Apontamentos do diálogo na Assembleia Geral da Companhia das Obras (CdO)
MiCo – Fiera Milano Congressi, Milão, 25 de novembro de 2012
A crise e a pessoa
Bernhard Scholz. Estes tempos são caracterizados por uma dificuldade para quem se dedica à obra e à empresa. Parece que tudo vem abaixo como durante um terremoto. Na assembleia anterior redescobrimos como ser livres e não escravos das circunstâncias e como viver com capacidade construtiva, de que tantos deram testemunho. Hoje que remamos “contra a maré”, o que é que nos pode ajudar a ter audácia e realismo?
Julián Carrón. É com apreensão que aceito o convite dos meus amigos para me dirigir a vocês, que são os verdadeiros protagonistas neste terremoto. A razão por que pode ser útil falar a vocês é para ajudar a terem mais consciência de que cada um de vocês, empresários ou envolvidos em vários níveis na empresa, são pessoas. Pode parecer a descoberta da pólvora, mas eu não acho que seja assim tão banal. É precisamente isso que todos dão por óbvio, reduzindo a pessoa às suas capacidades. Mas a pessoa é una. Dizer que o empresário é uma pessoa quer dizer que, antes de qualquer outra coisa, tem necessidade de uma consistência pessoal sem a qual o resto, a começar pelas suas capacidades, se revela insuficiente. É demasiado evidente hoje que o terremoto afeta o centro do nosso eu, a sua consistência. Nesse sentido, a crise pode ser uma oportunidade preciosa para descobrir a verdade de nós próprios, onde está a nossa consistência, e assim pôr um alicerce adequado para enfrentar a situação, o desafio que temos pela frente que nunca está desligado do exercício da nossa profissão.
Mas o que é o eu de cada um de nós? A genialidade de Dante vem em nossa ajuda: “Temos confusamente ideia e fome / De um bem onde o nosso ânimo se aquiete: / E para alcançá-lo todos combatem” (Purgatório, XVII, vv. 127-129). Onde é que um eu assim constituído, com este desejo de bem que nos constitui, pode encontrar a sua consistência para poder resistir no meio de um terremoto? Está justamente aqui o desafio mais verdadeiro das circunstâncias que devemos enfrentar. Para achar uma resposta não bastam opiniões, interpretações, conversas fiadas, que valem o que valem. É preciso que cada um veja na sua experiência (ou na experiência de outros) o que é que tem consistência para conservá-lo de pé. Santo Tomás fornece-nos o critério da consistência: “A vida do homem consiste no afeto que principalmente o sustenta e no qual encontra a sua maior satisfação” (S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, IIa, IIae, q. 179, a.1 co). Para ter consistência é preciso, portanto, encontrar esse afeto capaz de sustentar a vida, precisamente porque assenta inteiramente na satisfação pessoal.
É a este nível que, na medida em que somos cristãos, podemos oferecer a nossa simples contribuição: se somos nós os primeiros a aceitar a verificação da fé nas atuais circunstâncias. Realmente, só quem fez essa verificação pode fornecer a confirmação de que só Cristo, presente na Igreja, corresponde às exigências constitutivas do coração do homem. Como recordou Bento XVI na quarta-feira passada, “Cristo, o único que sacia os desejos de verdade e de bem [de que fala Dante] arraigados na alma de cada homem” (Audiência Geral, 21 de novembro de 2012). Só Cristo, portanto, assegura tal satisfação que gera um afeto capaz de sustentar a vida em qualquer eventualidade, revelando-se uma âncora segura no meio do terremoto. É aqui que se vê se o desafio das circunstâncias fez amadurecer em nós uma certeza que nos permita oferecer aos nossos irmãos homens um ponto de apoio seguro. Só Ele pode ser o fundamento adequado de uma amizade operativa como a de vocês. De fato, só na companhia de amigos verdadeiros serão capazes de ver a realidade da empresa de vocês com verdade, sem serem vencidos pelo medo que impede de reconhecer o estado das coisas, única condição para poder enfrentá-las com alguma hipótese de sucesso. Uma companhia de amigos que os apoie no olhar para todos os sinais da situação em que cada um se encontra sem censurar ninguém, que os encoraje e os sustente na disponibilidade para reconhecer e obedecer à indicação de tudo quanto é necessário alterar, que lhes sugira e os ajude a ter a audácia de tomar decisões, ainda que arriscadas, que sejam mais adequadas para fazer face aos desafios que têm pela frente.
