Quando um olhar é capaz de transformar a realidade de uma escola pública e comover um grupo de pessoas em torno do bem do outro
Em julho de 2011, um grupo de mães, preocupadas com a educação de seus filhos, procuram Cleuza Ramos para falar sobre fatos ocorridos em uma escola pública, localizada em uma das áreas da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo (ATST). Venda de drogas, furtos e falta de professores eram apenas alguns dos problemas que habitavam a escola Parque Anhanguera, de ensino fundamental e ensino médio, localizada na comunidade do Sol Nascente, Zona Oeste da capital paulista. Para se ter ideia, naquele ano, foram dadas apenas 30% das horas-aula estabelecidas em lei.
Comovida pelo que lhe relataram e também com o apelo daquelas mulheres, Cleuza, presidente da ATST, decide entender e verificar com seus próprios olhos o que de errado havia por ali. “Uma desgraça total. Tinha muita aula vaga, não tinham professores, o diretor tinha dois empregos, uma bagunça generalizada. Fiquei desesperada com aquilo”, relembra.
Após tentativas de diálogo com o diretor da escola e funcionários da secretaria de ensino, Cleuza e seus amigos da Associação entenderam que seria necessário documentar o que se passava na escola, a fim de respaldar os testemunhos das mães. Foi quando decidiram contratar uma pessoa da comunidade para que ao longo de três meses relatasse tudo o que via de errado.
“A dona Nice tinha um neto na escola e morava bem em frente ao local. Ela chegava a ficar 10 horas na escola, para pegar todos os turnos. Nunca ninguém questionou a presença dela ali. De forma muito simples, em folhas de caderno, ela anotava diariamente a rotina do que presenciava. Uma vez, na falta de professor, pediram a dona Nice que passasse matéria na lousa para uma turma”, relembra Amanda Ramos Barion, advogada e coordenadora da ATST. Amanda recebia todos os dias os relatos de dona Nice e foi responsável pela releitura e organização de um relatório final.
Com este documento em mãos, Cleuza, Amanda e outros amigos da Associação encontraram o Secretário de Educação e a Primeira Dama do Estado de São Paulo. Contaram sobre o ocorrido e pediram ajuda. O diretor, então, foi afastado, foram contratados professores temporários para cobrir o déficit e um trabalho dentro da escola começou a ser realizado com a presença dos universitários de CL através de caritativas, com a prática de workshops pelos jovens da Associação e do movimento Educar para Vida, com oficinas de arte e cultura, e reuniões com os pais. Cerca de 40 pessoas foram envolvidas em todo este processo.
UMA MESA REDONDA. “O dia que eu chamei a reunião de pais fiz uma filipeta dizendo: Venha na reunião para cuidar de assuntos de seu filho, porque se você não tem tempo os traficantes têm. Os pais vieram todos”, anima-se Cleuza. Além dos pais, também estavam presentes os traficantes, que queriam saber o que era toda aquela movimentação. E o primeiro pedido que os pais fizeram a Cleuza foi justamente a ajuda para solicitar um policiamento mais efetivo que ajudasse a combater o tráfico.
“Eu falei para os pais: olha, droga não se combate com polícia, se combate com uma mesa redonda. Cada um aqui vai comprar uma mesa redonda para poder ter pelo menos uma refeição com seu filho e poder olhar na cara dele. Na hora que você conseguir olhar para a cara do seu filho pelo menos uma vez por dia a clientela do tráfico vai diminuir.” Os pais foram surpreendidos por aquelas palavras, assim como os traficantes, que debocharam ao ouvir os conselhos de Cleuza.
Paralelamente ao trabalho com os pais, o grupo da Associação recorreu à Primeira Dama, presidente do Fundo Social de Solidariedade do Estado (de iniciativa público-privada), para implementar um projeto extra-curricular de arte e cultura dentro da escola com aulas de circo, música, entre outras atividades. Atualmente está sendo construído um prédio ao lado da escola para que essas oficinas culturais sejam aplicadas às crianças e à comunidade como um todo.
