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Passos N.140, Agosto 2012

CULTURA - Encontros

Necessidade de tudo

por Alessandra Stoppa

“Eu achava que era mais forte do que a minha fome.” Mas quando a gente se esquece de si, “o mundo se torna pequeno”. Até não poder mais viver. A filósofa e escritora italiana MICHELA MARZANO conta sua história. A anorexia, a tentativa de suicídio, a descoberta de que o vazio “é a marca da nossa humanidade”. E que o pensamento “só nasce a partir daquilo que me impressiona”

“Por que você se veste sempre de preto?” A tia veio me visitar e essa é a primeira coisa que me diz, quando vou ao seu encontro, na entrada da casa. “Porque estou de luto”, respondo. “Como assim, tesouro? Quem morreu?”, ela pergunta. “Eu, tia. Você ainda não percebeu?”.
Ela era uma mocinha, então. Muito obediente. Boa em tudo o que fazia, mas não o suficiente, para o pai. E sempre carregando algo que a “comia por dentro”. Enquanto isso, deixava de comer e começava a corrida para ser impecável, para se tornar uma jovem de talento, digna de louvor na Escola Normal de Pisa, com uma tese sobre Ser e dever ser que hoje parece um grito e uma túnica para cobrir um corpo de 35 quilos.
Atualmente Michela Marzano é professora titular de Filosofia Moral e diretora do Departamento de Ciências Sociais na Université Paris Descartes: com 42 anos de idade, é uma autoridade no ambiente cultural francês. Escritora e colaboradora do jornal italiano La Repubblica, onde escreve com frequência sobre casais de fato, defesa das mulheres, eutanásia... Quase nunca estamos de acordo com suas posições, liberais e progressistas. Mas é surpreendente ouvi-la falar de si. Ou ler o seu blog, que não tem título, leva apenas o seu nome. E um texto de abertura: Se não houvesse atravessado as trevas, talvez eu não teria me tornado a pessoa que sou hoje. Talvez não teria entendido que a filosofia é, sobretudo, um modo de narrar a finitude e a alegria.
É possível, então, compreender um pouco melhor por que, depois de tantos livros sobre a filosofia do corpo, sobre a ética da autonomia ou a fecundação heteróloga, ela tenha optado por escrever um livro sobre si mesma. E entender por que gosta tanto de Hannah Arendt. A “filosofia do evento”. Um pensamento encarnado, que nasce “sempre e só” de algo que acontece. “A minha filosofia nasce a partir do que me impressionou”, diz. Assim tomou o seu evento, e lhe dedicou o último livro. “Eu queria ser uma borboleta” (Volevo essere una farfalla. Edizioni Mondadori, Milão 2011) fala da sua anorexia. Mas não é um livro sobre a anorexia. Ela narra a vida que se torna tormento quando se faz de tudo para ignorar a carência que somos, para negar “o vazio que temos dentro de nós”.
Querer ser mais forte do que a própria fome. Não é uma questão de comida, “o alimento é apenas um sintoma. É pensar que basta querer para poder. Pensar que a necessidade não conta, o que conta é apenas a vontade. O mundo assim se torna pequeno”, diz ela. “E eu não podia mais viver”.

A senhora escreve que “aprender a viver significa aceitar a espera”. E acrescenta: “Integrar a ideia de que o vazio que carregamos dentro de nós jamais poderá ser totalmente preenchido. Que haverá sempre algo a nos faltar”. O que quer dizer “aprender” isso?
Bem antes da anorexia, que é só um mecanismo, há outra coisa: a rejeição do que somos, porque se pensa no que deveríamos ser. Sobretudo se pensa que deveríamos superar os próprios limites, para responder sistematicamente às expectativas, nossas ou dos outros. No meu caso, tratava-se das do meu pai. Mas essa tentativa de se construir negando a própria realidade, como se a fragilidade não existisse, é a marca da nossa sociedade...

Por quê?
É uma sociedade voluntarista. Na qual vemos repetida por toda parte, por colegas, família, professores, amigos..., essa ideia de que se deve querer e, querendo, se consegue. É um sistema ideológico e muito contemporâneo. No que aconteceu comigo fica claro: eu achava que deveria ser mais forte do que a minha fome, porque precisava seguir uma espécie de comando interno que dizia: “Você é mais forte do que qualquer coisa, é mais forte do que a vontade”. Como se as necessidades não contassem. Eu recomecei a viver quando aceitei a mim mesma. Quando entendi que essa fragilidade estrutural que nos caracteriza a todos – sem exceção – pode se tornar um recurso.

