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Passos N.159, Junho 2014

DESTAQUE / PAPA FRANCISCO - O PRIMEIRO ANO COM ELE

Seguindo seus passos

por Davide Perillo

“O que Deus está nos mostrando? O que pede que mudemos?”. É essa a pergunta que o Pontificado de Jorge Mario Bergoglio põe para cada um de nós. GUZMÁN CARRIQUIRY, secretário da Comissão para a América Latina, conhece-o muito bem, mas até para ele é uma surpresa contínua. Repercorremos o primeiro ano com o Papa Francisco para descobrir melhor para onde ele está indo

Francisco pode ser compreendido melhor a partir das suas homilias matinais na Capela Santa Marta, olhando o “fluxo contínuo de vida e de admiração” que, através daquelas palavras pronunciadas de improviso, chega a “muita gente que jamais poderia imaginar que ficaria tocada por um Pontífice”. Palavra de Guzmán Carriquiry, 69 anos, casado, quatro filhos, advogado uruguaio que se mudou para Roma em 1971, quando Paulo VI o chamou para trabalhar na Cúria. Foi por vinte anos subsecretário do Pontifício Conselho para os Leigos, há três é secretário da Comissão para a América Latina. Jorge Mario Bergoglio o conhece há muitos anos. Contudo, também para ele o primeiro ano do Papa Francisco foi uma surpresa contínua.

Quais foram os momentos mais importantes?
Elencá-los é uma tarefa longa, foi um ano de densidade e intensidade singulares. Tenho em mente a primeira belíssima aparição no balcão da Basílica de São Pedro, logo após ser eleito; a opção imediata e surpreendente de morar na Casa Santa Marta; a Jornada Mundial da Juventude em Copacabana; seu encontro com os imigrantes – vivos e mortos! – em Lampedusa, a visita a Assis... E depois a criação do Conselho de oito cardeais para ajudá-lo na reforma da Cúria, a entrevista ao padre Spadaro, a Evangelii Gaudium... Porém, apesar de tudo, penso que os momentos mais importantes foram as homilias matinais. Creio que esse magistério quotidiano – um Evangelho sem glosa – é um tesouro precioso que atinge a todos.

Há algo que o surpreendeu em especial nesses meses?
A passagem tão rápida de um momento tenso, dramático, sob certos aspectos até obscuro, como o último período sofrido por esse Pontífice santo e sábio que foi Bento XVI, para o clima de alegria que o novo Papa suscitou. É surpreendente, porque foi quase que imediata. Uma Igreja assediada por meses, e depois, de repente, essa virada. Isso me faz repensar naquelas palavras do próprio Bento XVI: “Não somos nós que conduzimos a Igreja; nem o Papa conduz a Igreja. É Deus quem a conduz”.

O senhor esperava essas mudanças tão repentinas?
Conhecendo-o, um pouco eu as esperava, mas o que estamos vivendo supera qualquer expectativa. É um Papa imprevisível. Não por acaso nos pede que estejamos abertos para as surpresas de Deus, para além das nossas seguranças materiais, espirituais e também eclesiásticas. A pergunta verdadeira que cada fiel deveria se fazer hoje é: o que Deus está exigindo de nós? O que está nos mostrando? O que está pedindo que mudemos através do Pontificado de Jorge Mario Bergoglio? Do contrário, o entusiasmo pode se tornar sentimental. É claro que o contentamento já é um movimento do coração, mas precisa ser aprofundado.

Há um ponto decisivo para ele, que o repete com frequência: é a necessidade de voltar ao kerygma, ao coração do anúncio. Por que é tão urgente?
Ele o diz com propriedade na Evangelii Gaudium, quando convida “cada cristão, em qualquer situação em que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Cristo, ou, ao menos, a tomar a decisão de deixar que Ele o encontre”. Ou quando repete as palavras do Papa Bento XVI que levam ao centro do Evangelho: “No início do ser cristão não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, com isso, a direção decisiva” (Deus caritas est, 1). Antes de tudo, a urgência de recentrar-se no kerygma é o que o próprio Jesus nos entregou como mandato apostólico, justamente como adverte nas primeiras pregações de Pedro. Também nasce do fato de que a Igreja, em seu peregrinar, sente a necessidade de retornar sempre ao coração do anúncio, que é a fonte de qualquer reforma. E mais, em Francisco há a convicção alegre e firme “de que a verdade cristã é atraente e persuasiva, porque responde às necessidades profundas da existência humana”. Enfim, porque o exige a radicalidade do Evangelho, que para um mundo descristianizado pode se tornar sinal de contradição, mas sabe chegar aos corações como uma novidade inesperada.

A consequência é o apelo ao testemunho. Se a fé é uma atração, transmite-se antes de tudo através de testemunhas, não de discursos...
Recordo que Bergoglio ficou muito impressionado quando o Papa Ratzinger, na homilia da missa de abertura da Conferência dos Bispos latino-americanos, em Aparecida, em 2007, disse que a fé não se transmite por proselitismo, mas pela via da atração. Esse ponto foi retomado muitas vezes por Francisco, a partir do seu primeiro grande discurso programático, aos Bispos brasileiros. É preciso uma Igreja que, “abandonando toda mundanidade espiritual”, dê mais espaço ao mistério de Deus, porque “somente a beleza de Deus pode atrair. Ele desperta no homem o desejo de guardá-Lo na própria vida, na própria casa, no próprio coração. Deus desperta em nós o desejo de chamar as pessoas próximas, para dar-lhes a conhecer a sua beleza”. O que é a missão se não a comunicação do dom do encontro com Cristo? Quando as pessoas encontram um verdadeiro testemunho cristão, sentem “a necessidade de que fala o profeta Zacarias: Queremos ir convosco”. Claro, é preciso uma Igreja que em sua vida torne luminosa a presença de Cristo, não obstante a opacidade dos próprios limites. Mas essa é a segunda pergunta crucial que ele põe a cada um de nós na Evangelii Gaudium: quanto e como tornar transparente a presença d’Ele na nossa realidade?

