Há uma tal riqueza na “Evangelii Gaudium” – e naquilo que o Papa continua a nos propor todos os dias – que levaremos anos, literalmente, para entender e aprofundar a estrada indicada. Nós, nestas páginas, só podemos testar e acompanhar alguns passos desse percurso.
No mês passado, com o documento recém-publicado, procuramos saber qual é a ideia que o Papa Francisco tem da “experiência”, sobre o modo como podemos conhecer a realidade e nos darmos conta da diferença substancial que a fé leva para todos os aspectos da vida. Desta vez, porém, aprofundamos um primeiro terreno de verificação da experiência da fé: a concepção que o Papa tem das relações entre os homens, da vida comum. Com um olhar especial para um fator sobre o qual ele insiste desde os primeiros dias do seu Pontificado, e que na Exortação é uma coluna de sustentação: a pobreza, a preferência da Igreja pelos pobres.
É um problema urgente, até pelo seu contexto: hoje, em países onde antes não existiam problemas econômicos, há o risco de seus habitantes caírem na miséria; há dificuldade de pagar as contas e a carne não é mais o prato de todos os dias... A realidade interpela. E torna-se ainda mais necessário ir a fundo de fenômenos como a Coleta Alimentar, que se desenvolveu no Brasil no início de novembro passado e reuniu ao menos 4.000 voluntários em 20 estados brasileiros, ou de gestos como os Bancos de Solidariedade, a iniciativa italiana que leva gêneros alimentícios, todo ano, justamente “aos pobres”. Que experiência esses fatos geram? Do que se trata? São gestos de altruísmo, criados para “fazer o bem”, ou ajudam a desenvolver uma consciência diferente, uma tomada de consciência de si e da realidade? O que acontece em quem dá e em quem recebe? Ler com esse olhar ajuda a captar o tesouro escondido do qual o Papa fala quando fala dos pobres, ou seja, de nós.
Com uma decisiva “observação” de fundo. Sabemos – e isso pode ser visto – que há um risco ao se ler o magistério de Francisco: o de identificar as “periferias”, de que ele fala continuamente, também na “Evangelii Gaudium”, com a necessidade material, com a miséria, com as favelas, que se expandem mundo afora. Não, é um conceito muito mais amplo e sutil. As “periferias da existência” existem em todos os ambientes, em todos os aspectos da vida, em todos os corações que ficam longe do centro, ou seja, de Cristo. São algo infinitamente mais complexo e fascinante do que a redução sociológica a que muitos já tentam reconduzi-las, exaltando ou criticando, dependendo do próprio posicionamento, o Papa “terceiromundista” ou “de esquerda”. Já falamos disso e falaremos muito mais, procurando sondá-las durante uma trajetória que terá uma etapa importante também no próximo Meeting de Rímini, o evento cultural que Comunhão e Libertação promove em agosto, na Itália, dedicado este ano exatamente às “periferias”.
Mas aqui vamos focalizar um aspecto. Procurando justamente entender por que a pobreza “não é uma categoria sociológica”, como diz o Pontífice, mas tem a ver com a fé, ajuda a nos confrontarmos com a totalidade do anúncio cristão. Levando totalmente a sério a realidade que temos à nossa volta, e a experiência que fazemos ao dar e ao receber, podemos percorrer a estrada que leva até Cristo, à alegria do Evangelho.
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Américo está ali, vencendo o seu temperamento fechado, batendo às portas das casas num cortiço na zona residencial de Údine, na Itália. É uma noite de inverno e o seu vizinho, Paolo, a quem saúda, abre a porta e não esperava tanta confidência assim de repente: “Vendi tudo de valor que eu tinha e os móveis. Não tenho nada para comer”. No dia seguinte, Paolo estará em sua casa, levando comida e o dinheiro para pagar o aluguel. Depois, faz uma coleta entre alguns amigos para comprar para ele um furgão e fazê-lo retomar o trabalho. Também oferece ajuda para a esposa encontrar um emprego. O elenco é longo como os dois anos de amizade, desde aquela noite.
