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Passos N.153, Novembro 2013

DOM GIUSSANI / A BIOGRAFIA

Um primeiro olhar sobre o carisma

por Marc Ouellet*

No dia 18 de setembro, em Milão. Dia 23, em Roma. Nas apresentações do livro "Vida de Dom Giussani", intelectuais e religiosos se confrontaram com a história do fundador de CL. O cardeal MARC OUELLET, Prefeito da Congregação para os Bispos, explicou no evento da capital italiana, por que a figura de Giussani tem “um grande alcance para a Igreja universal”. Eis o texto de sua colocação


“Nenhum de nós, com efeito, vive para si mesmo e ninguém morre para si mesmo, porque se vivemos, vivemos para o Senhor, se nós morremos, morremos para o Senhor. Quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor” (Rm 14, 7-8).
A Vida de Dom Giussani de Alberto Savorana me deixou a forte sensação de ter encontrado uma grande personalidade, que vivia intensamente a sua pertença ao Senhor e que não cessou de intervir na história do seu povo. O homem, o padre e o fundador que foi Dom Giussani, as marcas que ele deixou na tradição ambrosiana, os desafios lançados ao catolicismo italiano, a sua memória que permaneceu viva nas obras que fundou ou inspirou, em uma palavra, o testemunho da sua vida está agora acessível graças ao jornalista de talento que trouxe à luz esta biografia extraordinária. Um relato emocionante e envolvente apoiado em uma grande quantidade de documentos que abrangem quase um século de história da Igreja.
Amigo de poetas, companheiro de grandes homens de pensamento, familiar de Sumos Pontífices, Dom Giussani interessou-se, em primeiro lugar, pela fé dos jovens que, seguramente, queria proteger dos assaltos do ateísmo, do relativismo e do niilismo, mas sobretudo queria tornar a fé desses jovens capaz de gerar uma cultura cristã na época da secularização.
O movimento eclesial que nasceu do seu empenho apostólico se distinguiu pela presença incisiva dos leigos na sociedade em nome da sua fé cristã, com o risco de serem mal interpretados ou inclusive encontrarem oposição dentro da própria Igreja. Dom Giussani pilotou com sabedoria o seu movimento em um mar tempestuoso, ancorando-o na oração e evitando que encalhasse nos bancos de areia do racionalismo. Ele submeteu o seu movimento a uma obediência estrita ao Magistério pontifício, que em contrapartida reconheceu a sua obra como fruto autêntico do Concílio Vaticano II. O instrumento de que dispomos a partir de hoje narra as aventuras desta figura carismática que interpreta o Concílio como uma “reforma na continuidade”, segundo a fórmula consagrada sob o pontificado de Bento XVI.

O que nos diz este sacerdote através da memória documentada da sua vida e das suas obras? De bom grado se reconhece nele um particular carisma de educador para a fé e de apologista do cristianismo. Mas serão suficientes estas categorias para dar conta de sua profunda influência? Dom Giussani é uma figura do cristianismo contemporâneo que resiste, hoje como ontem, às tentativas de limitação ideológica. A sua existência movimentada e seu pensamento vulcânico nos falam de Vida e de Verdade. Levam-nos a perguntar o que Deus quer dizer a nós, hoje, através desse apóstolo inflamado e incômodo que certamente não gosta que lhe prescrevam repouso absoluto, nem mesmo depois da morte. Queira Deus que ele continue a nos incomodar para melhor nos servir!
Permitam-me que como observador externo considere, depois de uma rápida leitura, alguns aspectos dessa figura carismática que me parecem ser de grande alcance para a Igreja universal.

