Em Marj el Kok, uma extensão de pedras e terra vermelha ao sul do Líbano, existem duzentas tendas de refugiados. Não têm quase nada para viver. Em um ano, são mais de um milhão as pessoas em fuga da Síria. Estivemos com elas para contar as histórias de um mundo que não é feito de números, mas de carne. E pede uma vida normal
Dez de Abril. “Querem mil dólares para o meu filho nascer no hospital. E onde é que eu vou conseguir?”. Ao lado de Mohammed está Douaa, a sua mulher, grávida. Nunca sorri, diz apenas: “Se der à luz aqui, morro”. Na sua barraca, Mohammed vive com três mulheres e treze filhos. As crianças saltam excitadas ao verem uma máquina fotográfica. Roberto Masi está ali para isso, no sul do Líbano, no campo de Marj el Kok: para ver e fazer todos verem os rostos daquelas pessoas fque fugiram da guerra civil síria, instantâneos que contam o dia a dia de uma vida que, mesmo nos gestos mais banais como lavar-se e comer, se tornou um drama. Um outro mundo, que para nós dificilmente tem carne, pernas, olhos, mas apenas números das notícias dos jornais.
Chega-se a Marj el Kok depois de percorrer uma faixa de terra entre as árvores, abandonando a estrada principal que, da aldeia de Marjayoun, vai para Hasbaya. Seis meses atrás, naquela extensão de terra vermelha, cheia de pedras – e, quando chove, de lama – se contava cinco ou seis barracas de trabalhadores sazonais. Agora são 200 tendas: os tetos e as paredes não são mais do que placas e telas publicitárias presas umas às outras de qualquer maneira e apoiadas em suportes de madeira. No chão um pouco de cimento e, no melhor dos casos, alguns tapetes e alguns colchões. Entre uma tenda e outra, panos estendidos, lavados não se sabe como, além de alguns carros e outros veículos.
Os números desta guerra são impressionantes: no espaço de um ano, 50 mil famílias sírias chegaram à fronteira com o Líbano, a pé ou com transportes improvisados. Até de táxi. Mais de 50% deste êxodo é formado por mulheres e crianças, obrigadas a fugir sozinhas dos bombardeamentos de Homs, Idlib, Aleppo. Deixaram tudo na Síria: casa, trabalho, e em alguns casos até parte da família. E da fronteira libanesa, uns dois dias mais tarde, muitas delas chegaram à planície de Marajayoun, no sul do país, uma região de terras cultivadas onde se pode encontrar trabalho.
“Percebe-se, pelo seu olhar, que devem ter visto coisas terríveis na pátria”, diz Roberto. Como Zaynab e Zahraa, mãe e filha. Moravam na periferia de Homs. “Contaram que numa noite os rebeldes anti-Assad entraram na casa delas. Elas os viram chegar e se esconderam no sótão. Ficaram presas durante três dias. Depois os guerrilheiros foram embora e elas decidiram fugir”.
Em abril, Saraqeb, a sudoeste de Aleppo, foi alvo de um pesado bombardeio da artilharia das forças do regime de Damasco. A família de Sultan (duas mulheres e oito filhos, todos com menos de oito anos) tinha fugido para a casa de familiares. Quando Sultan regressou, a casa tinha sido arrasada, tal como a dos vizinhos que, pelo contrário, estavam todos em casa naquele dia.
O Governo libanês não autoriza a construção de campos de refugiados oficiais, mas na realidade está demonstrando uma grande disponibilidade. Os refugiados, no entanto, contando também os que não estão registrados no ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), começam a ser muitos: “Fala-se de um milhão de entradas em um país de cinco milhões de habitantes”, conta Marco Perini, responsável dos projetos da Fundação Avsi para o Líbano: “É como se chegassem doze milhões de refugiados na Itália. E se a guerra chegar a Damasco, é previsto um novo afluxo de refugiados de um milhão de pessoas em pouco tempo. Já existem aldeias, na West Bekaa, onde o número de refugiados alcançou o número de habitantes”.
À procura de latas. Os sírios são, desde sempre, a mão de obra sazonal em Marjayoun. Mas com esta nova afluência é difícil encontrar trabalho nos campos e ganhar 15 dólares por dia. Em Marj el Kok, há semanas em que se consegue comer todos os dias e outras nas quais se pula frequentemente as refeições. As crianças de seis e sete anos ajudam no campo ou são enviadas para as aldeias e as estradas para procurar latas ou cobre para vender. Uma espécie de colheita diferenciada. Das trezentas crianças abaixo dos dezoito anos, cerca de quarenta vão à escola em Marjayoun. Conta Perini: “O Governo libanês, com discrição e caridade, acolheu-as na sua estrutura pública, e um ônibus alugado por nós, acompanha-lhes na ida e na volta. Claro que há muitas dificuldades: no Líbano ensina-se em francês, na Síria em árabe”. Além disso, de vez em quando chega um ônibus ao campo, e descem voluntários da Avsi e da Unicef carregados de jogos e de material didático. Improvisa-se uma festa e, por algumas horas, quase que podem se esquecer onde estão. “Na semana passada, Moustafa, de oito anos, dois olhos enormes e um sorriso largo, quando viu o ônibus chegar foi correndo para ele junto com os outros companheiros”, conta Perini: “Mas o seu pai, Mohammad, gritou para continuar a apanhar latas. Tentei lhe explicar que o menino precisa brincar, cantar, ser criança. ‘Pode passar sem isso’, respondeu-me o pai”. O desafio aqui tem também estes contornos.