Recurso em que sentido?
É a consciência de que as fraturas, as carências, toda essa fragilidade que carregamos dentro de nós, estão bem assim. Por que você está bem assim! Porque você é importante. Na minha vida, tudo mudou quando parei de passar o tempo me pressionando a seguir um dever ser. Entendo apenas uma frase daquilo que meu pai me dizia quando eu era adolescente: “O seu problema, Michela, é que você não se entrega”. Ele se referia à vontade de Deus. Mas eu entendo que é verdade também em termos “laicos”: entregar-se ao que acontece. Aprender a não buscar continuamente... arracher, eu diria em francês: conseguir, alcançar, agarrar. É preciso entregar-se para se dar conta de que as coisas acontecem, chegam. E é nesse momento que deixamos de estar em guerra conosco.

Para “entregar-se” ao que acontece é preciso acreditar que a realidade é maior do que pensamos.
De fato, eu me “esquecia” de mim mesma e das coisas em volta de mim. A mudança foi “tomar consciência de mim mesma” de novo. Tomar consciência das evidências da vida é a coisa mais simples e, ao mesmo tempo, a mais difícil. Eu dizia sempre à minha analista: o que eu posso fazer a mais para melhorar? Um dia ela me respondeu: “Talvez você deva fazer a menos...”. Dizer “o que posso fazer a mais” estava ainda no mecanismo do meu controle sobre tudo. É assim que “esquecemos de nós”, que começamos a nos esquecer do que de verdade queremos: é a relação entre o que o psicanalista Donald Winnicott chama de falso eu e verdadeiro eu. O primeiro é aquele que nós construímos para corresponder às expectativas. Ao passo que dentro de nós temos desejos e esperanças, temos “o que somos” de verdade, mas que não temos a coragem de ser e de dizer. Antes de tudo, porque não nos aceitamos tal como somos.

O que a ajudou a se aceitar?
Um percurso muito longo: vinte anos de psicanálise nos quais tive que considerar como, aos poucos, fui entrando nesse mecanismo no qual eu achava que tudo fosse condicionado. É um processo que exigiu muito tempo, porque não basta entendê-lo. Meu pai sempre me ensinou que vence na vida quem se impõe, aconteça o que acontecer. Então eu me perguntei: por quê? Não porque ele me tenha dito, pois isso faz parte da sua história. Mas por que eu acreditei nele? Porque eu o amava muito, e tinha medo de perder o seu amor. Mas, de novo, por quê? Provavelmente por certos fatores da infância, entre os quais a perda que se produziu em mim quando minha mãe precisou ser hospitalizada e eu era muito pequena.

“Entender” tudo o que aconteceu foi suficiente?
Não, porque eu sei que tudo isso se desencadeou, mas jamais saberei profundamente o por quê. Por que eu reagi assim, por que eu transferi tudo para o meu pai... Isso é misterioso. Não posso lhe dar uma resposta “racional”. Mas é preciso encarar esse mistério. E quando eu comecei a fazer isso, me libertei.

No livro a senhora escreve: “O que sabem os outros sobre o que eu tive que fazer para entender que necessitava de tudo?”. Depois, no blog, fala do “vazio” como “a marca da nossa humanidade”. E diz: “Quando se fala de vazio, imediatamente todos se agitam. Porque não cai bem, é perigoso... É um corre-corre geral. Como se fosse preciso preenchê-lo imediatamente. Só que não é assim! Inevitavelmente, uma hora ou outra, algo nos falta...”.
Nada e ninguém pode preencher esse vazio. A não ser que a pessoa ache que existe algo que chegará a preenchê-lo para sempre. Eu vi que o problema é quando eu espero tudo de uma outra pessoa, espero que um outro me ame completamente. Para quem tem fé, o único que nos ama exatamente como somos é Deus. Mas quando a gente experimentou um amor condicionado, um “eu te amo se...” – como aconteceu comigo na relação com meu pai, por quem eu me sentia amada no momento em que correspondia às expectativas dele –, então é que começa a crer profundamente que só nesse “se” é que pode ser amada, e não acredita mais que possa existir um amor incondicional.