“Fiz tudo porque um homem bateu à minha porta”. Paolo, que hoje conduz o Banco Alimentar da região de Friuli-Venezia Giulia, foi educado, durante anos fazendo caritativa, a ter uma abertura de que não somos capazes, como não o era Américo: “Eu não tinha ideia do que significa não conseguir pagar a luz e o gás. Nunca fui rico, mas nunca me faltou nada”. Depois de trinta anos de atividade, a sua empresa de transporte entrou em crise. Ele arriscou, abrindo um bar, que faliu seis meses depois. Vendeu tudo o que podia. Aurora, a filha de 16 anos, passou a fazer o cabelo das senhoras, em casa. “Mas não bastou. Ficamos arruinados. Se naquela noite eu não tivesse falado com Paolo, eu estaria morto, como esses empresários dos quais a gente ouve a TV falar”. O “golpe” – como ele chama – “me ensinou muito. Eu também era uma pessoa disponível, mas só na família e com os empregados. E sempre só até certo ponto. Mas encontrei pessoas, Paolo e seus amigos, que eu pensava que não existiam: eles vivem de outro modo. Vivem um outro tipo de vida. Eu estou me recompondo e também estou começando a olhar as coisas de um modo diferente. Até minha mulher me diz isso”.
O apóstolo Paulo, para entender se estava mesmo correndo ou caminhando em vão, usava um único critério: se tinha se esquecido dos pobres. Isso nos recorda o Papa na Evangelii Gaudium. Diz que os pobres são a nossa “chave do céu”. A vida deles tem uma força de salvação e nos comunica uma misteriosa sabedoria. Explica também que Jesus não só se fez pobre, em tudo, mas se identificou com os marginalizados e disse aos seus: “Vós mesmos dareis a eles de comer”. “Ele nos indicou esse caminho de reconhecimento do outro” com a sua própria vida. “É uma mensagem tão clara e direta”, diz o Papa, “que não pode ser obscurecida”, basta não afastar a realidade com “aparatos conceituais” e interpretações, mas aproximar-se dela, olhar, por exemplo, o que acontece com quem pede e com quem, dando, recebe.
Os relacionamentos que nascem da vitalidade de um fato como a Coleta Alimentar ou com os Bancos de Solidariedade escondem um tesouro de gestos e palavras que vibram com a fé e com o vivê-la cada vez mais.
Na soleira. Tatiana tem uma coisa clara na cabeça: “Não me sinto mais inútil”. Com pouco mais de 30 anos, viu-se, com o marido e os quatro filhos, diante da obrigação de sair de um casarão de imigrantes na área pobre de Bergamo, na Itália. “Mas justamente nessa época, Marco começou a me trazer a comida uma vez por mês. E, então, até o pesadelo do meu passado não pesou mais”. Parecem duas coisas que não têm relação entre si, mas, para ela, coincidem: “Não tenho uma bela história e sempre vivi abandonada por causa disso. Marco, ao invés, não se escandalizou. Entrou na minha casa”.
Como Rosa, que se envergonhava quando chegavam para lhe entregar a cesta básica, escondendo no quarto o seu companheiro alcoolizado. Até que, num encontro do Banco de Solidariedade, ouviu o padre dizer que “Deus tem tempo para nós, se interessa por nós”. Naquela mesma noite o seu marido voltou bêbado para casa. “Eu fiquei muito brava, estava para prendê-lo no quarto... Mas depois consegui olhar para ele, pois eu fiquei sabendo que sou amada”.
Os pobres têm “uma especial abertura de fé”, como diz o Papa. Por isso, “é necessário que todos se deixem evangelizar por eles”.
A italiana Lorenza sempre odiou ser pobre. Para as estatísticas ela está no limite: tem 44 anos, vive com o irmão na casa dos pais e dependem da pensão deles. Está desempregada desde 2011; antes era temporária. “Mas agora não odeio mais a minha condição. Abriram os meus olhos”. Ela perdeu muitas coisas, renunciou a muitas outras, como o carro e a possibilidade de mudar de casa, nas colinas da Úmbria, onde vivem quase que isolados. Procurou emprego, pediu, mas só ouvia palavras de desencorajamento. “Ninguém sabia o que me dizer”. Ela passou chorando a noite de Natal de um ano atrás; olhando o presépio, se sentia como aquele berço na gruta. “Depois pensei: não, sou menos do que esse berço. Sou a palha”. Mas “no fundo do poço” – como ela diz –, compreendeu que “Jesus pegou a palha e decidiu nascer em cima dela”. Recuperou todo o valor de si mesma e das coisas. “Eu me libertei não só pelo fato de perder tudo aquilo a que em geral estamos apegados, mas pelo fato de me apegar à única promessa verdadeira, o encontro que tive com Cristo. Mesmo quando a escuridão volta, nunca me sinto abandonada”. Hoje, as condições e as perspectivas não mudaram muito; participou da Coleta de Alimentos com pouco dinheiro na conta corrente, mas fez as compras para doar e trabalhou como voluntária. “Por gratidão. Porque tudo o que tenho me foi dado. E a minha necessidade é de ser amada porque eu existo, e não por uma ideia que se faz de mim. Mas assim como eu sou”.
