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Passos N.102, Março 2009

DESTAQUE - PARS

Salvos pela esperanca

por Paolo Perego

Pino, que vivia “como um verme”, hoje está casado e quer ter filhos. Nelson, que levou uma facada do pai, fala de perdão. E lá estão também Donatella, Matteo... Um passeio pelas casas (e histórias) de um cantinho da região italiana de Marche, onde, graças a uma amizade cristã, dezenas de vidas arrasadas pelas drogas estão reflorescendo. Porque descobriram a “certeza de um presente que nos faz certos do futuro”

Marco está reclinado sobre os tijolos que acabaram de ser assentados. Hoje não chove e então é possível terminar o piso da entrada principal. As colunas já estão de pé. Falta só o teto. O material chegará em breve. Marco tem 27 anos. Vem de um povoado perto de Roma. Ele se drogava. Da maconha passou para a heroína. Uma história como tantas. Trabalho, família, tudo por água abaixo. Por causa da presunção, diz ele, “de poder responder sozinho a tudo aquilo que a vida joga por cima da gente”. “Até o dia que a gente quebra a cara e desaba. Sem esperança...”. Agora ele está conseguindo sair. Chegou à comunidade há quase dois anos... “E hoje não vejo a hora de voltar para casa”. Casa e esperança.
É por isso que viemos aqui, num lugar onde até os “sem esperança” podem renascer. Como? Encontrando algo de bom e de sólido. Amizade e tijolos. E alicerces firmes, porque cavados na fé, na percepção de que o Destino está presente. “A certeza de um presente que garante o futuro”, como dizia Dom Giussani.
Bem, é essa a história da PARS (Prevenção Assistência e Reintegração Social). Fé. Amizade. E esperança. Tudo isso incrustado numa colina de Corridônia, em Contrada Cigliano, onde surge o Villaggio San Michele Arcangelo. O cartaz explica: “cooperativa agrícola”. Mas, San Michele é mais do que isso. Faz parte da organização PARS, uma cooperativa de recuperação para pessoas com “duplo diagnóstico”, ou seja, com dependências e distúrbios de personalidade.
É um pequeno conjunto de edifícios de tijolos à vista. Podemos vê-lo da estrada, antes de tomarmos os caminhos que contornam o morro e levam até lá. Quem nos recebe é Josè Berdini, o responsável pela obra. Um abraço, um cafezinho. E Josè começa a contar: “Na metade dos anos 80 ingressei na comunidade do padre Gelmini. Eu estava mergulhado na droga, como tantos outros naqueles anos. Saí de lá transformado. Depois, através do meu sobrinho Giorgio Torresetti e Lora, que hoje é minha mulher, encontrei o Movimento de CL, do qual eles já faziam parte. Em seguida, aconteceu que o padre Gelmini, que estava no Meeting de Rímini, ao final de um encontro convidou a todos para ajudá-lo em sua obra, pedindo a CL que acolhesse os jovens que saíam das suas comunidades de recuperação”. Dito e feito, ri Josè. “Pouco tempo depois, eu e Lora acolhemos em casa um doido. Na primeira noite, destruiu uma bicicleta nova”... Depois, uma coisa puxa a outra... Em 1990, nasce a Associação, que acabou se tornando uma cooperativa. Em 2000 realiza-se um sonho. “Com Giorgio havíamos pensado em morar juntos de amigos – as nossas famílias e outras duas. E iniciar uma experiência de acolhimento, em uma forma nova, também com os jovens da comunidade de recuperação”. Encontraram uma pequena chácara fora de Corridônia, e depois conseguiram os fundos. E, após três anos de trabalho, no verão de 2003, as quatro famílias se transferiram para a nova “casa-mãe”, reestruturada, em San Michele. A casa ocupa o centro do vilarejo, ao lado de um auditório. A cinquenta metros, a “estrutura residencial para a reinserção socioprofissional”. Foi aí que encontramos Marco. Um casarão de dois andares para onde os jovens vão depois da terapia de recuperação. Hoje vivem ali oito deles, em regime de autogestão.