Acredita que esse amor seja possível?
No livro não falo disso, mas a minha relação com a fé mudou bastante. Eu tive uma educação católica, mas quando comecei a ficar mal, senti muita raiva de Deus. Eu lhe perguntava: “Por que fez isso comigo?”. E ficava enraivecida com esse contínuo silêncio. Hoje sei que não era silêncio. Porque me lembro de certos momentos... Eu sei que Ele salvou minha vida. Mas eu precisava completar um percurso, precisava ultrapassar as fraturas, que permanecem, bem como o passado, que não passa nunca. Portanto, houve um momento em que me afastei verdadeiramente de Deus, porque o meu mundo tinha se tornado muito pequeno. Se hoje me reaproximei, é porque tenho uma relação comigo mesma que me permite ver e saber que esse amor existe.

A senhora conta que, com 27 anos, tentou o suicídio, quando o namorado a deixou, justamente pela ilusão “de que uma outra pessoa havia preenchido o meu vazio”.
O outro não é uma coisa que podemos pegar e colocar lá onde dói. O outro é um “outro”. É uma alteridade absoluta. Em 1997, tendo perdido a pessoa que eu amava, pensava ter perdido tudo. Se eu hoje perdesse Jacques, o meu companheiro, continuaria a “perder tudo”, mas não perderia a mim mesma. Porque eu tenho um valor irredutível.

O que é esse valor?
O fato de que a minha vida vale a pena ser vivida. De que a vida não depende de Jacques, não depende do trabalho, da função... As pessoas que se suicidaram por causa da crise econômica, como se fala neste momento, me impressionam muito. É terrível esse gesto, porque a gente pensa que perdeu tudo. O fato é que esse “perder tudo” pode acontecer mesmo. Mas, na realidade, mesmo quando perdemos tudo, resta o que eu não via antes: a simples e banal evidência de que viver é lindo. Eu tive que viver tudo o que vivi para tomar consciência disso.

A sua experiência mudou também o seu trabalho, a sua filosofia?
Completamente. Hoje sou o que sou porque atravessei o que vivi, mas sobretudo porque coloquei a mim mesma em discussão. O que aconteceu comigo, o “evento”, é um momento de verdade que muda o modo de olhar. Cada um é tocado por um momento de verdade, por algo que acontece. Tudo o que hoje eu escrevo e faço é fruto também disso. Depois, mudou também a minha concepção do trabalho: eu o vivo muito seriamente, mas aprendi a “dar espaço para o outro”, a não sacrificar tudo à função, porque não é só o que dá um lucro imediato que vale. Comecei a ver os momentos de autenticidade, além da aparência. De certo modo, é sair de uma visão utilitarista da vida.

A senhora conta que, depois de se recuperar do sofrimento maior, se casou, viajou para a França, aprendeu a língua, venceu o concurso na Universidade... Mas de novo se deu conta de que era infeliz, porque “eu tinha tudo, mas não tinha nada”.
Sim. Foi aí que comecei a psicanálise francesa. E reencontrei as palavras. Comecei a dar um nome à desordem que eu tinha. Levei muito tempo, porque é algo doloroso. Mas começar a nomear as coisas, como diz Albert Camus, traz ordem. Haverá sempre uma perda entre a experiência e o que se consegue dizer, mas quando a perda é grande demais, a gente não entende mais nada, de si e do mundo.

Por que a linguagem ajuda a colocar ordem, a conhecer?
Porque aquelas “evidências” de que falávamos – que, justamente, não são mais tão evidentes – começam a emergir. Para mim, foi um deslocamento progressivo: a reconhecer aquilo que eu sou, e as coisas. Por isso hoje digo que “estou bem”, não no sentido de que tudo está no lugar, mas no sentido de que estou mal como todo mundo. O meu vazio existe sempre. Mas o olhar é mais rico, porque me dou conta das coisas que não via antes. E posso olhar também as coisas que aparentemente não têm sentido.

No livro cita Dostoievski: “Ame a vida mais do que o sentido dela, e até o sentido você encontrará”. Depois se pergunta: “Mas como se faz para amar a vida antes de ter encontrado o sentido?”. Hoje, como responde?
Agora posso amar a vida também naqueles momentos em que imediatamente não entendo o porquê, em que o sentido escapa. Posso fazer isso porque sei que, esperando, as coisas vão bem: não se reordenam, mas encontram resposta. Porque a vida é esperar. Esperar esse sentido. Hoje sei que um dia, ainda que não nesta vida, entenderei o motivo.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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