O encontro com Cristo – assim o descreveu padre Julián Carrón nas palestras de Rímini – é um acontecimento que ainda é capaz de preencher toda a vida? Ou apenas uma lembrança, uma entre tantas outras? Três amigos, do início do Movimento, contam como, depois de tantos anos, continua uma paixão que não desapareceu. Mas que age e continua a movê-los, como antes
És perseverante, pois sofreste por causa do meu nome, mas não esmoreceste. Devo reprovar-te, contudo, por teres abandonado teu primeiro amor. São as palavras do Apocalipse, que padre Julián Carrón citou nos Exercícios Espirituais da Fraternidade: “Onde está o nosso primeiro amor?”, perguntava na sexta-feira à noite. Mas o que significa realmente “esperar tudo” do fascínio desta paixão, do “fato de Cristo”? Durante as palestras de Rímini, foi documentado que esse primeiro amor é a grande Presença, preferida sobre qualquer coisa que, para Zaqueu, os Apóstolos, Madalena, valeu mais do que a própria vida. Um acontecimento que foi o sentido e o prêmio de seus dias. Exatamente como reacontece entre nós, hoje, dois mil anos depois. Como mostram as histórias a seguir. Uma existência que, passo a passo, coincide com esse relacionamento.
“SABE AONDE VAI E CAMINHA SEGURA”
Aos treze anos Susanna Pagani quase não sabe quem é Jesus e o que é a Igreja. Acabou de chegar em Milão, vinda da Argentina, com os pais. É matriculada na escola das Irmãs Ursolinas, onde conhece Irmã Teresa. Aquele encontro, acontecido quarenta anos atrás, ficou impresso em seu coração. “Transbordava de alegria, fé e energia. Descobri Jesus. Foi a primeira vez que Ele me procurou”. Susanna tem talento para o desenho e paixão pela moda e, quando acabou o ensino médio, se inscreveu no Instituto de Moda Marangoni. Ao mesmo tempo, procura um lugar onde possa viver essa experiência tão fascinante. Até que um dia, uma amiga a leva para conhecer o pessoal de CL. Começa a frequentar as reuniões. Aos dezoito anos, começa a trabalhar em uma editora: é eficiente, simpática, tem muitos amigos, alguém se apaixona por ela. Tudo normal, mas “eu procurava outra coisa. Intuía que o Senhor me queria. Não foi fácil, lutei até o fim tentando dizer-lhe não. Tinha o meu trabalho, a paixão pela moda. Que caminho seguir?”. Então, era esse o problema: o caminho.
Conhece a Ordem das Pequenas Irmãs de Charles de Foucauld. Em Assis, começa a verificação. Tudo parece no lugar. Está pronta para entrar para o convento. Até que uma amiga lhe diz: “Susy, o ponto não é a forma, mas a virgindade”. Tem um sobressalto. Não devia buscar uma forma adequada que me correspondesse, mas desejar Jesus. Voltar àquele encontro e amá-Lo. Ele faria tudo”.
De volta a Milão, liga para Dom Giussani. Começam a se encontrar. Ele nunca diz a ela o que escolher, mas para olhar o que seu coração procura, levar em consideração, por exemplo, que ela ama muito seu trabalho. “Foi uma libertação. Jesus queria a Susy com seu talento, com sua paixão”. Aos 24 anos, entra para os Memores Domini, na casa de Gudo Gambaredo. O primeiro ano é trágico. De fora, parecia uma experiência fascinante, porém “quando você está dentro, percebe o seu limite e o dos outros”. A isto, soma-se as fortes dores de estômago que uma semana por mês a deixam de cama. “Depois de vários exames, descobri que eram sintomas de apendicite. Mas aqueles dias de parada obrigatória foram um dom do Senhor. Comecei a ir a fundo no por que estava ali. Dom Giussani me dizia para rezar a Nossa Senhora, para oferecer pedindo a fé e a afeição por Cristo. Algo se desbloqueou. Jesus tornou-se cada vez mais amigo. Comecei a viver a casa não como uma medida, mas entendendo que cada gesto era para Ele. Tudo tornou-se mais simples”. Naqueles anos, Giussani morava em Gudo, a convivência com ele era muito próxima, fascinante, mas também sem meios-termos. “Algo acaba passando por osmose”.
