Trechos da colocação de Javier Prades, diretor da Universidade Teológica San Damaso.
Em recente artigo publicado na imprensa espanhola, o escritor Gustavo Martín Garzo descreve o panorama da cultura contemporânea. Inspirando-se no filme de Sofia Coppola, As virgens suicidas, sustenta o argumento de que o diretor procurou traduzir em imagens “a eterna dissociação entre realidade e desejo, que desde sempre angustia e faz sofrer o homem (...)”. E prossegue: “Cada um de nós precisa aceitar que a vida que o espera é por demais limitada para que possa abrigar todas as aspirações e os desejos que trazemos dentro de nós”. Para fundamentar a sua argumentação, Garzo cita o escritor alemão Walter Benjamin, “afirma que ‘um dos problemas do mundo atual é a pobreza de experiências (...): a incapacidade de fazer experiências e de transmiti-las é, talvez, um dos poucos dados certos de que [o homem de hoje] possui em relação a si próprio’. A banalidade da nossa vida se confunde com a banalidade de grande parte da cultura e do mundo que nos circunda. (...) Os homens e as mulheres de hoje vivem sem pôr nenhum freio aos próprios desejos e, mesmo assim, possuem menos coisas a dizer a si mesmos”.
Martín Garzo percebe uma desproporção entre a realidade e o desejo, denuncia a banalidade do nosso tempo, atribuída à pobreza da experiência humana, isto é, das experiências vividas que são capazes de mudar a vida. Como prova dessa penúria, observa que hoje é muito raro que alguém goste de contar aos outros alguma coisa que de fato valha a pena narrar.
Também o jornalista Pedro García Cuartango denuncia um clima social de banalidade opressiva. O elemento novo, em relação ao artigo anterior, é que Cuartango intui que essa superficialidade deriva da eliminação de Deus, o que suscita uma rebelião no humano, porque este não consegue aceitar que é um ser insignificante e crê que a vida precisa ter um sentido.
“Sempre censuraram a minha necessidade de absoluto, que, aliás, aparece em minhas personagens”, anotava o escritor argentino Ernesto Sábato: “Essa necessidade atravessa como um rio a minha vida, ou melhor, como saudade de algo que eu nunca alcancei (...) Eu jamais consegui acalmar essa saudade, domesticá-la, dizendo-me que essa harmonia existiu há algum tempo na minha infância; gostaria que fosse, mas não foi assim (...) a saudade é para mim um anseio jamais satisfeito, o lugar em que eu jamais consegui chegar. Mas é o que gostaríamos de ter sido, o nosso desejo. É tão verdadeiro que não se consegue vivê-lo, que poderíamos até crer que resida fora da natureza, não fosse o fato de que todo ser humano carrega em si essa esperança de ser, esse sentimento de algo que nos falta. (...) A saudade desse absoluto é como o pano de fundo, invisível, incognoscível, mas com o qual nos confrontamos a vida toda”.
As palavras de Ernesto Sábato são uma tentativa de narrar aos outros a natureza do desejo, que nos identifica como seres humanos. Não é difícil reconhecer nessa descrição literária a marca daquele complexo de evidências e exigências que constituem a experiência humana elementar e que levam o nome bíblico de “coração”.
Eis como o descreve dom Giussani: “Todas as experiências da minha humanidade, da minha personalidade passam pelo exame de uma ‘experiência original’, primordial, que constitui o rosto no meu confronto com tudo. (...) Qualquer afirmação da pessoa, da mais banal e quotidiana a mais ponderada e cheia de consequências, só pode acontecer sobre a base desse núcleo de evidências e exigências originais”.
Um fator essencial desse complexo de evidências é que no centro da experiência elementar encontra-se uma abertura, uma tensão inextinguível para o infinito, para “algo” que existe na realidade e, ao mesmo tempo, nos remete para além, que experimentamos na vida quando esta nos lança para além, para um mistério cuja verdadeira face não conseguimos descobrir, mas que não podemos deixar de procurar.
No âmbito da cultura plural do Ocidente, em que convivem diversas expressões do relacionamento com o infinito, podemos ouvir a experiência de um relacionamento singular com o infinito: a história dos primeiros homens que encontraram Jesus e que o reconheceram como o Cristo, o Messias de Israel, o Filho de Deus.
O Evangelho é um longo relato desse tipo de experiência. Muitas pessoas correm para contar aos outros, algo que lhes mudou a vida: o encontro com Jesus de Nazaré. O que viam nEle? Numa extrema síntese, poderíamos dizer que nesse “encontro” reconheciam uma presença excepcional, sem comparação, a qual intuíam que Deus se fazia próximo de quem estava ali, com eles.
