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Passos N.155, Fevereiro 2014

APROFUNDAMENTOS

Surpreendidos pela alegria

por Davide Perillo

Os comentários com foco no "programa" de Francisco: reorganização da Cúria, sermões chatos, economia exclusão... Mas o que marca da "Evangelii Gaudium" está além, é o modo decidido com que repropõe “o primeiro anúncio” cristão. E a ênfase na palavra experiência

Será um texto para estudar profundamente, com calma. A começar porque é o primeiro documento compacto escrito totalmente in próprio (a encíclica Lumen Fidei era declaradamente “a quatro mãos” com Bento XVI). Mas muito por aquilo que afirma o mesmo papa Francisco, no parágrafo 25: “Aquilo que pretendo deixar expresso aqui possui um significado programático e tem consequências importantes”. Não é por acaso que a Evangelii Gaudium, a exortação apostólica sobre a “alegria do Evangelho”, foi dada ao povo de Deus como conclusão de um evento histórico como o Ano da Fé, quando o Papa acabava de pôr sobre o altar o relicário com os restos mortais de São Pedro, expostos pela primeira vez.
Os comentários concentraram-se em grande parte sobre aquele “programa”: falaram de reorganização da Igreja e de “conversão do Papado”, desde as homilias cansativas e economia da exclusão, chegando até a arriscar previsões sobre a Comunhão aos divorciados e afins. Tudo muito interessante, mas as coisas que mais impressionam estão além. E chegam logo depois dos primeiros parágrafos, ricos em pontos que, um a um, mereceriam um aprofundamento.

Libertação. Só alguns exemplos. A alegria que dá o título ao texto e que “torna a encher o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus” coincide com a libertação: “Aqueles que se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza e do vazio” (1). É a resposta à pergunta “para que serve a fé?”. Ou: toda a medida da nossa humanidade não reside naquilo que fazemos ou erramos, mas no sermos amados por Alguém que “volta uma vez e outra a carregar-nos aos seus ombros. Ninguém nos pode tirar a dignidade que este amor infinito e inabalável nos confere” (3). Ou ainda: a alegria Cristã é reflexo daquela com que o próprio Deus festeja o homem, vibra pela nossa humanidade, “Ele exulta de alegria por tua causa, pelo Seu amor te renovará. Ele dança e grita de alegria por tua causa”, diz o Papa, citando Sofonias (4). Mas até se poderia – ou deveria – retomar as palavras usadas incidentalmente, como aquele “reencontro” com o amor de Deus (8) que, sozinho, nos lança novamente para uma questão capital para o Cristianismo: a possibilidade de encontrar Cristo em cada instante: a Sua contemporaneidade.
É tudo assim, em rajadas. Completamente diferente dos problemas de organização. E se é verdade que o Papa se estende aos pormenores da vida da Igreja, desde as relações entre bispos e povo até como preparar as homilias (dedica-lhes uns bons 25 parágrafos, não para nos oferecer um prontuário, mas para tornar a valorizar um momento importante demais e muitas vezes maltratado), o coração não está ali. Há algo que vem antes: é a centralidade de Cristo. A mesma que é gritada com força pelo Papa Francisco na praça de São Pedro na homilia da missa de encerramento do Ano da Fé. A mesma que emerge nos parágrafos dedicados ao kerygma, ou seja, ao anúncio de quem pede para voltar continuamente: “O primeiro anúncio: ‘Jesus Cristo ama-te, deu a Sua vida para te salvar, e agora vive contigo todos os dias para te iluminar, fortalecer, libertar’. Ao designar-se como ‘primeiro’ este anúncio, não significa que o mesmo se situa no início e que, em seguida, se esquece ou substitui por outros conteúdos que o superam; é o primeiro em sentido qualitativo, porque é o anúncio principal, aquele (...) que se tem sempre de voltar a anunciar” (164). Tudo depende dali. E, olhando ali, esclarecem-se muitos temas.
A “presença”, por exemplo. Não é uma estratégia, não depende do fazer, mas coincide com o responder à pergunta sobre si mesmo, com o crescimento da própria autoconsciência. “Quando a Igreja faz apelo ao compromisso evangelizador, não faz outra coisa senão indicar aos cristãos o verdadeiro dinamismo da realização pessoal”, escreve o Papa (10). E mais adiante acrescenta: “A missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou um ornamento que posso pôr de lado (...). É algo que não posso arrancar do meu ser, se não quiser me destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo” (273). Mas também sobre o testemunho, sobre a necessidade de que a fé se torne carne para se comunicar, há passagens muito claras: “Jesus quer evangelizadores que anunciem a Boa Nova, não só com palavras, mas sobretudo com uma vida transfigurada pela presença de Deus” (259). Só uma vida mudada pode mudar outras vidas.
Mas se há um fio condutor que seja retomado com cuidado, porque é verdadeiramente capital, esse fio é a experiência. Para o papa Francisco, é um fator cognoscitivo decisivo. É ali que a realidade se faz descobrir a si mesma e a nós mesmos. É ali que a fé encontra a sua confirmação. É ali que se desvela a sua pertinência em relação às perguntas e às exigências da vida. Diante de todos os teólogos que continuam a olhar para esta categoria desconfiados, como se se tratasse de algo sentimental ou subjetivo.
Aqui, não há mais delongas. E quem tiver os instrumentos para fazê-lo, é bom que o faça. Mas as palavras do Papa também são muito claras para os que não são especialistas. “Temos à disposição um tesouro de vida e de amor que não nos pode enganar, a mensagem que não pode manipular nem iludir”, escreve o Pontífice: “É uma resposta que desce ao mais fundo do ser humano e que o pode sustentar ou elevar. É a verdade que não passa de moda porque é capaz de penetrar onde nada mais pode chegar (...). Esta convicção, porém, é sustentada com a experiência pessoal, constantemente renovada, de saborear a sua amizade e a sua mensagem. Não se pode perseverar numa evangelização cheia de ardor, se não se está convencido, por experiência própria, que não é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não O conhecer, não é a mesma coisa caminhar com Ele ou caminhar tacteando, não é a mesma coisa poder escutá-Lo ou ignorar a sua Palavra, não é a mesma coisa poder contemplá-Lo, adorá-Lo, descansar n’Ele ou não o poder fazer” (265-266). A experiência. O coração que ajuíza e que reconhece o que acontece, porque o pode fazer, é-nos dado por Deus para isto. “O teu coração sabe que a vida não é a mesma sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te ajuda a viver e te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros” (121).

