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Passos N.158, Maio 2014

AMÉRICA LATINA/ ASSEMBLEIA DE RESPONSÁVEIS

Em pleno voo

por Davide Perillo

Um grupo de 350 pessoas, de toda a América Central e do Sul, incluindo o Caribe, se reuniu em março, em São Paulo, para o Encontro dos Responsáveis de CL com padre Julián Carrón. A situação em cada um dos países é dura, mas querem estar à altura das circunstâncias e do próprio desejo. Qual é o caminho?

Para muitos é a primeira vez que veem Dom Giussani em ação, que o ouvem falar. O vídeo de uma entrevista com o fundador de CL é projetado no telão e o tempo voa. É sexta-feira, 14 de março, primeiro dia da Aral, a Assembleia de Responsáveis da América Latina. Julián Carrón, o responsável de CL, acabou de introduzir os trabalhos com essa provocação: “Dom Giussani percebeu muito cedo que o nosso tempo é o tempo da miséria evangélica: a questão não é ‘quem tem razão’, mas, ‘como se faz para viver’. É um desafio que nenhum de nós pode evitar”. E carrega consigo outra pergunta, que dá título ao encontro: “Como nasce uma presença?”. “A presença é original se jorra de uma origem diferente. Que experiência fizemos sobre isso nestes meses?”. E as respostas de Giussani, na gravação de 1987, mostram logo do que se trata. Evidenciam aquilo que o italiano Michele Faldi dirá depois, na apresentação da biografia de Giussani escrita por Alberto Savorana, e ainda não traduzida. Mostra, sobretudo, a origem viva que trouxe aquelas 350 pessoas a este encontro, vindas de toda a América Central e do Sul, incluindo o Caribe.

O chimarrão do Papa. Sherline, por exemplo, veio de lá, das ilhas caribenhas. É a primeira vez que uma haitiana participa da Aral. Tem 29 anos, vive em um dos lugares mais duros do mundo e, no entanto, está radiante enquanto conta que encontrou Cristo quando conheceu uma moça da Fundação Avsi que lia, com três amigos, o livro de Dom Giussani: É possível viver assim?. “Falavam sobre São Paulo, e ela disse: ‘Foi Deus que o procurou, não ele’. Ali, entendi imediatamente que o Senhor está sempre presente na vida do homem. Pensava que isso acontecesse só se o procurássemos. Mas, ao contrário, posso fazer a mesma experiência de Paulo”. Foi assim que tudo começou. Agora, no Haiti, há um grupo de Escola de Comunidade.
Na Assembleia se começa com uma provocação de Julián de la Morena, responsável de CL na América Latina. Há três meses, em Córdoba, na Argentina, a polícia entrou em greve. Resultado: violência, saqueamentos, homicídios. “O Papa convidou os padres a saírem às ruas e beberem chimarrão com as pessoas”. Ou seja, pediu que se fizessem presentes simplesmente levando Jesus. Carrón retoma: “Quem acredita nisso? Quem acredita que isso possa incidir historicamente e responder ao desafio da violência? Quem poderia acreditar no método de Deus que, para mudar a história, chamou apenas um homem: Abrão?”. E assim se iniciam os trabalhos.
Doris, da Colômbia, conta como a doença e a morte da irmã culminaram em perguntas tão fortes que precisou fazê-las também aos seus alunos do ensino médio, antes de retomar as aulas: “Quem sou eu? Por que faz sentido recomeçar todas as manhãs?”. E eles também começaram a se fazer as mesmas perguntas, vivendo. “Começaram a me escrever para me contar as coisas que aconteciam”. Como uma menina de 12 anos que, no meio de um acesso de raiva da mãe, se perguntou: “Ela é só essa raiva? E eu?”. Carrón observa: “Estão entendendo? Ela tem 12 anos. Ela não fez um curso para despertar a sua humanidade. O que aconteceu com ela? O que mudou no seu modo de se colocar? Há um modo de estar presente que faz com que o carisma se perca pelo caminho, e outro, que desperta o eu. É preciso entender essa diferença”. Como é preciso entender o que emerge na impotência dolorosa de Paola, que diante da mãe de um menino assassinado nas ruas de Salvador se vê sem palavras. “Não sabia o que lhe dizer. Pensei que talvez eu não seja capaz de enfrentar uma situação assim, ou não tenha ajuda suficiente”.
Carrón pede para Davide Prosperi intervir. Também está aqui pela primeira vez desde que lhe foi pedido para compartilhar a responsabilidade do Movimento. Ele fala de outro diálogo, com um pai que perdeu o filho em um acidente e meses depois sentia toda a falta e o absurdo aparente de vinte anos de sacrifícios para criar uma vida que terminou em um instante. A resposta podia ser alguma frase “adequada”. Em vez disso, em Davide nasceu uma pergunta: “Se você encontrasse seu filho, aqui, agora, recém-nascido, conhecendo todos os sacrifícios que você citou e já sabendo que iria terminar assim, você faria tudo novamente?”. O homem não pensou nem um instante: “Sim”. E Davide: “Então se pergunte por que”. Carrón diz: “Não bastam as respostas pré-fabricadas para fazer a pessoa crescer. É preciso desafiá-la a olhar para a experiência. A resposta não foi dada por Davide: foi dada por aquele pai a partir daquilo que vivia, e sem um instante de hesitação. É claro que ainda sentirá saudade, mas poderá viver com ela”.

