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Passos N.159, Junho 2014

SOCIEDADE/ FUTEBOL

A beleza e as contradições da Copa

por Rafael Marcoccia

Tudo está pronto para uma grande festa! A Copa do Mundo no Brasil vai mobilizar milhares de pessoas e mexer com os sentimentos das nações. Em meio a insatisfações com o poder público, a possibilidade da convivência entre os povos

A Copa do Mundo vai começar. O Brasil já entrou em contagem regressiva. Faltam poucos dias. Sessenta e quatro anos depois, sediaremos um novo Mundial. Podemos gostar ou não de futebol, mas não há como passar imune à Copa. Os jornais dedicam cadernos especiais ao evento, especialistas projetam quem tem chance de ganhar e quem vai fazer feio, e as páginas de internet destacam qualquer assunto com o mínimo de relação com a Copa... A conversa na escola, no trabalho e na família vai sendo dominada por assuntos futebolísticos. Os bolões são feitos. Muitas crianças e adultos – pelo menos os mais atrasados – ainda correm nas bancas ou tentam trocar as últimas figurinhas para completar seus álbuns. Algumas bandeiras e fitinhas já são vistas em automóveis e nas janelas das casas.
Tudo está pronto para uma grande festa! Sim, serão trinta dias, praticamente ininterruptos, de bola rolando, de belas jogadas e de gols. As oito seleções campeãs mundiais estarão presentes na mesma Copa, algo inédito em sua história. Os principais astros da bola estarão desfilando em nossos gramados, com exceção do sueco Ibrahimovic e do galês Bale.
Essa grande festa promete! Ainda mais por ser no Brasil, que o mundo todo convencionou chamar de “o País do futebol”.
Passos também tem algo a dizer sobre esse evento.

O futebol e a Igreja. Atualmente, quando se pensa na relação entre Igreja e futebol, alguns remetem ao Papa Francisco, conhecido amante do esporte, que ainda é sócio-torcedor de seu time, o San Lorenzo, da Argentina, e já fez em suas intervenções várias analogias da fé cristã e da postura humana com o esporte bretão. Como quando ele disse que para resolver os problemas da vida é preciso encarar a realidade preparados, como o goleiro de um time de futebol, impedindo a entrada da bola de onde quer que ela chegue (Homilia, 13 de abril de 2013).
Mas a relação entre Igreja e futebol é muito mais antiga e estreita do que muita gente imagina, inclusive muitos dos apaixonados por este esporte. Em um livro chamado Visão de Jogo: primórdios do futebol no Brasil, o historiador José Moraes dos Santos Neto aborda como o futebol se iniciou no Brasil, com vasta documentação (fotos, atas, documentos escolares, diários de alunos e professores). No Estado de São Paulo, de 1879 a 1881, os jesuítas do Colégio São Luís da cidade de Itu, interior de São Paulo, visitaram grandes colégios na Europa a fim de conhecer experiências interessantes para introduzir práticas esportivas em seus colégios, “para que todos os músculos funcionassem harmoniosamente, enquanto as lições morais do espírito esportivo seriam absorvidas por meio de jogos divertidos e recreativos” (p. 14).
Na França, estiveram no Colégio de Vannes, onde já era praticado o futebol, e lá fizeram contato com o padre Du Lac, grande defensor da introdução do futebol inglês nas escolas. A seu ver, esse esporte reunia virilidade e moral na medida certa, formando jovens saudáveis e bons cidadãos.
Na Inglaterra, aceitando uma recomendação do padre, os jesuítas de Itu conheceram o futebol jogado na Harrow School. Depois foram à Alemanha, onde os educadores utilizavam o esporte em paralelo à ginástica alemã. É importante notar que em várias regiões da Europa também haviam sido os jesuítas os pioneiros na introdução do futebol, como fora o caso do Colégio Jesuíta de Utrech, núcleo disseminador desse esporte na Holanda.
De volta ao Brasil, os jesuítas introduziram o futebol em seus colégios. Enxergavam nele uma ferramenta de apoio pedagógico. Já em 1894, o novo reitor do colégio foi o padre Luís Yabar, conhecedor profundo da história e das regras do esporte. A partir daí, o futebol deixou de ser uma brincadeira e a prática do esporte se tornou mais organizada. Os jesuítas inclusive estabeleceram o título simbólico de craque de futebol para o aluno que mais se destacasse durante as partidas.
Em 1895, o ganhador foi o aluno Arthur Ravache, que dois anos depois começaria sua atuação como um dos pioneiros do futebol nacional. Vários ex-alunos do São Luís o levaram para o interior e para a capital paulista, depois para Uberaba e para o Brasil Central, assim como para o Nordeste, especialmente para a Bahia.
E Charles Miller, considerado o “pai do futebol brasileiro”? Ele iniciou, em 1894, sua prática em um clube. O esporte saiu dos colégios e assumiu um caráter explicitamente competitivo – o que tornou o conhecimento de suas regras mais difundido. Mas o futebol já era praticado em vários colégios brasileiros, a maioria deles dirigida pelos jesuítas.