Encarnação. Mas há mais. Esta necessidade de reflexão é de tal maneira imponente e plenamente consciente daquilo que acontece, porque só ali se desvela o Verdadeiro, que a experiência é decisiva, não só para o fiel, mas para a própria Igreja, pela consciência que tem de si. Não é uma coisa estática e imutável: a Igreja é viva, e como tal aprende a viver, adentra-se cada vez mais na sua própria mensagem fazendo dela experiência. Mesmo aqui, há matéria para aprofundamentos que devem vir: entender é muito importante. Mas é ali que o papa Francisco parece apontar quando escreve que “a Igreja, que é discípula missionária, tem necessidade de crescer na sua interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da verdade”, de “amadurecer o juízo” (40). Ou acrescenta que, “em algumas questões, o povo cresceu na sua compreensão da vontade de Deus a partir da experiência vivida” (148). A ponto de se lançar a indicar um critério que dará muito para estudar e discutir: “O próprio rebanho possui olfato para encontrar novas estradas”, recorda com ironia, aos pastores (31). Não é uma questão de democracia ou de sondagens de opinião: é o apelo a um critério que é, ao mesmo tempo, pessoal, objetivo e comunitário. Mas os teólogos aprofundarão também isto.
Assim, como em relação a tantos outros pontos, será trabalho para meses, talvez anos, para se entender completamente as estradas novas que certas indicações abrirão, sobre temas à primeira vista politicamente correto, ou então muito citadas mesmo por tradições culturais diferentes. Os pobres, por exemplo. A Igreja realmente os prefere, sem mas e sem se, não por razões sociológicas, mas porque “são aqueles que não têm como te retribuir” (Lc 14,14), de alguma forma são a prova da gratuidade absoluta a que o Evangelho nos chama (veja-se os parágrafos 197-201). E é o mesmo Evangelho a mostrar que “no irmão está o prolongamento permanente da Encarnação para cada um de nós: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes”“ (179).
Estes são apenas acenos. Mas a palavra decisiva e “sempre nova”, no fundo, é precisamente aquela: a Encarnação, Cristo. No fim, tudo volta ali. Porque tudo parte dali. E, acima de tudo, a alegria verdadeira da vida.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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