Vaiado pela crítica em Veneza, o último filme de TERRENCE MALICK é uma obra-prima de imagens e palavras. Poucas, poderosas, que penetram o amor até à raiz. A beleza inalcançável, a sede de absoluto… Mas sem que isso baste. Tudo se condensa na luta de um padre com este “Amor que nos ama” e que se faz carne
Não há meios-termos com Terrence Malick: atração ou desilusão, aplausos ou vaias. Pode parecer estranho, porque aparentemente a maioria das pessoas sai dos seus filmes com rostos atônitos e perplexos de quem carrega muitas perguntas. Mas também esta abertura é sinal de uma atração verdadeira, daquelas que nos abrem. E que fazem dele um dos diretores que vale sempre a pena ver, sempre. Não apenas porque ama Dostoievski e Heidegger e pode passar vinte anos sem rodar um filme nas barbas de Hollywood.
Acontece o mesmo com To the Wonder, a sua última obra (em português Amor pleno; com Ben Affleck, Olga Kurylenko, Rachel McAdams e Javier Bardem). A concurso em Veneza 2012 (onde foi vaiado pela crítica), chegou às salas de cinema nas férias de julho, um período insólito e escolhido provavelmente com a ideia de que não será um campeão de bilheteria e, portanto, é inútil lançá-lo nas datas “boas”. É uma pena, porque é um daqueles filmes que me fazem arriscar um juízo de peso, ainda que não seja um cinéfilo com pedigree: é uma obra-prima. Pura e simples.
A trama, mais do que escassa, é essencial: Neil e Marina apaixonam-se em Paris, vão viver em Oklahoma (juntamente com Tatiana, a filha dela de dez anos), atravessam as fases de uma história que passa rápido, até o regresso dela a França, quando expira o visto. Neil reata uma relação com Jane, uma velha amiga que queria se casar com ele. Marina reaparece nos Estados Unidos meses depois. Voltam a ficar juntos, se casam, ela o trai.
GÊNESIS. Falta o final, que deixamos que descubram ao assisti-lo, como é de praxe quando se fala de um filme, ainda que o importante, desta vez, não seja seguramente o “como vai acabar”, mas o que acontece. Ou melhor, do que se está falando, através das poucas palavras que são trocadas entre as personagens, aquele diálogo contínuo de cada uma delas com o Mistério e – sobretudo – algumas imagens majestosas e poderosas (céu, mar, luz, natureza), que parecem sempre mostrar-nos o Gênesis.
É um filme sobre o amor, claro. Com todos os contornos que este pode ter nas relações: o surgimento inesperado, a sede de absoluto, a pretensão de nos bastarmos a nós mesmos, a falta, a decadência, as dúvidas, a crise… A urgência do perdão. Tudo, entre outras coisas, visto muito mais pelo lado feminino (que Malick sabe ler com uma sensibilidade fora do comum). E mostrado por aquilo que é: um mistério inalcançável. Como as contínuas danças de Marina. Quanto mais se ama, menos se agarra. Persegues, transbordas, possuis, até podes maltratar. Mas não alcanças verdadeiramente. Não é possível, de tal maneira o outro é outro e de tal maneira é desmesurado aquilo que une. Além disso, torna “dois, um”.
Bastava este olhar para tornar o filme extraordinário. Mas o belo é que Malick não se detém aqui. Quer chegar mais além. À raiz do amor, precisamente. Ao Mistério que o faz e à nossa necessidade de vê-lo e tocá-lo. Chega à Encarnação. Se em A árvore da vida, o último belíssimo filme de dois anos atrás, o sentido do Mistério estava em toda a parte – coincidia com a realidade –, aqui há mais: há necessidade de que seja carne.