A vida continua. Cada peça está em seu lugar. Até que um dia, um amigo lhe pede para ajudar uma jovem que está com problemas na família e no trabalho. O relacionamento com ela é intenso, às vezes, dramático. Não há mais dia nem noite. Quando precisa, telefona. Para Susanna, com quase cinquenta anos, é um novo início. Não só isso, o Senhor está pedindo outra coisa a ela. Perto de Gudo, a fazenda Santa Marta estava sendo reestruturada para funcionamento de uma obra de caridade e acolhida. Pede a Dom Giussani para ela também ir morar naquela casa dos Memores.
Em 2001, depois de 29 anos em Gudo, se muda. De repente, das dezoito com as quais estava acostumada a viver, passa a conviver com quatro pessoas que acabou de conhecer. “O Senhor estava me tomando novamente pela mão. Dizia: olhe para mim. Foram anos de conhecimento, de silêncio, de dedicação cada vez mais intensa a Jesus”. Até que em uma noite de 2005, nos Exercícios, padre Carrón lhe dasafia: “Maria Grazie vai ajudar Erasmo e Cente com os jovens que acolhem em sua casa na Associação Cometa. Quem quer ir com ela?”. Susanna levanta a mão. Erasmo é seu sócio no trabalho, isso significa não viajar mais 120 km por dia. Mas não é isso que faz com que ela diga sim. “Agora que podia me aposentar, o Senhor me pedia para começar algo novo. Pedia-me para acolhê-lo em uma dimensão nova, mas é a mesma experiência que vivi com Giussani em Gudo. Aquele Amor que aos treze anos me fascinou, e que me abraçou novamente através dos rostos e dos fatos acontecidos é agora ainda mais essencial. Porque hoje não há mais ‘mas’, nem ‘se’, ou pensamentos confusos. Por isso, sou mais feliz agora e por isso me dizem: ‘Nunca vi você assim’”.
“HOJE É MAIS VIVO E DESPOJADO”
Era 1996, logo depois da Páscoa. Saiu do escritório de Dom Giussani, na rua Bagutta, e foi comprar um batom. Ela, que nunca tinha se maquiado. As meninas, quando finalmente sabem que são desejáveis, fazem isso. Maria Rita Casalboni, hoje com 67 anos, conheceu o Movimento cinquenta anos atrás. Há quarenta é Memor Domini. Hoje, se perguntamos quando lhe aconteceu o “primeiro amor”, ela volta àquele dia. Frequentava o primeiro ano da universidade, tinha conhecido o Movimento em sua paróquia, três anos antes. Depois que terminou o ensino médio pediram-lhe para ficar como responsável do grupo de colegiais da comunidade do Liceu Carducci. Também acompanhava as comunidades do Movimento que nasceram em onze paróquias de Milão. Dava aulas para adultos em uma escola fundamental noturna. Nesse mesmo período, o sonho de um relacionamento com um rapaz se desmanchou como neve ao sol. No primeiro período de provas do primeiro ano na Universidade Católica, não tinha feito nenhum exame.
Assim, naquele dia, viu-se diante de Dom Giussani. “Senhorita, continue na paróquia. É um ambiente mais são”, lhe disse, já pressentindo que a tempestade de 1968 abalaria o Movimento. Mas, dos conselhos práticos, a conversa toma outro rumo: “Não me lembro se foi a resposta a uma pergunta dele, mas, a um certo ponto, lhe disse que minha liberdade era um pássaro que procurava um lugar onde pousar...”. Ele respondeu com uma pergunta: “Você teria algum problema com a ideia de dedicar-se a Deus?”. “Percebi que um horizonte se abria diante de mim. Respondi que não, que não teria problema. E aquele não tornou-se o meu primeiro sim”.
