Ela foi uma das primeiras alunas de Giussani no Berchet. Depois, não se viram por quarenta anos, até que um dia... Quatro anos após a morte de Dom Giussani, Milene Di Gioia conta sobre a extraordinária amizade que marcou a sua história. “Devolvendo-me a fé”
Conheci Milene Di Gioia em 1997: Dom Giussani fez com que eu tivesse contato com ela, para verificar a possibilidade de reunir em um livro uma série de intervenções feitas por ele no decorrer dos anos durante as reuniões com os Memores Domini. Tratava-se de breves comentários aos Salmos, aos cânticos e às orações da Igreja, selecionados por Vera Drufuca. Assim, no ano 2000, foram publicados dois livros: Che cos’è l’uomo perchè te ne curi? (O que é o homem para que cuides dele?, ndr) e Tutta la terra desidera Il tuo volto (A terra inteira deseja o teu rosto, ndr), pela Editora San Paolo, na Itália. Milene revisou a redação dos dois volumes e assinou o prefácio.
Hoje, quatro anos depois da morte de Dom Giussani (falecido em 22 de fevereiro de 2005), aceitou contar algo de uma história que começou nos bancos escolares (Milene começou o ginásio no Berchet, no ano escolar de 1953-54, na sessão C, e teve Dom Giussani como professor) e depois foi interrompida por longos anos, e o fez não sem pudor: “Percebo que reluto em testemunhar sobre um relacionamento antigo e complexo com a figura de Dom Giussani e com seus escritos. A tentativa significa, de fato, um balanço, o reconhecimento daqueles que foram e são os vetores da minha vida”.
Mas, antes de passarmos à entrevista com Milene, vamos ver como Dom Giussani, no início dos anos noventa, falou sobre o primeiro encontro que tiveram, tendo como cúmplice um toca-discos e Beethoven: “Quando eu lecionava no primeiro colegial, para demonstrar a existência de Deus, eu ia da minha casa ao Berchet carregando um toca-disco debaixo do braço (...) e fazia com que escutassem Chopin, Beethoven... Uma das primeiras peças que fiz que escutassem foi um concerto de Beethoven: o Concerto para violino e orquestra em ré maior, op. 61, na interpretação de David Oistrakh (obra que, quarenta anos depois, acabaria na coleção musical Spirto Gentil). (...) Quando os fiz escutar este concerto de Beethoven, onde há o refrain que chamei ‘da comunidade’, quando toda a orquestra entra e há sempre a mesma melodia, depois por três vezes o violino, que representa a singularidade, foge e vai para o seu destino, até que, cansado, é retomado pelo tema melódico da orquestra inteira (que termina também o trecho)..., quando escutávamos a peça, na sala daquele primeiro E [na verdade, tratava-se da sessão C; nde], onde reinava absoluto silêncio, uma moça que estava no primeiro banco, à direita, que se chamava Milena Di Gioia – eu lembro ainda – de repente desatou num copioso pranto, que não parava mais. Deixei-a prosseguir um pouco e depois disse: ‘“Entende-se bem a diferença que existe entre alma e alma, entre sensibilidade e sensibilidade, entre coração e coração; os outros certamente não chorariam’. Por isso, desde aquela época esta peça tornou-se mais significativa para mim. Aquela paixão que o tema fundamental gera – paixão tal que uma sensibilidade como a de Milena a fez desatar num choro –, esta paixão é o emblema da espera de Deus que há no homem” (L. Giussani, É possível viver assim?, São Paulo, Companhia Ilimitada, pp. 249-250).
“Eu não me lembro mais nada dela”, disse um dia Dom Giussani, “quase não me lembro da sua fisionomia enquanto andávamos pelos caminhos. A memória de sua fisionomia congelou-se naquele soluço: vívida, mas congelada ali. Durante quarenta e dois anos, em todas as férias, eu pedia aos meninos para procurarem seu telefone nas listas de todas as regiões da Itália: nunca mais a encontrei nesses quarenta e dois anos.”. (L. Giussani, L’autocoscienza del cosmo, BUR, p.92).