Hassan e Ibrahim. Diante de uma máquina fotográfica, as crianças querem ser fotografadas, saltam para cima de nós para serem registradas. “Como as nossas”, observa Masi. De trás de uma tenda, surgem duas figuras femininas. Usam véu e dizem para não as fotografar porque não são casadas. Cobrem o rosto com a mão enquanto passam, mas um olhar furtivo trai a sua idade: têm doze anos. “Pergunto-me se alguém já terá decidido o futuro delas”.
Há também quem, à dificuldade objetiva de viver num campo, tenha que acrescentar uma deficiência, uma doença. Mariam tem 74 anos, é obesa. Não consegue mexer-se. O Hassan é uma criança de cinco anos. É gravemente deficiente. “Ontem fomos a Beirute comprar duas cadeiras de rodas”, conta Perini. “Não sei bem como vão conseguir andar pelo campo, entre a lama, as poças e a terra, mas sempre é melhor do que estar debaixo de uma tenda com 30 graus lá fora”.
Ibrahim e o seu irmão, duas crianças de quatro e dez anos, são cegos e estão quase completamente paralisados. Chegaram aqui junto com os seus dezesseis irmãos. Precisam de tudo, de serem lavados, alimentados, deslocados como é possível. Duas mulheres estão na tenda trocando-lhes as fraldas. “A tenda fica aberta durante o dia, pelo menos para perceberem que não é noite. Todos no campo, especialmente as mulheres idosas, se disponibilizaram para dar uma ajuda, mas eles precisavam de muitas outras coisas, incluindo um diagnóstico exato e uma terapia”. Chegaram a levá-los ao hospital, mas o custo é de 100 dólares por dia por pessoa e os pais tiveram que renunciar às consultas para os dois. “Há as ajudas do ACNUR, às quais os refugiados podem ter acesso, mas são precisos pelo menos seis meses para serem registrados”, diz Marco: “Por outro lado, para se inscreverem e gozarem dos benefícios (pagam 70% do parto, e se houver uma deficiência, fornecem equipamentos) é preciso ir a Tiro, 88 km ao sul de Beirute. E não basta que vá o chefe de família, têm que ir todos. A família de Mariam, a senhora de idade, por exemplo, alugou um carro por 250 dólares. Mas foi um investimento e nem todos podem permiti-lo”.
No fundo da tenda, uma menina de uns doze anos está de pé com o irmão menor entre as pernas: “Piolhos”, declara Marco. “Até algumas semanas atrás a emergência era o frio e distribuíamos cobertores. Agora, que em breve chegaremos aos 40 graus, pensamos no fornecimento de água, como transportar cisternas. Mas, com as latrinas comuns e a céu aberto, o problema será como evitar que a água se infecte...”.
Um copo de chá. Uma vez por semana, Marco reúne-se no campo com uma delegação de dez pessoas, oito homens e duas mulheres. Fazem o ponto da situação e entendem quais são as urgências. “Da última vez, tivemos uma discussão de quinze minutos sobre o chá: segundo eles, o chá que tínhamos distribuído não era de boa qualidade e não tinha açúcar suficiente. Na hora pensei: a pessoa chega aqui, está desesperada, perdeu tudo e vem me dizer que o chá que eu dei não estava bom?! Depois entendi: para uma pessoa que vive numa situação de necessidade extrema, um copo de chá, essencial na tradição árabe, pode ser um momento de vida ‘normal’. Um copo de chá que é também uma das duas refeições do dia, se não a única, é importante que seja bom e bem açucarado”.
Uma vida normal. Visto daqui, parece muito distante. Como a paz. Em terras sírias, a violência continua e o balanço do conflito atingiu os 80 mil mortos. As diplomacias internacionais têm se reunido, mas encontram dificuldades em pôr em prática medidas eficazes. Os refugiados adeptos de Assad ou dos rebeldes, têm uma ideia clara: querem voltar para casa, ainda que não saibam o que vão encontrar lá.
Entretanto, aqui, no dia 7 de maio nasceu Ahmed, o 14º filho de Mohammed. Nasceu no hospital. “Debaixo de uma boa estrela”, disse o pai, sorrindo.
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