Andando nas calçadas da rua Bagutta, sentiu-se outra: “Pela primeira vez, tinha a percepção de que o meu rosto, que até agora sentia separado de mim, tinha se tornado um só comigo. Percebi a unidade do meu eu. Fui até ele com problemas cotidianos e ele me levou até o fundo das coisas. E era ali que meu coração desejava ir”.
Depois de 44 anos de ensino, muitos dos quais passados no Liceu Parini, Maria Rita se aposentou e trabalha para o arquivo dos Memores Domini. “Nos Exercícios, fiquei comovida quando padre Carrón falou sobre o que havíamos feito com o ‘primeiro amor’. Ele disse: ‘Digo a mim e, portanto, digo a vocês’. É alguém que vive em si o que se tornou seu de Dom Giussani. Depois, disse a mim mesma: é verdade, não se pode viver sem voltar ao início”. Por quê? “O ‘sim’ de agora é como o ‘sim’ do início, porque nascemos a partir dele, antes não existimos. Como o ‘sim’ do Batismo”. Nada mudou daquele “sim”? “Hoje é mais vivo, mais despojado”. Mais despojado do quê? “A história me levou a não ter mais as responsabilidades no Movimento que tinha no início. Vivi isto como um sacrifício. Depois, houve a separação de Dom Giussani. É um despojamento salutar, senão o ‘sim’ torna-se cheio de crostas”. E que forma tem este “sim”? “É uma descoberta dos últimos tempos. Dizer novamente ‘sim’ significa fazer as coisas diante dos anjos de Deus. Eu trabalho em um porão. Fico bastante sozinha. Mas o ‘primeiro amor’ reacontece quando penso nos amigos doentes e nas coisas que este Papa diz. 'É isso o que realmente preciso. Muitas vezes, são verdadeiros tapas na cara. Como a alusão aos cristãos da sala de visitas”. Como Cristo preenche a vida? “Quem pode me ajudar a encontrar a resposta aos problemas cotidianos, com as dores no corpo que começam, com as dificuldades nos relacionamentos... senão Cristo? Acho que ainda preciso de muito tempo para entender o que isso significa. Não tenho dúvidas de que é Ele quem me preenche. O que não quer dizer que afetivamente eu não tenha me ligado muito a certos amigos ou a certos alunos meus: amei muito. Mas não creio que seja um amor que substitua o de Cristo. É uma flexão do amor a Ele. Depois, eu também cometo muitos erros, gosto de comprar coisas bonitas... Meu confessor diz que se me ajudam a amar mais Jesus... Eu espero que sim. Mas, sabe o que penso? Que Deus se encarrega de tirar de nós o que é inútil. O que não é tirado, é para Ele.
“PERDE MUITO TEMPO...”
O primeiro amor, para ele, desabrochou aos poucos, de maneira incomum. “Eu era criança e via minha mãe rezar na igreja: sozinha, em silêncio. Só era possível ver o movimento de seus lábios. Eu olhava, e entendia que do outro lado devia haver alguém. Foi a primeira impressão da presença de Cristo na minha vida”. Se perguntarmos a padre Pigi Bernareggi, 75 anos, há 49 em missão no Brasil, quando se apaixonou por Jesus, a resposta começa aí, “da impressão de realidade que tinha olhando minha mãe”. E dos dois primeiros anos no Berchet, “onde encontrei um ambiente em que tudo mostrava o contrário daquela Presença, mas onde uma coisa sempre continuou evidente para mim: que Ele existe. Não conseguiam arranhar essa certeza”. Ele fazia parte daquela turma onde numa manhã de 1954 “Dom Giussani caiu, com a sua força. O que ele dizia coincidia com essa evidência primária que eu tinha”. Alguns companheiros começaram a segui-lo. Ele demorou um pouco para ceder. “Mas era evidente que tinha certeza sobre Cristo, que era dominado por Sua presença. Então, se o ‘primeiro amor’ do qual se fala nos Exercícios é isso, é o contrário de sentimento: trata-se exatamente do fundamento do ser de uma pessoa”.