Tudo, quando confirmado na experiência, lhes fará descobrir o valor mais precioso da amizade de vocês: ser o suporte de um olhar mais verdadeiro sobre a realidade. Comparado com isto, qualquer outro proveito ou vantagem de qualquer tipo é demasiado pouco para tempos de terremoto ou não.
Santo Tomás captou bem a natureza do desafio: “Da natureza brota o terror da morte, da graça brota a audácia [palavra que vocês escolheram como título deste encontro]” (cf. S. Tomás de Aquino, Super Secundam ad Corinthios, 5, 2). “‘Da graça brota a audácia’ quer dizer, então: de uma Presença diferente de nós brota em nós a audácia” (L. Giussani, Un avvenimento di vita, cioè una storia, Roma, Edit-Il Sabato, 1993, p. 308). Apenas poderei ter a audácia que necessito se estiver disposto a fundar tudo nessa presença, nessa companhia verdadeira que me oferece o ponto de apoio para arriscar. Por isso Dom Giussani dizia “símbolo emblemático da audácia é A Navegação de Andrea Pisano (uma pequena escultura […]). Distinguem-se dois discípulos no barco que, rasgando as águas do lago, remam, tão concentrados quanto calmos e seguros, até à outra margem: atrás deles, no barco, está Jesus. O caminho, a passagem, a travessia rumo ao destino, torna-se possível de fato unicamente quando há uma presença (se uma pessoa fosse sozinha remando, se anuviaria a sua vista e logo pararia). O caminho torna-se simples se houver uma presença, ou seja, digamos já a palavra: se houver uma companhia” (Ibid.).
A origem e a obra
Scholz. Muitas obras e empresas associadas da CdO nascem de pessoas pertencentes à experiência cristã, muitas vezes vivida no Movimento Comunhão e Libertação. Como se reflete na obra esta origem? Como se reflete na empresa?
Carrón. Agradeço essa pergunta porque nestes tempos é particularmente urgente esclarecer qual é a relação entre o Movimento Comunhão e Libertação e as obras realizadas por pessoas educadas no Movimento.
1) O objetivo do Movimento Comunhão e Libertação é educativo: educar pessoas que depois possam, assumindo a sua própria responsabilidade, tomar a iniciativa de criar obras; e esta é uma responsabilidade totalmente confiada ao adulto. O Movimento não entra na gestão da obra, porque seria como admitir que o Movimento não é capaz de gerar adultos que assumam a sua responsabilidade; e isso seria o fracasso total da experiência de um Movimento como o nosso. Não é que o Movimento se desinteresse das obras. Não. O Movimento interessa-se, está presente desenvolvendo o dever que lhe é próprio, ou seja, através da geração do adulto. Dom Giussani estava tão convencido de que o Movimento podia gerar sujeitos adultos que deixou totalmente nas mãos das pessoas a responsabilidade pela obra que criam; não sentiu a necessidade de colocar um “guarda” para ter as pessoas sob observação. Apostou e “arriscou” tudo na consciência de responsabilidade dos adultos.
2) A obra é inteiramente de quem a faz e, portanto, não existe uma obra “do” Movimento. O Movimento não tem obras, exceto o Instituto Sacro Cuore [de Milão], que Dom Giussani quis como exemplo para todos no âmbito educativo. Por isso, nenhuma outra obra está sob a responsabilidade direta do Movimento. O Movimento não faz parte do Conselho de Administração desta ou daquela obra e, por isso, não fazendo parte, não assume a responsabilidade das decisões que um Conselho de Administração toma. Penso que a questão seja simples.
Todas as pessoas que, na medida em que são adultos, decidem dar vida a uma obra, têm de ter noção da sua responsabilidade total pela obra. Isto é particularmente importante porque às vezes se nota mesmo a falta dessa consciência. E, assim, pode acontecer que se deixem as coisas correr soltas quando seria necessário intervir, em vez de assumir a responsabilidade como adultos. Se todos estivessem verdadeiramente cientes da sua responsabilidade, não aconteceriam determinadas coisas.
Isto é uma chamada à responsabilidade pessoal como adultos, e portanto é um desafio a crescer nessa autoconsciência no modo de gerir as obras em que estão envolvidos. Assumir essa responsabilidade é uma parte deste crescimento do sujeito que todos desejamos. É essa a responsabilidade do leigo que a Igreja quer que cada um assuma, a fim de que, ao fazer as coisas, possa dar testemunho de toda a novidade da vida cristã, toda a novidade que nasce da criatura nova. Por isso me parece que há muito caminho a percorrer, e não porque não haja muitas experiências fantásticas entre vocês, mas porque é preciso aprender com o que acontece, ou com as possíveis deficiências que se podem detectar nas obras, para tomar consciência e evitar erros ou riscos que tantas vezes temos de enfrentar.