De onde vem, ao invés, a insistência sobre a pobreza, sobre uma Igreja “pobre e para os pobres”?
Já o dizia São João XXIII, justamente antes do Concílio Vaticano II: “A Igreja se apresenta tal como é e como quer ser, como a Igreja de todos e particularmente a Igreja dos pobres”. Mas essa dimensão evangélica não tomou grande peso no evento conciliar porque a Europa do boom econômico, na época, ainda pesava muito. Penso que foi uma grande contribuição da Igreja latino-americana a toda a Igreja retomar, no magistério e na vida, essa conotação essencial do Evangelho, sempre presente na tradição. Então, a consciência disso em Francisco nós a vemos concretamente: quando lava os pés no presídio para menores de Roma, quando visita Lampedusa após o naufrágio que matou dezenas de imigrantes que clandestinamente tentavam entrar na Europa por esta ilha italiana, nos gestos de ternura com os doentes... É o Evangelho vivido. O Papa repete sempre que essa é a atitude do discípulo, isto é, da testemunha de um Deus que, sendo rico, torna-se pobre até chegar ao inverossímil. É no mistério de Cristo, na Sua encarnação, que se baseia o amor aos pobres. Sem esse fundamento, degenera numa redução moralista do fato cristão. Ou a Igreja torna-se “semelhante a uma ONG” filantrópica, lembra o Papa, ou termina por ser presa de formas de ideologização política.

Parece que a única condição exigida para estar em sintonia com o anúncio radical de Francisco seja justamente a pobreza de espírito: uma lealdade com a própria necessidade e com a própria “humanidade ferida”. E é uma possibilidade para qualquer um, para além das posições culturais, dos pré-conceitos ou das ideologias...
Penso que o Papa estaria de acordo com isso. De fato, estamos num mundo de feridos. Basta ampliar o olhar: indiferença e confusão sobre o sentido da vida, dissolução dos vínculos de pertença, isolamento, solidão... Mas é também um modo de aprofundar o olhar sobre si mesmo, sem redes de proteção: somos vítimas da nossa autossuficiência, do egoísmo e da soberba; escravos das idolatrias do dinheiro, do poder, do prazer efêmero, do intelectualismo sem sabedoria. Todos nós somos criaturas feridas pela vida, e, por isso, necessitados; sempre à procura, na espera, com aquela inquietude de um coração jamais satisfeito... Somos necessitados, sobretudo, de um olhar pleno de misericórdia como aquele experimentado pelo próprio Papa quando se define como “um pecador para o qual o Senhor voltou o seu olhar”. Por isso, propõe a Igreja como “hospital de campo”, no qual o melhor remédio para as feridas da alma é a misericórdia. E depois, veja, este Papa tem um coração voltado para os distantes. Olha as noventa e nove ovelhas que foram embora, e não a única que permanece no curral. Pede para sairmos ao encontro delas. Muitos cristãos agem como o irmão mais velho do filho pródigo, e se enrijecem, mas ele busca os distantes. E sabe que precisa abraçá-los com grande amor misericordioso, sem discriminações preventivas. Nem do ponto de vista moral.

Outra questão: as polêmicas sobre os “valores não negociáveis”. O Papa está excluindo muitos deles, mesmo entre os cristãos, pelo apelo àquele anúncio “último”, que vem antes das verdades “penúltimas”. Cristo vem antes dos valores. Muitos o acusam de estar baixando as armas diante do mundo. Isso é verdade?
Não é assim! Foram as campanhas midiáticas, a obra dos vários “lobbies” e a discussão de propostas de lei sobre a vida e sobre a família, que existem um pouco por toda parte, que fizeram com que as intervenções da Igreja sobre os “valores não negociáveis” se tornassem muito frequentes e ocupassem um destaque, às vezes, excessivo. Corremos o risco de passar uma imagem de Igreja mais preocupada com princípios e leis do que com o cuidado das almas. O Papa começou com essa preocupação: se quisermos atrair as pessoas para Deus, não poderemos partir dos “nãos”. E nem daqueles “nãos” óbvios numa Igreja que sabe que não pode negociar nada do que é substancial na doutrina. Por outro lado, a respeito disso há também uma certa estratégia e, por isso, tem se falado sobre esses temas mês a mês, cada vez com mais força. Se alguém observa quantas vezes, por exemplo, ele defendeu a vida, encontra expressões muito poderosas: diante dos embaixadores, por exemplo, o Papa falou do “horror do aborto”. Porém, ele o repete com frequência: o discernimento implica sempre saber quando falar e como falar, segundo cada contexto. Ele agora pode falar com força sobre qualquer assunto, mesmo provocando resistências, porque não poderá ser agredido como restaurador.

Que juízo o senhor faz sobre esses primeiros passos na reforma da estrutura da Igreja? Em sua opinião, que linha tomará?
Francisco gosta de recordar, com frequência, aquela resposta de Madre Teresa de Calcutá ao jornalista que lhe perguntava por onde começar a reforma da Igreja: “Por mim e por você!”. Ele está reformando a Igreja “in capite et in membris”, na instituição e nas pessoas. Não há reforma verdadeira sem uma corrente de santidade e sem conversão. O Papa nos pede isso.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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