1. O jovem padre que pediu para ir ensinar no Liceu Berchet distinguiu-se no terreno pelo compartilhamento da sua experiência de fé e a comunicação das certezas que tinha adquirido no Seminário de Venegono. Dom Giussani descobria consternado a crescente divergência entre a piedade formal dos jovens e a sua cultura intelectual cada vez mais distante do mistério da fé. Para superar este divórcio entre a fé e a vida, ele criou um método original e provocador que obrigava os jovens a tomarem posição de acordo com as convicções pessoais. Bebendo copiosamente nas fontes da arte, das ciências e da música, ele se apoiou sobretudo sobre uma filosofia realista cultivada a partir do maravilhamento diante do mistério do ser. Mas seu ponto forte sempre foi o Mistério do Verbo encarnado, que apresentava aos jovens como critério último de juízo do valor de cada coisa.
O principal requisito de sua pedagogia foi apoiar-se “não sobre uma síntese de ideias, mas sobre certezas de vida”. Dom Giussani teve a sorte de se aproximar de mestres que, desde a adolescência, o iniciaram na experiência das verdades centrais do cristianismo. Por toda a sua vida conservou um reconhecimento comovido pelos Colombos, Cortis, Figinis que haviam enraizado no seu espírito a estima pela razão e pelas certezas da fé. Comentando seguidamente seu ensino no Liceu Berchet, Giussani afirma: “As coisas que lhes dizia nasciam não de uma análise do mundo estudantil, mas daquilo que minha mãe e o seminário me diziam. Tratava-se, em síntese, de falar aos outros com palavras ditadas sim pela Tradição, mas com visível consciência, até das suas implicações metodológicas”.

2. Outro aspecto significativo do seu carisma é a abordagem racional do cristianismo. Os jovens são marcados pela cultura científica e, consequentemente, devem ser conduzidos de modo racional até o limiar do mistério. O livro de Giussani sobre O senso religioso estabelece os princípios e as etapas do seu método. O autor se destaca na análise religiosa da experiência humana. A sua “paixão pelo razoável” o solicita a desenvolver uma metodologia realista e crítica que coloca no centro a pergunta sobre Deus. No final da sua reflexão, coloca a hipótese da Revelação como uma “possibilidade”, ou mesmo com uma “espera” legítima e razoável do coração humano sedento de sentido e de infinito.
Este primeiro volume do seu percurso de formação continuará sendo um clássico dos preâmbulos da fé, um itinerário confirmado pela experiência que prepara para o acolhimento da Revelação. Este livro foi objeto de comentários fortemente lisonjeiros da parte de personalidades tão diversas como o Arcebispo de Buenos Aires Jorge Mario Bergoglio, o rabino David Rosen, o escritor Giovanni Testori e o monge budista Takagi Shingen.

3. O discurso de Giussani sobre Cristo, centro da Revelação, faz eco de seus mestres de Venegono, mas também de suas leituras aprofundadas de diversos autores, entre os quais ortodoxos e protestantes: Vladimir Soloviev, Karl Barth, John Henry Newman, Reinhold Niebuhr, sem esquecer, obviamente, os seus amigos Hans Urs von Balthasar e Joseph Ratzinger, que lhe atribuem uma influência na escolha do título da revista Communio. A sua visão é radicalmente cristocêntrica e comporta, como corolário, uma concepção unitária do destino do homem que o Concílio Vaticano II retomará com a afirmação de que a vocação do homem é única e divina e que só encontra plena luz no mistério do Verbo encarnado.
Esta profunda correspondência entre a antropologia e a cristologia será, posteriormente, confirmada pela encíclica Redemptor Hominis depois da chegada de João Paulo II à cátedra de Pedro. Estes acontecimentos terão sobre Giussani e sua obra um impacto profundo e libertador, exatamente porque neles irá rever a sua compreensão da pessoa humana no Cristo. Repetia com satisfação que “fora do acontecimento cristão não se pode entender o que é o eu”.
A sua perspectiva antropológica ultrapassa o dualismo moderno entre a natureza e o sobrenatural que tirou a vitalidade do cristianismo. Giussani exprime o relacionamento do homem com a graça em termos de vida nos quais o encontro das pessoas e a sua comunhão são inseparáveis da sua relação com Deus. Daqui resulta uma nova fenomenologia da graça, que a descreve como um “encontro” com o Cristo ressuscitado cuja “presença” envolve e solicita a vida humana em todas as suas dimensões. Daqui a descrição do cristianismo como um fato, um evento, uma amizade, uma companhia, uma comunhão com Cristo que realiza a identidade profunda das pessoas na inserção na comunhão eclesial.
Giussani não apenas renova o vocabulário a partir da experiência; ele ensina a ver as realidades da fé de um modo que permite experimentar a verdade daquilo em que se crê e julgar cada coisa sob esta luz. Uma experiência como esta é libertadora porque reforça a consciência de pertencer ao Mistério de Cristo e de participar ativamente dele vivendo o próprio destino de comunhão: “A história, para nós, é a continuidade da ressurreição de Cristo”, escreve Dom Giussani. “Cada momento da história, agora, para nós, é o modo como o mistério da ressurreição se realiza”.