PINO, “O MILAGRE”. Em San Michele, Marco trabalha também como aprendiz, com o ferreiro do vilarejo, Armando; com longos cabelos e bigode, sempre sorridente, Armando trabalha o ferro à moda antiga. Todo orgulhoso, Marco nos mostra a oficina em frente à casa. “Eu me viro bem com a solda”, explica, mostrando peças de metal trabalhadas a mão e desenhos de portões e de parapeitos. Em seguida, conta que percorre escolas e paróquias explicando aos jovens que a maconha é coisa séria: começa-se por ela, e não se sabe aonde vai parar. Poucos metros adiante trabalha Pino. “Milagre”, é o apelido que lhe dá Josè. Chegou à PARS há oito anos. “Eu estava mal. Passava quase o tempo todo largado na cama. Depois, decidi reagir, porque uma pessoa que estava diante de mim me levou a sério, o que era uma grande novidade. O drogado é presunçoso, pensa que pode fazer tudo sozinho.” E Pino renasceu. É tão agradecido a quem lhe deu a vida de volta – explica –, que não quer mais deixar a comunidade. Ficou e se dedica ao trabalho: de manhã, afixa nos muros cartazes com avisos da prefeitura; de tarde, junta placas de isopor em sua oficina, com outro jovem, Mauro. Apressa-se em nos mostrar a foto do seu casamento, em janeiro do ano passado, com Carla: “Agora, gostaríamos de ter filhos”, diz. Para ele, o futuro passou a ter outra face. É a esperança!
O trabalho no campo, durante o inverno, fica parado. Josè nos mostra o cenário do alto da colina: os pomares, os campos arados, as colméias e um pequeno lago, aos pés do morro. “Cultivamos a terra para arranjar algum dinheiro: produzimos mel, conservas de frutas, azeite. Vendemos os produtos inclusive no final dos encontros que organizamos aqui, no auditório, quando trazemos personalidades para discutir vários temas, atuais ou culturais. Em julho, veio Oscar Giannino. Antes dele, Claudia Kroll. E o pessoal comparece: sempre há mais de 150 participantes”. Como na Escola de Comunidade: “Regularmente nos encontramos com o pessoal da região, e depois almoçamos juntos. O auditório está ligado à cozinha...” Enquanto caminhamos pelo vilarejo, Berdini fala. Muitos frutos nasceram nos últimos anos, inesperados e providenciais. Além de San Michele, a poucos quilômetros há o complexo de Civitanova Alta, “Le Querce”, com as oficinas de cerâmica e a carpintaria para a restauração de móveis. Ainda em Civitanova, “Icaro”, recém-nascida, é uma casa que acolhe menores, e atualmente conta com nove meninos. Mais próxima, em Corridônia, há a comunidade “Don Vincenzo Cappella”, para onde os meninos vão no início da terapia, inclusive por indicação do SERT (Serviço Regional para Toxicodependentes). E também a casa “Santa Regina”, no centro da cidadezinha.
“A nós chegam sempre os casos-limite: os extremos confins do humano, aqueles que ninguém mais aceita”, diz Josè. Não é só a droga. São muitas as dependências: álcool, remédios... Geralmente ligadas a distúrbios de personalidade. “Vem para cá quem está realmente mal, já está sem esperança”... Ou quase. Porque, esclarece Josè, “para alguns, é difícil falar de reabilitação ou de cura. Mas todos melhoram. E muito”.
E são usadas todas as ferramentas possíveis. “Só o acolhimento não basta nesses casos. É preciso também a terapia. Por isso temos o acompanhamento de uma equipe de médicos e psicólogos.” Tudo deve ser analisado e ponderado. “Certamente, caso a caso. Inclusive cada demanda dos hóspedes. Uma vez a cada duas semanas, eles podem fazer pedidos: ver os pais, cigarros... e nós discutimos isso. Não os abandonamos em nenhum momento.” A ideia de que deveríamos estudar um método estruturado, com médicos, psiquiatras e agentes (a relação é de um para cada cinco pacientes), nasceu do encontro com o psiquiatra Giuseppe Mammana: ele foi, nos anos 80, um dos idealizadores da lei sobre a droga “Iervolino-Vassalli”. “Essa lei permitiu a abertura de novas estruturas, sob determinados critérios. Nós o procuramos e ele nos deu uma boa ajuda para estabelecer um método, que hoje é reconhecido e certificado em nível europeu. Ainda hoje ele colabora conosco.”
O relatório com dados e números sobre os mais de sessenta hóspedes da PARS prossegue no almoço, na “casa-mãe”. Quase todos estão presentes. Os Torresetti – Giorgio com sua mulher Silvia e os três filhos trabalhando em Milão e quatro filhos adotados. Os Berdini – Josè e Lora e dois filhos. Nicoletta e Stefano – ela empregada na cooperativa – e as duas irmãzinhas russas adotadas. E também Francesco e Barbara, com sua prole. Os filhos estão vindo da escola; os pais, do trabalho. Almoçamos juntos, todos sentados em volta de uma grande mesa. E também aqui uma estante para partituras, um violino sobre a cômoda. Durante a visita à casa, algo já havia chamado a atenção: de um cômodo vinha o som de um violino; num outro repousava um piano de cauda; em outro, dois violoncelos... “Aqui somos todos músicos. Ou quase...”, explicam. Lora e Barbara tocam piano; Silvia, diretora do Conservatório de Fermo, toca violino. As três mães fundaram ali também uma escola de música... Depois Michele, terceiro filho de Giorgio, violinista, que vive em Milão com os dois irmãos violoncelistas. Francesco, guitarrista e musicoterapeuta. E assim vai, até os menorzinhos. “A música é importante: é uma paixão que une as nossas quatro famílias, desde o início.” E hoje a música é uma constante no vilarejo.