Tendo presente o título do Meeting (“A natureza do homem é relacionamento com o infinito”), poderíamos dizer que quando aqueles homens conheceram Jesus, fizeram uma experiência singular de relacionamento com o infinito, porque Aquele homem trazia o infinito, tornava-O, por assim dizer, possível de ser sentido, visto, ouvido, e desse modo percebiam que a vida deles encontrava uma realização superabundante nesse relacionamento. Durante a convivência com esse homem extraordinário eles iam descobrindo os traços inconfundíveis de um modo novo de conhecer o infinito mistério de Deus e, portanto, de conhecer a si próprios. Vinha à tona a estatura infinita do “eu” deles, até descobrirem com admiração e surpresa que o eu deles era maior do que o mundo.
Não encontrei um modo mais eficaz de descrever essa surpreendente valorização de si mesmos e do próprio destino, como fruto do encontro com Jesus, do que as palavras que Dom Giussani dirigiu a João Paulo II em maio de 1998: “‘Que é o homem, para te lembrares dele, o filho do homem, para cuidares dele? ’. Nenhuma pergunta me impressionou tanto na vida como esta. Houve só um Homem no mundo que podia me responder, colocando uma nova pergunta: ‘Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se depois perder a si mesmo? Ou que poderá dar em troca de si mesmo? ’. Nunca me foi dirigida uma outra pergunta que me deixasse sem fôlego como esta de Cristo! Mulher alguma jamais ouviu uma outra voz falar de seu filho com semelhante ternura original e indiscutível valorização do fruto do seu seio, com afirmação totalmente positiva do seu destino; só a voz do judeu Jesus de Nazaré. Porém, mais ainda, nenhum homem pode sentir-se afirmado com essa dignidade de valor absoluto, para além de qualquer sucesso seu. Ninguém no mundo jamais pôde falar assim!”.
O que os primeiros discípulos perceberam, o que Dom Giussani percebeu com essa dramática sensibilidade, e o que, tomara, cada um de nós possa descobrir com estupor e humildade, é que no encontro com Jesus emerge a nossa verdadeira estatura, a estatura do homem, do seu desejo, dessa saudade de absoluto que percorre as culturas humanas.
Quem O encontrava podia descobrir a si mesmo, o mundo e Deus, segundo uma novidade inimaginável, podia ver tudo com um olhar infinito, com o olhar de Deus.
Aqui se colocam duas perguntas: essa história particular é realmente universal, é realmente conveniente para todos os homens? Tem a força e a dignidade cultural para se comparar com as conquistas das ciências naturais e sociais, que parecem reduzi-la a um mero sentimento subjetivo que se limita ao âmbito privado? Diferentemente do passado, hoje não se sente mais a necessidade de eliminar a fé cristã; prefere-se negar o seu caráter universal; basta encerrá-la no gueto das opiniões subjetivas, que se pode professar privadamente, desde que não tenham a pretensão de dizer a verdade a respeito do homem, do mundo e de Deus. É como se diante dessas objeções fôssemos vulneráveis e pudéssemos ceder a suspeita de que o encontro acontecido não nos ensina a verdade do homem e, portanto, que não é conveniente para todos.
É evidente que a primeira responsabilidade cultural que temos diante desse desafio é viver a novidade da vida que nos alcançou, que nasce do olhar de Cristo sobre nós. Trata-se, pois, de sermos cristãos, de vivermos a vida do novo Povo de Deus, pois é o lugar da manifestação de Cristo ressuscitado, que se torna contemporâneo a nós.
Dessa vida nasce para cada um a responsabilidade de aprofundar uma reflexão crítica e sistemática sobre as razões da experiência que vivemos. Quando falamos de uma novidade, de uma diversidade que atrai ou de uma companhia que é diferente, aludimos a algo que é diferente e maior do que um estado de espírito ou de um sentimento, os quais, embora de todo respeitáveis, são incapazes de dar a razão de si? Podemos afirmar que esses traços existenciais encontram o seu fundamento na natureza do homem e, portanto, podem ser explicados racionalmente e propostos a todos?
As dimensões desse trabalho cultural são imensas e não podem ser descritas em termos genéricos. Cada um precisa verificar, no que se refere ao seu âmbito concreto, como se dá essa mudança dos esquemas do mundo a que São Paulo incita todo cristão: “Não vos conformeis com a mentalidade deste século, mas transformai-vos renovando a vossa mente, para poder discernir a vontade de Deus, o que é bom, a ele agradável e perfeito”.
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