Um fundamento do qual, pouco a pouco, padre Pigi descobriu o rosto, os “traços inconfundíveis”, passando sempre pela mesma estrada: fatos, episódios, um acontecimento. Como aquele que, depois, o fez dizer “sim” a Dom Giussani: “Foi depois do primeiro encontro que participei, na sede do Movimento, à rua Statuto. Lemos a parábola do Semeador. Giussani, no fim, fez uma síntese: o fator que diferencia os terrenos onde a semente cai é a lealdade com a experiência. Eu disse a mim mesmo: ‘É isso, precisamos ser leais com aquilo que vemos. É preciso dizer sim’. Sempre me lembrarei dessa reunião”.
E de uma outra, onde Dom Giussani falou sobre a Ascensão. “Era 1962 ou 63. Ele disse: subiu ao Céu, mas qual céu? Este, onde voam a Sputinik e Jurij Gagarin? Não: o Céu é onde está o Pai. E onde está o Pai? No profundo da sua pessoa. Cristo, com Seu corpo glorioso – com seu corpo humano, físico, real –, instalou-se no fundo do nosso ser. Entendi que o mistério da Ascensão é a fotografia daquilo que acontece na vida das pessoas. Cristo, naquele momento, tomou posse de todas as pessoas de todas as épocas, tanto do passado quanto do futuro, e até daquelas que sequer imaginam que Jesus existe”. Por isso, encontrá-lo “é como se apaixonar: você se apaixona sem saber nada sobre a pessoa”, mas encontra uma correspondência objetiva, inexorável: “Depois, aos poucos, a descobre, para que você possa reconhecer aquilo que já existe. Quando fazíamos os encontros em Varigotti, sempre recebíamos um livreto com uma citação. Uma delas era de Laurentius Eremita: ‘Foi-me dito: tudo deve ser recebido e cuidado no silêncio. Naquele momento, pensei que provavelmente passaria o resto da vida dando-me conta do que tinha me acontecido. E sua lembrança me enche de silêncio’. Então, a minha vida foi isso”.
Ele estava entre os primeiros do Movimento que partiram em missão para o Brasil, em 1964. Quatro anos depois, foi também o único que ficou, resistindo à quebra de 1968: sob o impacto da contestação, da Teologia da Libertação, dos protestos contra o Governo Militar, o Movimento – recém-nascido no Brasil – desmoronou, literalmente. Todos foram embora. Por que ele, não? “Acho que exatamente por causa disso que estamos falando. A minha experiência religiosa era bastante sedimentada para conseguir se manter mesmo debaixo daquela pressão assustadora”. E para permitir-lhe, depois, viver como vive há meio século, em Belo Horizonte: coadjutor, pároco e, ainda, o trabalho nas favelas: “onde há uma humanidade inacreditável e uma grande experiência de fé: eles participam da Paixão de Cristo”.
E seu relacionamento com Ele mudou durante esses anos? Pode dizer que está mais afeiçoado a Jesus do que há sessenta anos? “Em relação às formas, não. Até porque Ele permanece Ele: o Absoluto não cresce e não diminui. Humanamente falando, nós crescemos. Mas divinamente falando, não. E como a Encarnação é o Divino no humano, não é uma contradição: é um mistério. Como a mudança da nossa humanidade pode conviver com a impassibilidade de Cristo? Isso é indescritível, não? Mas, como coração, como ímpeto, sim. A afeição cresceu”. Ainda é uma paixão? “Sim. Nos termos que dizíamos agora, sim. Com uma profundidade maior. Mas, é como aquele hino, você se lembra?” Procura as palavras, encontra a melodia e canta, com voz baixa e jovem: “Perde muito tempo quem não te ama, doce amor, Jesus...”. E canta toda a estrofe, até “quem não te ouviu não saberia falar...”. “É isso, quem poderia descrever o amor de Cristo?” E quem pode nos separar d’Ele, apaixonado por nós?
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