A capacidade de um adulto – que participa da experiência de Comunhão e Libertação – de gerar obras é um sinal da vivacidade do Movimento, da sua energia educativa de gerar pessoas sensíveis às necessidades dos outros e capazes de se juntarem para realizar iniciativas, obras, que constituam respostas adequadas às necessidades. A isto nunca renunciaremos. Quantas vezes fico sem palavras perante tanta criatividade, iniciativa e generosidade! Isso é fruto da educação recebida no Movimento Comunhão e Libertação. É uma coisa belíssima, que testemunha a capacidade da fé de gerar sujeitos capazes de serem protagonistas através da realização de obras. Tal riqueza de iniciativas é um fato, um dado evidente a todos, e não se pode pôr em questão por causa das limitações de cada um ou dos erros que qualquer um pode cometer. Aliás, reconhecê-los, pedir desculpa e corrigir-se representa a possibilidade de readquirir consciência da responsabilidade pessoal nas obras em que a pessoa se compromete. Não se pode pôr em risco essa riqueza por falta de pessoal.
Faz parte desta responsabilidade, além do realismo e da prudência em realizar as obras que Deus permite fazer, fazer resplandecer nelas a sua diversidade, por exemplo, no modo de tratar o pessoal bem como no modo de relacionar-se com os clientes e fornecedores. Parecem sinais quase banais, mas todos sabemos que “bradam” a diversidade de uma obra.
Mas antes de terminar este ponto gostaria de aproveitar esta oportunidade para dizer uma coisa a respeito da CdO, muitas vezes apresentada pelos jornais como “braço econômico” de CL e que leva alguns a pensar que CL depende economicamente da CdO. Nada mais longe da realidade.
Desde o início o Movimento é vivido exclusivamente graças aos sacrifícios econômicos das pessoas que a ele aderem. Quem pertence ao Movimento, compromete-se a entregar mensalmente uma cota em dinheiro, livremente estabelecida, o chamado “fundo comum”, que Dom Giussani sempre indicou como gesto educativo para uma concepção comunional de quanto se possui, para a consciência da pobreza como virtude evangélica e como gesto de gratidão por aquilo que se vive no Movimento. Precisamente pela razão educativa referida, não é relevante a quantia que cada um entrega, mas sim a seriedade com que se permanece fiel ao compromisso assumido. Para sustentar a vida das nossas comunidades na Itália e no mundo e as iniciativas caritativas, missionárias e culturais, o Movimento Comunhão e Libertação não precisa de nada mais; e por isso somos livres de tudo e de todos ao desenvolver o nosso dever como Movimento.
A responsabilidade
Scholz. Muitas vezes a pertença à Igreja ou a um Movimento eclesial é vista como uma limitação à responsabilidade pessoal, ao passo que você insiste que é justamente essa pertença que favorece assumir a responsabilidade. Em que consiste essa potencialização da responsabilidade através de uma pertença?
Carrón. Tudo depende de como se concebe o nexo entre pertença e responsabilidade. Existem tipos de pertença que, em vez de ajudarem a amadurecer, a crescer na sua responsabilidade, se substituem ao sujeito que pertence. Como se a pertença a um certo grupo pudesse poupar o risco de uma responsabilidade pessoal e justificasse como um a priori o nosso comportamento. Há, pelo contrário, uma pertença que gera a pessoa na sua responsabilidade, na sua liberdade, na sua iniciativa. Desperta, exatamente, todas as energias ocultas do sujeito.
Dizia Dom Giussani: “A dimensão comunitária representa não a substituição da liberdade, da energia e da decisão pessoal, mas a condição da sua afirmação. Se eu coloco uma semente de feijão sobre uma mesa, mesmo depois de mil anos (dado que tudo permaneça intacto) ela não se desenvolverá. Se eu tomo essa semente e a coloco na terra, ela se torna uma planta. O húmus não substitui a energia irredutível, a ‘personalidade’ incomunicável da semente: o húmus é a condição para que a semente cresça. A comunidade é a dimensão e a condição para que a semente humana dê o seu fruto. Por isso, a verdadeira perseguição, a mais inteligente, é aquela que o mundo moderno faz, e não a que Nero fez no seu anfiteatro. A verdadeira perseguição não são as feras, não são nem mesmo os campos de concentração. A perseguição mais feroz é o impedimento que o Estado busca operar à expressão da dimensão comunitária do fenômeno religioso. Sendo assim, para o Estado moderno o homem pode, na sua consciência, acreditar em tudo o que quiser, desde que esta fé não implique, em seu conteúdo, que todos os crentes sejam uma só coisa e que, por isso, tenham o direito de viver e de expressar essa realidade. Impedir a expressão comunitária é como cortar pela raiz a alimentação da planta; em pouco tempo, a planta morre” (L. Giussani, O senso religioso, Brasília, Universa, 2009, pp. 198-199). Penso que temos diante de nós muitos exemplos do que sucede quando se impede esta possibilidade, esta expressão comunitária decisiva para o crescimento das pessoas.
