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Passos N.147, Abril 2013

RELEITURA - Hannah Arendt

A minha viagem pelo mal

por Alessandra Stoppa

A sua expressão “banalidade do mal” é uma das mais usadas (e abusadas) diante das notícias de todos os dias. Mas o queria dizer verdadeiramente a filósofa alemã? Exatamente cinquenta anos depois dos seus artigos sobre o processo de Adolf Eichmann, redescobrimos o que ela viu naquele homem, e na nossa consciência

Um rapazinho radiante, de modos corretos, que mata os pais. “É a banalidade do mal”, diz-se. As discussões no trânsito, um aborrecimento por causa de um táxi ou um olhar atravessado, e outras pequenas coisas que acabam em morte. “É a banalidade do mal”. É o mesmo nome que se dá aos massacres quotidianos que habitualmente passam debaixo dos nossos olhos, ou ao escândalo de ver aflorar um gesto qualquer, que nos é familiar, em quem foi capaz de alguma coisa atroz. Para nos afastar rápido desse precipício afirmamos: “É a banalidade do mal”, e está tudo dito.
Mas tudo o quê?
Ainda hoje, exatamente cinquenta anos depois da formulação desta expressão com que Hannah Arendt tentou definir aquilo que viu nas 114 audiências do processo de Jerusalém, que levaram à condenação do criminoso nazista Adolf Eichmann, é uma frase recorrente nos jornais, nos comentários aos temas da atualidade. Expressão usada e abusada. Na maior parte das vezes se torna o “karma” que nos convence daquilo que não queríamos: aquele mal que nos assusta nos diz respeito. E há nisto algo que se aproxima do que Arendt viu naquele homem de meia-idade, magro, com uma calvície incipiente, “encerrado na gaiola de vidro” onde estará durante todo o processo “com o pescoço fino curvado sobre o banco”. Mas para ela, não é a normalidade de Eichmann que é banal. Para entender o que ela queria dizer, basta reler a série de artigos que a filósofa alemã, aluna de Heidegger e Jaspers, escreveu como enviada a Jerusalém para o semanário The New Yorker, e que foram publicados entre fevereiro e março de 1963. A sua definição de mal é mais profunda do que a forma como é usada. Mais profunda, porque se interroga sobre a profundidade do mal. Sem encontrá-la.
Eichmann nasce na cidade austríaca de Solingen, em 1906. No mesmo ano que Arendt. Enquanto ela, judia-alemã, emigra para a França e depois para os Estados Unidos para escapar à perseguição, ele acaba marchando sob as bandeiras do Terceiro Reich. Aos 26 anos, perde o lugar numa companhia petrolífera e alista-se: pouco tempo depois, “aborrecido com o serviço militar”, e por sugestão de um conhecido, pede para ingressar no exército nazista (SS). No processo ele dirá: “Fui engolido pelo partido sem ter tempo de decidir. Foi uma coisa muito rápida e imprevista!”. Será o responsável pela seção para “os assuntos relativos aos judeus” do serviço central para a segurança do regime nazista. Terá um papel chave: gerenciar todas as transferências europeias para os campos de concentração e extermínio. No dia 11 de maio de 1960, num subúrbio de Buenos Aires onde tinha construído uma segunda vida depois da guerra, será raptado pelo Mossad (o serviço secreto do Governo de Israel), para ser julgado pelo Tribunal distrital daquele país.