Ao lado da vida de Neil e Marina, decorre a do padre Quintana, sacerdote em crise de fé; o ator Javier Bardem conta com o rosto e o corpo (os passos inseguros, as costas curvadas, a expressão desconcertada de quem deve mostrar sentimentos que não tem) a escuridão da qual fala constantemente com Deus: “Por quanto tempo vai se esconder? Deixa-nos te alcançar. Estás em todo o lado e não posso te ver. Estás dentro de mim, à minha volta. Estás em mim, e não tenho experiência de ti. Não mais. Por que não me agarrei àquilo que encontrei? O meu coração está frio, endurecido…”, repete insistentemente dentro de si, enquanto dá a comunhão aos presos ou circula entre os marginalizados das periferias, se afasta daquela senhora que lhe promete “rezarei pelo senhor, para que receba o dom da alegria”, ou não sabe o que responder à drogada que lhe pergunta “e agora, vai abrir a Bíblia e me fazer um sermão?”, e se esconde quando a mesma mulher bate à sua porta. Ele e Cristo. Um diálogo dramático, denso. Verdadeiro.
IMPREGNADA DE MISTÉRIO. No corpo do filme, a crise do padre só se cruza em algumas cenas com a de Marina e Neil. No entanto, tudo se condensa ali, nas suas perguntas e naquele diálogo ininterrupto com Cristo. Todas as perguntas deles: “Como o ódio tomou o lugar do amor e a minha ternura endureceu?” Por que o amor parece “tornar-se nada”, como diz Jane, abandonada por sua vez pelo homem de quem se tinha reaproximado? Tudo, tudo se espelha no percurso do padre Quintana. E só se dissipa quando lhe acontece alguma coisa. Não quando relembra, nas suas homilias, que “o amor não é um sentimento: é um dever. Cristo disse: amai. Quando você pensa que o amor acabou, ele se transforma em algo maior”. Não no discurso, mas quando lhe acontece algo. Uma série de encontros através dos quais o Mistério – aquele Mistério de que a realidade está impregnada (como, e mais ainda, do que o cádmio e o chumbo que Neil procura, na sua profissão, nas terras a recuperar) se torna carne, algo que se pode ver e tocar. Este “amor que nos ama e que não vem de nada à nossa volta”, como diz Marina, torna-se carne, algo para ver e tocar.
Há uma sequência lindíssima de encontros do padre em que isso é tão evidente que ao olhar para eles nos vem à mente o Papa Francisco: “É a carne de Cristo. O problema é a carne de Cristo!”. Malick certamente nem sequer sabia daquele apelo do Papa, quando rodou o filme. Mas é tão objetivo e real que, diante do filme, não podemos deixar de pensar nisso. Impõe-se. É o Mistério a se impor. E somos nós que ficamos cheios dele, que vivemos daquilo e lutamos por aquilo. “Que guerra cruel”, diz a voz de Marina sobre as imagens de um lago encantador: “Há duas mulheres em mim. Uma cheia de amor por Ti. A outra presa à terra”. Pois bem, o nosso eu é isso. Quebrado. Se não fôssemos abraçados inteiramente por um Amor que se revela amando-nos. No filme esta pergunta volta várias vezes, ecoa em tudo, subentendida num gesto, num olhar, num pôr do sol: “O que é este amor que nos ama?”.
AONDE NOS LEVA. A maravilha de que nos fala o título original é a Merveille do Mont Saint-Michel, o convento-ilha sobre o oceano que aparece nas primeiras cenas: Neil e Marina sobem as escadas “to the Wonder”, até a Maravilha, antes e depois de terem brincado com os quilômetros de areia ocupados e libertados pelas marés (quem as viu, sabe que é um dos espetáculos mais próximos da Criação a que podemos assistir). Ela irá subir as escadas de um motel antes de trair o marido. E também o padre Quintana subirá alguns degraus, antes dos encontros que lhe restituirão a presença real de Deus. Talvez seja por acaso, talvez não. Malick presta-se mais a fazer perguntas do que a dar respostas. Mas certamente a nossa vida sobe toda por escadas como estas, e o filme dele nos leva ali. A nós, a Ele.
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