Até aquele dia de fim de março de 1996 o qual, como Camus, podemos chamar de “belo dia”: sua ex-aluna foi encontrada e convidada. “Foram buscá-la às sete e meia e, quando entrou em casa, junto com o grande grupo que estava na porta, não tive dificuldade: era tal e qual! (...) Ontem à noite, contei essa história aos jovens da rua M. e dizia: ‘“Meninos, esperei quarenta e dois anos para rever uma jovenzinha de dezesseis anos. Quarenta e dois anos de busca! E, depois, me digam, por favor, se a virgindade é algo que esquece a mulher. Vocês podem imaginar uma coisa assim? Não, vocês não podem”’. E, de fato, o que tornou possível esperar quarenta e dois anos é uma coisa simples, totalmente positiva, como um dom de Deus, em suma! E, depois, absolutamente gratuito, totalmente gratuito, isto é, sem nenhum tipo de conveniência (Ada Negri, Minha Juventude). Quarenta e dois anos! Digam-me, por favor, se isso não é uma fábula!”. (L’autocoscienza... pp. 93-94). Milene conserva uma imagem muito viva daquela noite de março: “Não sabia bem onde estava indo, e depois, aquela viagem até Gudo por estradas tortas e nebulosas foi uma autêntica aventura. Assim que cheguei, todos fizeram uma grande festa. Senti-me como um filho pródigo que voltava para casa depois de muitos anos”. O fio de uma história, que tinha seguido um percurso subterrâneo por tanto tempo, voltava finalmente à superfície. Milene lembra que “durante uma conversa, logo depois do nosso primeiro reencontro, disse a Dom Giussani: ‘“Quero fazer alguma coisa’”. Em seguida, nasceu o projeto dos livros sobre o qual me referi.
Milene, na memória de muitos membros do Movimento, o seu nome está ligado ao episódio de Beethoven que lembramos. Como você conheceu Dom Giussani e que impressões você teve dele?
É difícil reduzir a um episódio o encontro com ele: a primeira impressão foi a de que já nos conhecíamos há muito tempo e que, então, me falava de Algo que nos aproximava. Em tempos mais recentes, descobri uma expressão repetida por ele, para mim misteriosa e em primeira instância um pouco suspeita: a correspondência à espera do coração. Acho que foi isso o que aconteceu.
O que mais lhe impressionou?
No plano pessoal, duas características me impressionaram: de um lado, a sua energia voltada à ação e ao mundo, de outro, a amabilidade generosa, a ternura sem sentimentalismos ou divagações que movia seu agir.
Durante um programa que o canal de TV italiano RAI dedicou aos oitenta anos de Dom Giussani, um ex-aluno seu, hoje conhecido jornalista e escritor, disse que Dom Giussani queria, de algum modo, apoderar-se da liberdade dos alunos tirando proveito de sua forte personalidade...
No que me diz respeito, posso dizer que uma coisa implícita na sua maneira de nos olhar era essa: a aventura é sua, você é livre! Com Dom Giussani, saboreamos o sentido do desafio que supera a desconfiança em relação ao real e não presume. Agora sei que a sua forma de amor, era a forma mais autêntica do amor: abertura ao mistério e ao destino em última instância bom do outro homem.
O que mais você se lembra de Dom Giussani, no Berchet?
Já na época, com razão, me fascinou a profundidade e a amplitude, o aspecto sapiencial do seu conhecimento, que tornava a linguagem cultural sempre viva e geradora, no impacto direto da escuta. Por exemplo, a música tornou-se para mim mais um fato de comunhão coral que de fruição individual.
Lemos que vocês ficaram sem se ver por quarenta anos. O que aconteceu depois daquela primeira breve experiência em Gioventù Studentesca?
Em todos esses anos de distanciamento, estive empenhada com a família e com a profissão. Até que, um dia, enquanto lia em um jornal algumas notícias sobre a obra de Dom Giussani, tive uma percepção clara e objetiva: não terminou, nos reencontraremos! E fiquei subitamente serena e feliz por essa absoluta certeza – mesmo depois de ter assistido a uma palestra sua no teatro lotado de San Babila, em Milão, no inverno de 1992, sem, todavia, conseguir falar com ele.
Depois, na metade dos anos noventa, vocês se reencontraram. Tente sintetizar em uma frase a história daquele relacionamento. O que você conserva de Dom Giussani?
A consciência de um laço, fundado na adolescência, que se realizou na maturidade dos anos e das provas, dando-me novamente o rosto de Jesus, uma amizade e a fé no “Deus fiel”. Em cada circunstância, nunca me esqueci de confiar n’Ele, para chegar a entender que é Ele quem dispõe de cada circunstância.
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