“Um dia quando eu acompanhava uma assessora da Primeira Dama para avaliarmos as questões técnicas para implantação de um circo-escola, percebi que estávamos rodeadas por crianças de 11 e 12 anos, que ao invés de brincarem durante seu recreio nos observavam. Elas tinham um olhar de espera e então me dei conta de como queria o bem delas e agradeci a Deus por me dar a oportunidade de fazer algo por elas”, testemunha comovida Amanda, sobre as transformações que também ela enfrentou durante este ano ao se dedicar a esta empreitada.
Outra grande mudança observada foi em relação ao corpo docente da escola em questão. “Antigamente nenhum professor queria vir dar aula na nossa escola, esse ano, na atribuição de aulas, conseguimos todos os professores. Todo mundo quer vir dar aula na nossa escola agora, isso é um fato inédito”, comenta Amanda.
Também a relação dos membros da Associação com a nova diretora da escola se fortaleceu. “A gente foi pouco a pouco ganhando a confiança dela. Ela percebeu que não tínhamos uma atitude política, nem estávamos tentando tirar proveito da comunidade. Hoje ela é uma grande aliada, tudo o que é feito lá ela gosta de conversar com a gente”, relata Amanda, que já recebeu a diretora algumas vezes na sede da Associação e com ela traça um caminho de amizade.
“Com a nossa presença na escola, que tem dois mil alunos, a gente conseguiu em um ano zerar todo tipo de problema que a gente encontrou por lá”, comemora Cleuza. Segunda ela, essa transformação positiva só foi possível por se tratar de uma ação conjunta, um trabalho em rede entre os amigos da Associação, os universitários de CL guiados por seu amigo Alexandre Ferrari, os universitários do Movimento Educar para Vida e o poder público.
A NECESSIDADE DE UM OLHAR. Sobre o método utilizado para esta intervenção, Cleuza cita padre Julián Carrón: “O Carrón fala que o Movimento de Comunhão e Libertação não tem obra, o Movimento educa adultos para fazer uma obra e tudo o que nós fizemos juntos, dentro da escola foi com o método do Movimento. Foi partindo da realidade, partindo do olhar para aqueles meninos. É olhar de frente para o problema”.
Cleuza menciona ainda o fato de não terem envolvido outros profissionais, como psicólogos ou policiais, como alguns pais sugeriram. O que fizeram foi reunir os pais e o corpo docente para juntos olhar para os meninos, para suas necessidades. “Nós não temos bandidos dentro da escola, nós temos crianças, que têm um sonho, que têm um coração.”
E foi este olhar que, ao longo deste percurso, carregou em si outros olhares e despertou o interesse de quem estava, de alguma forma, envolvido com a situação. Como por exemplo, o Secretário de Educação do Estado, que pediu à Cleuza e à Amanda que voltem outras vezes para encontrá-lo para falarem de religião. Ou então, a nova diretora da escola que pergunta à Cleuza como pode ser sua amiga. Ou ainda, a dirigente regional de ensino, que se aprofunda em uma amizade com Amanda, a ponto de compartilhar a própria vida e os desafios de seu cargo, em meio a uma estrutura de ensino carente e deficitária.
A experiência transformadora nesta escola já está ultrapassando os limites da comunidade do Sol Nascente e outras unidades de ensino solicitam a ajuda de Cleuza e seus amigos. “Eu não tenho uma receita de bolo para fazer uma escola dar certo, o que precisa é ter um olhar e se mover, porque quem se comove se move”, indica Cleuza. “É o caminho feito por Dom Giussani, essa é a receita, é o caminho de uma companhia, é o caminho de uma amizade. Só assim a gente pode transformar alguma coisa”, complementa Amanda.
Cleuza então finaliza: “Eu não fui atrás dessa história, ela chegou até mim através de um grupo de mães que estavam desesperadas e eu fui ver o por quê. E levei um monte de amigos junto comigo e juntos nós nos comovemos e nos movemos. Eu fiquei indignada com aquilo e foi aí que a gente conseguiu fazer tudo isso”.
Apesar de serem uma presença constante na escola e participarem ativamente de reuniões e atividades, os membros da Associação não têm um papel de fiscalização. Quem supervisiona a escola é a direção com a contribuição dos pais e esta responsabilização também foi uma conquista. “Nós fizemos uma ação que deu certo, agora eu quero estar junto com essas pessoas numa amizade”, conclui Cleuza.
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