O teste da pertença é a sua capacidade de fazer frutificar a semente, que é gerar adultos com uma capacidade de estar na realidade, de julgar, de compreender a realidade, estar disponíveis a escutar essa realidade. Neste ponto não bastam declarações de princípio. É preciso que haja testemunhos que comprovem que as pessoas florescem na pertença e que a pertença gera as pessoas.
Scholz. Há pessoas que, com o seu talento e temperamento, tiveram o dom de criar obras e empresas. Puseram-se em jogo pessoalmente, assumiram uma responsabilidade pessoal. Mas em certos casos este compromisso pessoal converte-se em personalismo, um centrar-se em si próprios, com uma relativização dos critérios objetivos. Este personalismo evidencia-se, depois, também na dificuldade da passagem geracional. De onde nasce este personalismo e qual seria o caminho para uma real valorização da pessoa responsável?
Carrón. O personalismo é uma tentativa errada de resolver o problema da vida, de atingir essa realização pela qual vale a pena viver. É pena que essa tentativa nasça da incapacidade de entender a natureza do eu e de não ter encontrado resposta adequada às suas exigências. “A natureza do homem é relação com o infinito”, recordamos no último Meeting. Se não nos damos conta de que somos “feitos para o infinito”, procuramos consciente ou inconscientemente responder à nossa necessidade humana – você dizia – com um “centrar-se em si próprio” que nunca poderá satisfazer o desejo de infinito que nos constitui. Além de errado, o personalismo é inútil para responder à exigência por que se age.
Mas esse personalismo só é possível graças à conivência de todos aqueles que pensam resolver o problema das suas vidas descarregando a sua responsabilidade sobre quem exerce esse personalismo, o chamado “responsável” (todos podem ser coniventes com este personalismo). Então, “o relacionamento com o responsável, quando este é seguido por ser o chefe da organização na qual se descarregam todas as esperanças e da qual se pretende a realização do próprio projeto, tende a ser absolutamente fechado numa dependência individualista.
A obediência que se instaura é obediência à organização, da qual o responsável é o ponto crucial e o guardião, e isso elimina a criatividade, porque tudo fica estabelecido e definido pela estrutura à qual se adere, tudo vira um esquema” (L. Giussani, Educar é um risco: como criação de personalidade e de história, São Paulo, Companhia Ilimitada, 2000, p. 96).
Como se sai do personalismo?
Do personalismo se sai como se sai de qualquer idolatria: encontrando uma presença de tal forma verdadeira que nos provoca pela promessa de realização que a sua própria existência coloca diante de nós. Só quem se dá bem conta da verdadeira natureza da própria necessidade humana pode compreender que aquilo que responde a isso é unicamente o seguimento dessa presença que nos provoca pela promessa que contém. Mas a chave está na própria concepção do seguimento. O seguimento não pode ser concebido como um executar ordens de uma pessoa sobre quem se descarregou a nossa responsabilidade na esperança de que o outro resolva o problema da nossa vida.
“Seguir é desejar – dizia Dom Giussani – reviver a experiência da pessoa que o provocou e que o provoca com a sua presença na vida da comunidade, é a tensão a se tornar como essa pessoa na sua realidade concreta cheia de limites, mas no valor ao qual ela se entrega e que, no fundo, redime também o seu rosto de pobre homem; é desejar participar da vida daquela pessoa através da qual foi levado até você algo de Outro, e é a esse Outro que você é devoto, é a Ele que você aspira, a Ele você quer aderir, dentro deste caminho” (Id., pp. 96-97).
Só alguém empenhado em reviver a experiência da pessoa que a provocou, pode chegar ao Outro, Àquele em quem encontra aquilo a que aspira: não tendo mais necessidade de centrar tudo e todos em si próprio, pode finalmente libertar-se de todo o personalismo.
Só um homem assim pode suscitar no outro o desejo de seguir, de implicar-se e, procedendo deste modo, ajuda os seus colaboradores a serem eles próprios, colocando-os em condições de oferecer a sua contribuição à obra comum. Dessa forma, todos os recursos humanos são postos ao serviço da obra.
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