4. Esta experiência do Ressuscitado na história conduz à fórmula paulina “Cristo tudo em todos” (Cl 3, 11) que leva ao seu vértice a identificação de Cristo e da Igreja. Eis outra chave da visão de Giussani. Quanto mais ele medita o Mistério de Cristo e o faz descobrir, tanto mais sublinha o mistério da Igreja como a encarnação continuada, a encarnação total poderíamos dizer, com a advertência de manter a distinção entre o Verbo Encarnado e o Seu corpo eclesial, constituído e animado pelo Espírito.
No ponto culminante da crise pós-conciliar dos anos setenta, alguns jovens propuseram a Giussani que identificasse o seu movimento com o nome de “Comunhão e Libertação”. O mestre aceitou a proposta na medida em que traduz bem a experiência de pertença total a Cristo e à Igreja. “Porque comunhão é libertação”, dirá Giussani, isto é: a comunhão com Cristo na Igreja é libertação dos limites do “eu” no “nós”, à imagem da Trindade. O Cardeal Joseph Ratzinger comentará, mais tarde, este nome à luz da tradição ambrosiana: “A liberdade, para ser verdadeira, e portanto para também ser eficiente, precisa da comunhão, e não de qualquer comunhão, mas em última instância da comunhão com a própria verdade com o próprio amor, com Cristo, com o Deus trinitário. Assim, se constrói comunidade que cria liberdade e confere alegria”.
Giussani dá testemunho disso nestes termos: “Domina em nós a gratidão pela descoberta de que a Igreja é vida que encontra a nossa vida: não é um discurso sobre ela. A Igreja é a humanidade vivida como humanidade de Cristo e isto marca, para cada um de nós, o valor do conceito de fraternidade sacramental”.
Este conceito de fraternidade sacramental aplicado ao Movimento corresponde à eclesiologia de comunhão da Constituição Dogmática Lumen Gentium, que estende o conceito de sacramento à Igreja no seu conjunto como sinal eficaz do Cristo ressuscitado. As vicissitudes políticas e eclesiais da Itália no nosso tempo condicionaram o empenho do Movimento ao risco de, às vezes, esquecer o mistério de comunhão do qual, por sua vez, ele mesmo tem a intenção de ser expressão sacramental no sentido mais pacífico e construtivo para a Igreja e a sociedade. A evolução do movimento no tempo, após a década dos anos setenta, restabeleceu o equilíbrio.

5. Um último elemento particularmente significativo me parece ser o florescimento no movimento de numerosas vocações para a vida consagrada, que foram, da parte do fundador, objeto de uma especial atenção. Entendida no início como uma simples realização do Batismo, esta experiência amadureceu com o correr do tempo e a sucessão de diálogos com Giussani na direção de novas formas de vida segundo a tradição dos conselhos evangélicos. Esta fecundidade vocacional manifestou-se em especial na Fraternidade Sacerdotal de São Carlos Borromeu e no Instituto dos Memores Domini. Este último nome não significa a recordação de um acontecimento passado mas, pelo contrário, a viva memória da presença do Cristo ressuscitado que chama as pessoas para segui-Lo em uma nova forma de esponsalidade.
“A vossa profissão de vida”, diz Giussani, “será a proclamação profética de todas estas coisas com a própria forma da vossa vida, a forma de quem não se casa [...] para penetrar naquele fenômeno de esponsalidade total com todos e com todas as coisas, que é a promessa [...] de Cristo”.
Reflete-se aqui a fórmula paulina “Deus tudo em todos” (1Cor 15, 28) que adquire a sua fisionomia esponsal precisamente à luz da fórmula “Cristo tudo em todos” (Cl 3) de que Maria e a Igreja são o ícone escatológico na história.