O ATALHO. O rapto é também o início do filme de Margarethe von Trotta, que saiu recentemente na Alemanha e que é dedicado à experiência de Arendt naqueles quatro meses de processo diante de um réu que a choca, porque “tudo isto contradiz as nossas teorias do mal”. Acima de tudo, a sua teoria, aquela do “mal radical”, introduzida com As origens do totalitarismo: com o nazismo, teria aparecido na história um mal “absoluto”, nunca antes visto e um fim em si mesmo. Ao passo que as ações de Eichmann eram, sim, monstruosas, mas ele não era “nem demoníaco, nem monstruoso”. Não era paranoico ou doente mental. Uma meia-dúzia de diagnósticos psiquiátricos confirmava isto. “Não era um Iago, nem um Macbeth”, observa Arendt. Era uma pessoa comum, sem intenção de fazer o mal. E, ao mesmo tempo, conhecia as consequências das suas ações.
É devido a este abismo – o problema da consciência – que o Tribunal procurará o tempo todo um atalho: convencer-se de que aquele homem estava mentindo.
Mas Eichmann dizia a verdade. Não odiava os judeus, aliás, foi o primeiro a ficar descontente com a “solução final”. Porém, foi um dos principais executores do Holocausto, e o olhou de frente. Fez transportar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte. “Com grande zelo e precisão cronométrica”. E por isso foi enforcado, no dia 31 de maio de 1962, condenado por “crimes contra o povo judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra”. Mas sem que o Tribunal, nem o público, no fundo, tivessem acreditado nele. Tivessem acreditado que o seu mal não se enraizava nem no fanatismo, nem na inconsciência. Acreditar nele significava enfrentar um dilema que parecia não ter solução. É aqui que Arendt se distancia: decide olhar para aquele dilema.
É fácil que a banalidade seja entendida como a ação pequena de um homem, de um mero burocrata numa gigantesca engrenagem infernal. Claro, a experiência humana de Eichmann também foi isso, ele próprio fez disso a sua defesa, disse e repetiu que tinha obedecido a ordens. Melhor, a “ações de Estado”. Mas nem sequer é esta a razão pela qual Arendt escolhe a definição do mal. É qualquer coisa que ela vê na capacidade daquele homem de se exaltar por coisas vazias, falsas. Não tinha sido doutrinado: a adesão ao partido foi feita sem convicção, não conhecia o seu programa, nunca tinha lido o Mein Kampf. Do dia 8 de maio de 1945, data oficial da derrota da Alemanha, dirá: “Sentia que a vida seria difícil para mim sem um chefe; já não iria receber diretivas de ninguém, já não poderia consultar regulamentos. Em resumo, esperava-me uma vida que nunca tinha experimentado”.
Porque nunca tinha experimentado viver. O juiz instrutor interrogou-o por mais de um mês, gravou 76 fitas magnéticas nas quais Eichmann conta a sua vida. Estão cheias de frase feitas. Com uma “quase total incapacidade de ver as coisas do ponto de vista dos outros”, assinala Arendt. Eichmann encontra consolo na recordação de “pequenos triunfos”, inspirados pela boa sociedade ou pelo sucesso, tem “a mania de dizer coisas grandiosas”, mas que não deixam de ser conceitos vazios. Como as palavras tolas que pronunciou no momento antes de morrer. Disse ser um Gottgläubiger, o termo nazista para quem recusa a religião cristã e a vida eterna, e depois acrescentou: “Em breve, vamos nos rever. Este é o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria. Não as esquecerei”. Diante destas palavras, Arendt vê a recapitulação de tudo o que tinha pressentido durante o longo processo: “A lição da assustadora, indizível e inimaginável banalidade do mal”.
O mal daquele homem era banal como a sua memória, uma mente que transbordava conceitos de pouco interesse, enquanto tinha dificuldade em recordar os fatos. O pensamento, que é feito para procurar as raízes das coisas, quando se ocupa com o mal fica frustrado, “porque não encontra nada. O mal é banal porque não tem raízes”, escreve Arendt diante das polêmicas que o relato do processo lhe trouxe. A banalidade é, portanto, esta “ausência de pensamento”. Não que Eichmann fosse estúpido (“não tinha ideias, uma coisa muito diferente da estupidez”). O mal de que ela fala é o “afastamento da realidade”. Acima de tudo, de si próprio. É um vazio da razão devido a uma falta de relação com os fatos. Eichmann tinha-os às sua frente, via como se morria em Minsk, em Treblinka, em Lublino, via tão bem a ponto de já não conseguir olhar: “Era demais. Eu estava acabado. Queria ter desaparecido”. Mas não bastava.
É isto que levará Arendt a dizer: “Mudei de ideia. Hoje, o que me parece é que o mal não é nunca ‘radical’, mas apenas extremo”. Extremo e superficial. Como a mentira sistemática em que viviam todos à volta dele: a realidade tinha sido esvaziada das suas conotações mais evidentes, com palavras inofensivas: as modalidades de extermínio eram “a caridade de uma morte piedosa”, “questões médicas”. De resto, em outra parte, definirá assim a ideologia: “Não é uma ingênua aceitação do visível, mas a sua inteligente destituição”.
E se a realidade se torna insignificante para o pensamento, o mal deixa de ter limites de gravidade, porque não está ligado a nada. “O nada se torna um substituto global da realidade, pois o nada traz alívio”, escreverá em A vida da mente: “Alívio, bem entendido, sem realidade. Meramente psicológico, um sedativo para a ansiedade e para o medo”. É o alívio que Eichmann dizia experimentar. Sem nunca conhecer e ajuizar, e perdendo o nível humano do viver. Era como se a sua vida nunca tivesse alcançado a individualidade. Nunca tinha sido verdadeiramente sua.
“A insistência de Arendt sobre os fatos é muito desvalorizada. O que é mais agudo nela é precisamente o desejo de compreender a realidade. Foi a sua preocupação desde pequena”, diz-nos Giorgio Torresetti, professor de Filosofia do direito na universidade de Macerata: “A banalidade é esta desabituação do homem do pensamento como incapacidade de se deixar interrogar pelos fatos. O pensamento fecha-se em si mesmo, não ouve a realidade. O homem deixa de se ouvir, em primeiro lugar, a si mesmo, como diálogo interior”. Como consciência.