Sem pão ou leite. Cleuza conta sobre o acidente que sofreu em dezembro quando houve a explosão do barco em que ela e Marcos estavam e eles foram internados no hospital. “Os médicos ficaram surpresos com a nossa serenidade. Sentíamos muita dor, mas aquela presença era mais forte. O que o Movimento diz é verdade, eu o vi”. Carrón pergunta: “De onde vem essa força? Esta é uma presença original. Porque faz nascer nos outros uma pergunta: quem são vocês? É a mesma pergunta feita a Jesus”. Alejandro fala sobre a Venezuela: a violência, as prateleiras sem pão ou leite, o desejo de estar “à altura dessas circunstâncias”. E a pergunta que nasceu do impacto com o Evangelho: “Ame o seu inimigo...”. “Isso me desconcertou: se fizessem mal à minha família ou aos meus amigos, como poderia amar o inimigo?”. Carrón responde: “Como a Escola de Comunidade responde a essa pergunta? Quem salva todos os fatores do humano? Só assim entendemos por que Dom Giussani pergunta: quem é Jesus? Somente se crescemos na certeza do relacionamento com Ele, pode ser que nos faça percorrer todo o caminho e cheguemos a amar o inimigo. Nós não somos capazes. Mas, então, qual é a nossa tarefa? Devemos nos unir às barricadas, ficar fora da briga ou gerar uma presença nova? Como isso é possível, hoje, se Cristo não estiver ressuscitado?”. É a questão que Aureliano, que trabalha com pedras preciosas em Bogotá, na Colômbia, coloca: “Tenho me perguntado se Cristo é tudo ou não. Faço-me essa pergunta, mas automaticamente já penso em como as coisas devem ser. E é um engano. Pelo contrário, quero segui-lo naquilo que acontece”. Carrón rebate: “É verdade. Reduzimos Cristo a uma imagem nossa. Mas Ele se manifesta apenas se o seguimos. Não podemos começar já sabendo”.
É fácil pensar que já sabemos. Vemos rostos conhecidos, o mesmo lugar dos anos anteriores. Pensamos em como evitar escrever mais ou menos o mesmo artigo. Mas, depois, acontecem os encontros que mudam tudo. Oliverio, responsável do México, fala sobre o que acontece em Coatzacoalcos, sua cidade. Violenta, como todas as regiões do país, de onde o Estado se retirou deixando espaço para os cartéis da droga. “Há alguns meses, para responder à violência, começamos a propor um gesto: rezar o terço uma vez por mês”. À primeira vista, nada aconteceu. Como o Papa, com seu chimarrão. Mas, na última vez havia 600 pessoas. Uma senhora, no final, foi até ele e disse: “Obrigada, essa oração está mudando o meu modo de viver em casa”. Como se faz para viver? É a miséria evangélica à qual Jesus responde. Carrón retoma isso na palestra da tarde. Em parte, retoma os temas do texto Testemunho e relato (“Página Um”, Passos março 2014) e, em parte, vai além. Mostra como a Igreja, a partir do Concílio, recuperou a sua tradição – e vocação – originária, recolocando em foco um ponto decisivo: a liberdade. “Faz parte da própria natureza da verdade poder ser alcançada livremente, não por imposição”. Retomar esse fio, como fez Bento XVI e faz, agora, Francisco, é voltar ao início, àquilo que é preciso para viver em um mundo que se assemelha muito ao primeiro milênio. Não só porque os valores, “separados de Cristo”, estão caindo um a um, descobrindo um tecido onde nem mesmo as evidências são mais reconhecidas. Os exemplos brotam em todas as partes. Também nos lugares onde a vida vale cada vez menos, em que se trate dos tumultos nas praças, da criminalidade ou da liberalização da droga no Uruguai. O trabalho proposto responde à vida, não aos debates dos jornais.
É possível perceber isso falando com Alejandro e Conrado, 36 e 42 anos. Eles também estão aqui pela primeira vez. São de Cuba e a vinda deles foi uma odisseia de cartas e permissões. Alejandro diz: “Quando encontrei Giussani, encontrei as respostas à ‘dificuldade de viver’ – como diz aquele escritor de vocês, Pavesi –, à dor, e à pergunta que fazia a meu pai quando eu tinha 7-8 anos: o que acontece depois da morte? Ele respondia: nada, deixa-se de existir. Mas, para mim, não bastava”. Depois, aos 25 anos, o encontro com uma família católica: “Fiquei impressionado com o modo como se relacionavam entre eles e comigo”. E, mais tarde, por acaso, a conversa com Conrado, que conheceu CL na Itália e lhe deu de presente o livro O senso religioso. Três semanas depois, Alejandro lhe diz: “Entendi. É aquilo que é preciso para viver. Que outros livros você tem?”. Agora, se faz Escola de Comunidade também em Matanzas. “Desde o dia 22 de fevereiro do ano passado: percebemos, depois, que era o dia do aniversário da morte de Dom Giussani”. O grupo é formado por nove pessoas, incluindo “um professor de Filosofia marxisista aposentado”.

