Seguindo a escalada do radicalismo cultural na Europa, o Parlamento da Bélgica aprovou, em fevereiro, uma lei que autoriza a eutanásia infantil. Somente pelo testemunho de uma vida cristã autêntica será possível mudar esta falta de humanidade em nossos dias
Os bispos belgas, tendo à frente seu valente primaz André Leonard, convocaram um dia de jejum e oração ante a iminente aprovação da eutanásia infantil em seu país no início de fevereiro. O gesto foi acidamente criticado, tachado de “ingerência política” pela mídia e pelos partidos, embora desta vez parece que a polícia não se apresentou com martelos de pressão na sede da Conferência Episcopal.
Dizem as pesquisas (a espiral do silêncio não foi avaliada) que 74% da população aprova (com maior ou menor entusiasmo) essa legislação perfeitamente coerente com a trajetória desses dez anos de eutanásia legal. Claro que não era mesmo provável que a iniciativa episcopal mudasse o rumo dos acontecimentos. Ainda assim, julgou-se necessário aproveitar a ocasião para anular publicamente a incômoda voz da Igreja.
É um dado que não pode passar despercebido: a escalada do radicalismo cultural na Europa segue de mãos dadas com uma substancial diminuição das liberdades. De todas as liberdades: de expressão, de educação, de construção social..., mas sobretudo da liberdade religiosa.
Por isso, a investida contra a debilitada – quase exangue – Igreja Católica na Bélgica era conveniente; ou melhor, necessária. Porque, ainda que a sua voz seja pobre e trêmula, o poder suspeita que se ela continuar ecoando talvez possa dar início a uma história diferente. Uma história que não se submeta aos ditames da ideologia (antes, os grandes totalitarismos; agora, o laicismo radical) e que por atalhos que nunca podem ser completamente controlados (os encontros pessoais, as pequenas comunidades, os grupos familiares...) possa crescer pacientemente, com aquela paciência que permitiu aos monges renovar uma Europa assolada pela barbárie.
Medo de que comece tudo de novo; é disso que se trata. “A Igreja está sempre se desfazendo e se reconstruindo”, clama T.S. Eliot em “Os coros de A Rocha”. Há cinquenta anos, o catolicismo belga era um viveiro de religiosos, missionários, intelectuais... Não só isso: algumas pessoas o reconheciam como o cimento espiritual da nação, e não é estranho que sua tremenda queda tenha sido acompanhada pelo desmantelamento do país, que já não se reconhece a si mesmo, embora seus índices de “bem-estar” continuem sendo altíssimos. No entanto, os índices de decomposição (não só nacional) também são brutais, e isso não costuma ser computado na alegre festa dos meios de comunicação social. Como Deus foi expulso da cidade, desapareceu o critério para se distinguir o que torna preciosa e única a vida do homem, que renuncia à sua responsabilidade moral ou se atribui um poder de manipulação sem limites.
Não é minha intenção analisar as causas dessa ruína, pelo menos em termos sociológicos, que hoje empurra a Igreja para as margens da cidade, que a privou não só de seus eloquentes números, mas até mesmo do padrão de respeitabilidade que ela podia exibir. Foi o que experimentou, em suas aparições públicas, o arcebispo de Malinas-Bruxelas, André Léonard, repetidamente acusado pela guerrilha Femen.
O bom teólogo Léonard viu-se obrigado a deixar de lado os livros para empunhar o cajado de pastor nestes tempos turbulentos, e em seguida compreendeu que sua primeira cátedra seria a da humilhação, mediante a gozação e o desprezo intelectual ou diretamente através do ataque físico.
Eu sempre pensei que essa semente caída na terra poderia ser o início de uma lenta germinação. Frente à tentação de combater os lobos com as próprias armas destes, o arcebispo antecipou a máxima recente do Papa Francisco: “Sejamos cordeiros, nunca lobos; cordeiros, mas não bobos; cordeiros com a astúcia cristã, mas sempre cordeiros”.
Além disso, a astúcia (ou esse realismo inteligente que nasce da fé) permite entender que a reconstrução não pode acontecer mediante uma batalha midiática ou política. Os números, na Bélgica, são por demais evidentes para permitir essas entonações. E também não se trata de algo muito claro. É preciso refazer a experiência cristã no coração das pessoas e isso não se faz com campanhas de marketing, e sim através de testemunhos de vida, entrelaçados com palavras e gestos de caridade. Muitas vezes rechaçados e ridicularizados..., sim, mas também os únicos capazes de romper algumas correntes. É verdade que para isso se requer a têmpera de uma fé amiga da razão e que se comova com a ferida profunda de nossos contemporâneos. Requer-se também coragem e disposição para o martírio, ainda que não sangrento, porém essas coisas viveram e têm vivido milhões de cristãos por todo o mundo. Basta que a raiz seja verdadeira, basta que haja dois que vivam a fé para que essa história recomece.
(texto originalmente publicado no site espanhol Paginas Digital)
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