TUDO HOJE SERIA DIFERENTE.Uma das coisas que mais impressiona Arendt é precisamente a fraca “resistência” ao nazismo, a raridade de homens conscientes. Isso sobressai muitas vezes no seu relato. Em algumas recordações de Eichmann (“Ninguém pode reprovar-me pela forma como eu cumpria o meu dever”), ou no depoimento de um sobrevivente, que conta como o sargento alemão Anton Schmidt o ajudou a salvar-se: “Um silêncio tumular caiu na sala do tribunal. Naqueles dois minutos, que foram como que um inesperado raio de luz no meio de umas trevas densas, impenetráveis, um pensamento surgiu em todas as mentes, claro, irrefutável, indiscutível: como tudo hoje seria diferente se tivesse havido mais episódios daqueles”. Em outra passagem, diz: “O regime hitleriano procurava criar vazios de esquecimento onde desaparecessem todas as diferenças entre o bem e o mal. Mas os vazios de esquecimento não existem. Nenhuma coisa humana pode ser eliminada. Debaixo do terror, a maioria submete-se, mas alguns não”.
Arendt tem esperança nestas exceções, renascimentos de consciência. E no fato de que a realidade não pode ser reduzida ao nada. A banalidade do mal revela a profundidade do bem. Assim, escreverá numa carta em julho de 63: “Só o bem é radical”.


ENTRE CRÕNICA E HISTÓRIA
Em 1961, Hannah Arendt (1906-1975) acompanha o julgamento de Adolf Eichmann no processo de Jerusalém como correspondente do The New Yorker. Em 1963, o resultado que saiu no semanário foi publicado como livro, de forma mais ampla. Em 1964 Arendt faz uma edição revisada e corrigida que oferece para nova impressão. Acrescenta novo material visto à luz do Holocausto e um Apêndice no qual enfrenta questões polêmicas suscitadas pela sua obra (Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1999).


 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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