza humana. O coração não pode deixar de perguntar e permite à razão apreender aquelas perguntas verdadeiras que existem apenas numa certa dimensão, num determinado nível da realidade. O coração é o órgão que alarga a razão a outras possibilidades em relação às perguntas da dimensão positivista da realidade, e neste sentido é o vértice da razão. Eu estou falando de outra coisa: no momento em que a razão começa a procurar, para responder às perguntas do coração, não pode confirmar a si mesma os resultados a que chega; a razão busca, quem confirma é o coração. Estes três aspectos estão juntos, a unidade profunda entre coração e razão exprime-se no fato de que o coração põe diante da razão aquelas perguntas sobre outros níveis do ser que ligam o homem à sua natureza. A razão faz a sua investigação, a decisão final cabe ao coração.
Existe um perigo de que o Meeting possa ser um grande “discurso cultural alternativo” ao positivismo e ao niilismo contemporâneos. A senhora convida a não nos aproximarmos da Literatura como de algo que não tem a ver com a vida, a não vivê-la como um “saber”, porque “o saber do homem é uma coisa que se adquire e se pode esquecer; a experiência é aquilo que não se esquece”. Como é possível, então, não “falar” do infinito, mas “fazer experiência” do infinito?
No homem, como em todas as religiões, existe sempre a tentação de considerar a tradição cultural como uma coisa adquirida de uma vez por todas. O homem tem o receio de ficar sem a sua bagagem e é tentado a dar valor a todas as coisas que acumulou e não à experiência que elas trazem.
Pode dar um exemplo?
Damos valor à arca da aliança e não às tábuas da lei que estão lá dentro, esquecendo a experiência da relação com Deus que aquelas tábuas exprimem, porque surgem no momento da relação entre Moisés e Deus. Perante esta dificuldade, agarramo-nos àquilo que estamos certos de possuir: a arca e as tábuas. Para aprender a fazer experiência, temos que abandonar a certeza de que já temos aquilo que procuramos. Temos que nos colocar numa situação de pobreza de espírito. Para fazer experiência, é preciso um conhecimento seguro do fato de que tudo aquilo que nos é dado não é mais do que o testemunho de alguma coisa que deve sempre voltar a acontecer.
A senhora é ortodoxa, eu sou católico. Em Rímini estarão muitas pessoas que professam outras religiões e muitos laicos. Como podemos encontrar e respeitar a diversidade do outro e, ao mesmo tempo, reconhecermo-nos juntos?
Somos todos muito diferentes e vivemos todos num único mundo. É o enorme desafio que cada homem tem diante de si, só que não conseguimos mantê-lo e começamos a recusar uma ou outra parte deste mundo, acusando-a de estar errada, de ser injusta... Uma reação histérica diante da riqueza que nos é proposta. Infelizmente, esta reação histérica pode ser de um indivíduo, de uma nação inteira ou de uma confissão religiosa. Como diz Dimitri Karamazov: “O homem é demasiado vasto, eu o restringiria”. Este desejo nos empobrece, porque recusa um ou outro aspecto de um mundo que o Senhor quis precisamente assim. Este é um enorme argumento para desfrutar da diversidade como riqueza nossa. Mas deve ser “nossa”, porque tudo aquilo que sentimos como estranho, é porque não o reconhecemos como nosso. Neste reconhecimento está a possibilidade de nos encontrarmos, de nos abrirmos e descobrirmos em nós algo inesperadamente novo.
Dostoievski agrada aos jovens porque é um deles (simplifico assim um lindo discurso seu sobre Dostoievski e Tolstoi). É contemporâneo deles, como o Evangelho é contemporâneo na escrita de Dostoievski. Diria a mesma coisa sobre o infinito? Agrada aos homens de todos os tempos, e logo também aos jovens, porque é um deles? Porque é contemporâneo ao coração deles?
O infinito como eterno é sempre contemporâneo, é outro plano por detrás do contingente. O acesso ao eterno é um só: o instante, a única coisa real. Nós encontramo-nos num brevíssimo instante, já não possuímos o passado e ainda não temos o futuro. Só há o instante em que o ser consiste, e é este que lhe dá passagem para o eterno. O que há de mais contemporâneo? Aliás, a única coisa que nós temos verdadeiramente é o eterno.
Qual é então o papel da cultura?
A cultura foi criada para tornarmos continuamente atual a sua herança, tornando presente aquilo que existiu um tempo. Quando não é assim, transporta-nos do presente para um tempo no qual já não podemos agir. A mesma coisa acontece quando projetamos os nossos desejos no futuro. Projetar-se no passado e no futuro é uma tentação, mas é também a experiência pela qual podemos aprender qual é a verdadeira natureza do homem: a capacidade de viver no instante que lhe é acessível e por meio disso ligar-se a toda a eternidade sem ceder àquilo que o leva embora daquele verdadeiro e único momento real. Toda a inadequação do homem deriva deste escapar do momento presente.
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