6. Estas poucas características para as quais chamamos a atenção constituem um primeiro olhar sobre o carisma de Dom Giussani que deixa na sombra muitos outros aspectos importantes. É preciso ler a biografia inteira para descobrir a sua amplitude e as ramificações, na medida em que os ensinamentos, as missões, as fundações, as iniciativas, os debates, os diálogos, as cartas, a direção espiritual, as doenças, os lutos, como também os encontros ocasionais, deixaram marcas surpreendentes e duradouras. O carisma de Dom Giussani é mais do que uma aptidão, uma virtude ou a mensagem de uma personalidade fascinante. O seu carisma é ele mesmo na medida em que é pessoa única que o Espírito de Deus uniu a Cristo para uma missão singular na Igreja. Segundo Giussani, um carisma é: “Um dom concedido pelo Espírito a uma pessoa, em uma situação histórica particular, para que, através da energia comunicada, aquela pessoa seja origem de uma particular experiência útil para a Igreja. [...] O carisma pessoal é a contribuição que o indivíduo dá para o desígnio do Espírito”.
Nesse ponto, Von Balthasar acrescenta que o “carisma pessoal” é a própria pessoa em tensão dramática para a realização da sua missão em Cristo. O exemplo de Dom Giussani, que Balthasar estimava grandemente, foi, certamente, uma inspiração e uma confirmação para a sua visão cristológica do mistério da pessoa. A biografia de Giussani de que dispomos descreve a energia vital que punha em movimento todas as fibras do seu ser em uma experiência de paternidade eclesial. É exemplo disso a recordação que o padre Carrón faz no momento em que assume plenamente a responsabilidade de suceder a Dom Giussani. Naquele momento ele recorda ao movimento uma expressão surpreendente usada pelo fundador em 1992: “Dar a vida pela obra de um Outro; este “outro”, historicamente, fenomenicamente, como aparência, é uma determinada pessoa [...], sou eu”.

Este reenvio da pessoa de Cristo à própria pessoa, inspirado em São Paulo, poderia, à primeira vista, parecer excessivo, mas se harmoniza com uma visão sacramental da vida. O outro humano pelo qual se aceita trabalhar e dar a própria vida é portador do Mistério e, portanto, impõe o respeito bem como a obediência. Padre Carrón esclarece esta identificação paradoxal que poderia ser julgada perigosa com uma outra palavra de Giussani que equilibra o alcance provocador da primeira: “Quando perdemos o apego à modalidade com que a verdade nos é comunicada, é então que a verdade da coisa começa a emergir claramente”.
“Dar a vida pela obra de um Outro” foi o ideal perseguido com paixão por este padre milanês que, assim, se tornou a modalidade concreta da graça para todo um povo. A sua autenticidade me parece ser confirmada pela experiência da cruz que marcou especialmente o início e o fim do seu ministério sacerdotal. Assim como outros fundadores e fundadoras, ele foi crucificado na sua carne e nas suas relações, e foi frequentemente reduzido à impotência pela doença. É neste crisol do mistério pascal que a sua paternidade alcançou dimensões que fogem de toda a medida humana.

A Vida de Dom Giussani de Alberto Savorana consegue fazer um belo retrato dessa figura carismática e convencer-nos de que “a maior alegria da vida do homem é sentir Jesus Cristo vivo e palpitante nas carnes do próprio pensamento e do próprio coração”. Esta biografia não nos deixa como estávamos antes de começar a sua leitura, mas nos interroga e pode nos transformar.
Algumas modalidades da resposta da Igreja a este carisma estão ainda por determinar. Quanto à nossa resposta pessoal, essa só pode ser livre e colocar em jogo a nossa consciência diante do Espírito de Deus que quer prolongar na nossa carne a Encarnação do Verbo. Foi Ele que deu a Dom Giussani essa grande personalidade que sempre acompanha a nossa história no Cristo Ressuscitado. É Ele ainda que nos alcança dentro e para além desta biografia, para nos ajudar a viver a única coisa que contava aos olhos de Dom Luigi Giussani: a união com Cristo, nosso destino e nossa esperança.

*Prefeito da Congregação para os Bispos

(Texto traduzido por Paulo Pacheco e não revisto pelo autor da palestra)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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