LIBERDADE E COMUNIDADE. A caminhada pelas ruas prossegue após o almoço. Os jovens da comunidade estão trabalhando: alguns colhem azeitonas, outros cuidam dos animais nos estábulos. Como Giovanni, que está alimentando os cavalos. É de Milão. Fazia um trabalho importante no campo da moda. Aí, a cocaína... E veio parar em Corridônia. Agora está procurando uma casa no vilarejo, pois decidiu, também ele, permanecer por aqui e trabalhar na cooperativa como agricultor. Além disso, coordena o trabalho dos rapazes no campo.
Com o jipe de Josè alcançamos, depois de alguns quilômetros de sobe-e-desce, a comunidade Don Cappella. Há um cartaz na entrada: de um lado, entrando, se lê “Viva a comunidade”. Do outro, “Viva a liberdade”. Josè explica: “É a experiência detalhada da comunhão que faz a pessoa renascer e com isso a liberdade. É verdade que alguns jovens abandonam o percurso, mas mesmo para quem permanece por pouco tempo os rostos encontrados e lembrados, chamam para a verdade de si. Esta é a liberdade. Para cá, vêm jovens que estão em péssima condição. Nós os acolhemos. O financiamento do Estado para cada jovem acolhido é muito reduzido. Infelizmente, a idéia de fundo, sem cor partidária, é de que se trata de pacientes crônicos, e que é preciso mantê-los trancafiados: é a filosofia da redução do dano. Não é importante que melhorem ou que se curem”. Josè para e conversa com Donatella. Ela trabalhava, tem duas filhas. Diz que prejudicou muito sua família com aquilo que fez, e precisa alcançar o perdão deles. Rossella está ao lado. Trabalhava como esteticista, também tem dois filhos, de dezoito e de onze anos. Veio de uma clínica de recuperação. “Lá, era cada um por si; todo mundo puxava um fumo, entre uma sessão e outra com o psicólogo. A gente esquentava a cabeça com o próprio problema. Aqui temos a comunidade: as coisas são encaradas de frente e nos ajudamos. Todos precisam da comunidade”.
No refeitório, preparam a mesa; alguns estão terminando de encher os vidros com mel. Nelson, 25 anos, bom desenhista, se aproxima de Josè. Perdido, prisões domiciliares, a droga. E quatro facadas na barriga, obra do próprio pai. Está vivo por um milagre. Com Josè fala de perdão. Há alguns dias, leram juntos o discurso de Dom Giussani por ocasião da chacina de Nassiryah. “Mas é difícil. Ele me deu quatro facadas”, diz Nelson. Ou Emidio, que arrebentou a cabeça no asfalto depois de um racha de moto. Já passou por várias cirurgias, e há outras a fazer. Hoje participou da colheita de frutas, junto com outros colegas. Esta noite quer terminar de ler a biografia de Fidel Castro, que fica no criado-mudo. Mateus retorna do trabalho; como não estava passando bem, foi ao médico. Seu pai também está muito mal. “Você reza por ele?”, pergunta Berdini. E Mateus: “Sim, do meu jeito”. Josè se levanta: “Não! Porque Jesus veio entre nós. Convém segui-Lo. É mais simples”. Este lugar está longe de ser um depósito de doentes: está cheio de vida e de esperança.

“HÁ ALGO MAIS, ACORDE.” A noite cai em San Michele; o jantar com as quatro famílias, e um pequeno show: Michel e a sua namorad pegam os violinos, acompanhados ao piano por Francesco, e iniciam a performance. “Gosto desta vida”, diz Michel, que, no fundo, veio parar aqui meio sem querer, por escolha dos pais. “Papai sempre me explicou o que é a vida. Eu o ouvi. E lhe sou grato por isso. A música me apaixonava e ainda apaixona, mas entendi que não é tudo. Estes jovens me ensinam a viver: é como se dissessem: A vida não é só isso; acorde! É uma coisa que desejo levar a todos. E quando volto para cá, é como recarregar as baterias, recarregar a vida de significado”.
Essa convivência é útil também para os jovens que estão em recuperação. “Ajuda-os a aprender um modo novo de estar juntos – diz Josè –, a observar uma beleza nova. Como a música clássica, que é sinal da verdade que buscam para si mesmos”. Aquela verdade onde precisamos fincar as raízes, para recomeçar.
Amanhã, às sete horas, a vida recomeça. Café da manhã, um cigarrinho (um por dia) e em seguida cada um parte para o seu trabalho. Também nós devemos partir. Saudações. Parece que conhecemos Josè, Marco, Pino, Giovanni, há bastante tempo... Até vem a vontade de ficar mais um pouco com eles. Saboreando a beleza de tudo aquilo que vimos, olhando de frente a esperança.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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