É a necessidade que predomina na breve visita ao Banco de Solidariedade de Roma, na noite em que se preparam os pacotes com as doações num salão. Pessoas de diferentes condições sociais enchem as caixas juntas, para mais de 170 famílias. “Continuamos a ficar impressionados, vendo outros impressionados com o olhar que perpassa entre nós e não é nosso. Abraça o homem como nenhum de nós sabe fazer”, conta Fiero, que iniciou essa aventura em 2009.
Outra voluntária, Bianca, é advogada. Está aqui com a filha de oito anos, porque esta é “a maior coisa” que lhe pode mostrar. “Eu me sinto em débito com eles”, diz ela, referindo-se à família a quem entrega o pacote: “Sem isso, eu me sentiria perdida no corre-corre das jornadas. É um momento de grande stress no trabalho, não tenho tempo para respirar, mas não posso renunciar a isto, porque influencia muito a minha vida”. Como? “Fazer este gesto me dá um senso de gratidão profunda, um significado grande... Não tem como explicar com palavras. É preciso experimentá-lo”. Aqui, na mais absoluta normalidade, ocorre a todos a necessidade de recomeçar a viver, sempre. Entre os voluntários “veteranos” está Giovanna, que um dia se sentiu cansada e amarga ao dizer à amiga Lina: “Eu preparo o pacote, mas depois você é que vai entregá-lo”. Depois: “Não, espera aí, eu vou te acompanhar, mas não subo”. Em seguida: “Eu subo, mas não vou demorar”. Criando obstáculos, fazendo cálculos. “Depois cheguei lá e aquela senhora que nos esperava se lembrava de quem eu era. Nós nos vimos uma vez só e ela se lembrava de mim. O Mistério veio me salvar, e não me pede nada mais que a disponibilidade da alma”. Diante de fatos menores, tão pequenos que podem até nem ser vistos.
O porquê do gesto. “A história de Deus conosco não passa pelas coisas grandes”, diz Gabriel, empilhando os pacotes para as “suas” famílias. Fala delas como as pessoas mais importantes do mundo. Para ele, tudo começou com Mara, “uma bela moça indiana que pedia esmola na rua”, e hoje é amigo de todo o seu clã. “Você precisa ver a alegria deles”, repete, enquanto fala do neto que começou a ir à escola, da filha que foi operada da perna, do primo que ele visita num edifício ocupado... Mas o que fica de tudo isso? “Nós somos maus e faríamos outra coisa. Eu faria outra coisa. Mas emergi a partir da surpresa de algo que acontece. O encontro com uma humanidade, feita de milhares de detalhes: se sigo apenas um deles, abre-se um espaço em mim que não existiria, me leva para onde eu não iria, mas onde sou feliz. Eu vejo em vocês o rosto do Senhor. É isso”. Assim, toda manhã reza para ter “a amizade dos pobres”.
Também Marisa faria outra coisa nesse dia. Está ocupada quando chega o enésimo telefonema da senhora para quem leva a comida. Ela foi internada no setor de Psiquiatria. “Vai ver que ela só deseja os cigarros ou as balas de menta. E eu tenho tanto o que fazer!”. Mas deixa tudo de lado e vai. Nunca se preocupa com o porquê daquele momento, daquele gesto. “Não sou feliz fazendo o papel de medida da necessidade dos outros, então não sei por que me chama, mas o fato é que me chama...”. A senhora a espera na porta do setor e a recebe com beijos e abraços. “Naquele momento tudo muda. Ela procurava o abraço de Cristo numa pobre cristã como eu. Buscava o significado que eu também procuro”.
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