Se o sol se apaga. À noite, o testemunho de Prosperi. Ele conta uma série de fatos nos quais reencontrou “os traços daquilo que me torna cheio de certeza”. Fala sobre o encontro com Giussani, “que comunicava essa certeza afetiva”; sobre a responsabilidade que “não é uma incumbência”, nem uma série de coisas a fazer: “Não é a quantidade de coisas que fazemos que preenche a vida, mas ter presente o objetivo”. Falou sobre como foi tocado por esses dias: “É muito mais do que eu imaginava: estou fazendo uma experiência aqui”. E fala sobre a amizade com Carrón, que é um “olhar juntos as coisas enquanto elas nascem”. Seu testemunho deixa uma marca profunda.
Como a síntese final, que toma como referência as músicas que acabaram de ser cantadas: Razón di vivir e Ojos de cielo. “Para tornar mais leve o peso da vida, para não ter a sensação de perder tudo, o que eu preciso? ‘Que você esteja aqui com os seus olhos claros’. ‘Se o sol que dá a luz se apagasse e a noite escura tomasse a frente’, do quê precisaríamos? ‘Dos seus olhos’, do céu em seu olhar. ‘Porque os seus olhos sinceros são caminho e guia’”. Quais “olhos claros” é preciso encontrar? “Aconteceu na realidade. Na história, aconteceu um fato que introduziu esses olhos irredutíveis a nós, aos nossos sentimentos, às nossas reações. E não são manipuláveis por ninguém. Porque introduzem o olhar de uma Presença totalmente diferente de nós”. Aquela que, no capítulo oitavo de Na origem da pretensão cristã, faz Dom Giussani colocar a pergunta decisiva: quem é Jesus? Disso depende quem somos e a nossa incidência histórica. “Imaginem aqueles pescadores da Galileia que chegavam a Roma só com isso, com os olhos novos. Se João e André estivessem aqui, agora, como defenderiam os valores? Como fez Jesus: deixando entrar esse olhar em tudo o que fizessem”.
Por isso, os desafios que temos diante de nós “são uma ocasião para redescobrir o que é o cristianismo e qual é a nossa tarefa. Sabemos que Cristo ressuscitou porque podemos encontrar essa presença entre nós. Sem estes ‘olhos de céu’ seria ‘abandonado em pleno voo’ na vida”. Assim, é possível viver em qualquer lugar “à altura das circunstâncias”, como colocava Alejandro. E do nosso desejo.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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