O caráter integrador da Copa do Mundo. Um aspecto importante que o futebol traz – e a razão inicial de os jesuítas terem-no introduzido no Brasil – é a sua proposta original de reunir as pessoas. Também esta é a proposta da Copa do Mundo: integrar todos os povos. Em nosso País, o Mundial, é uma das poucas ocasiões em que as pessoas se sentem pertencentes a um povo, com uma identidade clara e um orgulho do País. Uma manifestação interessante disso – e que certamente veremos em nossos estádios – é, em jogos do Brasil, a torcida brasileira cantar com força e firmeza o hino nacional completo, à capela, mesmo depois de a música ser interrompida por conta do protocolo da Fifa.
O futebol, além disso, pode sempre ser vivido como um espaço para encontros, laços de solidariedade e de admiração pelas virtudes do outro. São João Paulo II dizia que “o sentido da fraternidade, a magnanimidade, a honestidade e o respeito pelo corpo, virtudes sem dúvida indispensáveis a todo bom atleta, contribuem para a edificação de uma sociedade civil, em que o antagonismo é substituído pela competição, em que ao confronto se prefere o encontro e, à contraposição rancorosa, o confronto leal. Desta forma, o esporte não é um fim, mas um meio; pode tornar-se veículo de civilização e de genuíno entretenimento, estimulando a pessoa a dar o melhor de si e a evitar o que pode ser perigoso ou de grave prejuízo para si ou para o próximo” (Discurso aos participantes no Encontro Internacional do Jubileu dos Esportistas, 2000).
Ao receber, no começo de maio, dois times italianos que disputariam a final da Copa da Itália, Papa Francisco lembrou: “Quando garoto, eu costumava ir bastante ao estádio, eu tenho lembranças felizes. Foram momentos alegres, nos domingos, com minha família. Espero que o futebol e o esporte em geral retome esta noção de celebração”.
Mas é evidente que essa Copa não traz apenas as experiências positivas. Como bem reconheceu São João Paulo II no mesmo Jubileu dos Esportistas, “(...) ao lado de um esporte que persegue ideais nobres, há outro que só recorre ao lucro; ao lado de um esporte que une, há outro que divide”.

Os problemas. Não podemos deixar de lado o custo e a maneira como foi conduzida a organização do Mundial. Das 41 obras de infraestrutura listadas nas 12 cidades-sedes da Copa – o legado prometido que o evento traria ao País – apenas cinco foram concluídas até meados de maio e pelo menos sete não ficariam prontas de jeito nenhum (Documento Oficial Matriz de Responsabilidade da Copa). Fica a sensação para significativa parte da sociedade brasileira de que o País está perdendo uma oportunidade de avançar nesse aspecto.
Além disso, as obras de todos os estádios nas 12 cidades-sedes tiveram custo estimado de R$ 8,9 bilhões, 97% de verbas públicas (o valor e a porcentagem foram obtidos do último relatório do Comitê Organizador Local, de março de 2014). Além disso, há estádios que correm o risco de se transformarem nos chamados “elefantes-brancos”: em localidades que não contam com clubes de tradição no futebol brasileiro, sem torcida suficiente para lotar a capacidade das instalações. São investimentos que correm pelo ralo, fora de propósito e distantes das prioridades do povo. No fundo, visou-se muito mais a possibilidade de ganhos políticos e não a racionalidade econômica do investimento.
Sobre isso, Papa Francisco afirmou no começo de maio: “Futebol é um grande negócio agora por causa da publicidade, da televisão, etc. Mas o fator econômico não deve prevalecer sobre o esportivo, porque assim corre-se o risco de contaminar tudo”.
A consequência desses problemas é que parcelas da sociedade se frustram por identificar as ações do Governo ao organizar o Mundial não como investimentos que geram retornos econômicos e sociais no futuro, senão como gastos mal planejados que tiram recursos os quais deveriam ser utilizados na educação, na saúde, no transporte, na habitação, na segurança...

Possibilidades de se viver o futebol. De toda forma, é um alento verificar que um grupo grande de pessoas não tolera mais o mau uso do dinheiro público e uma postura política dominante cada vez mais distante da sociedade, que não serve ao País, mas se serve dele. Isso significa que ao contrário do que muita gente diz, o futebol pode sim ser vivido de uma forma não alienante. Dois fatos recentes, em especial, nos chamam atenção para isso.
Em primeiro lugar, a sociedade brasileira tem demonstrado sua insatisfação por meio das manifestações contra o planejamento mal feito pelo Governo – tanto o federal quanto os estaduais – e pela má utilização do dinheiro público na organização da Copa. Mesmo que muitas manifestações carreguem o lema “Não vai ter Copa”, pode-se perceber muitas pessoas que se manifestam não contra o evento em si, mas contra como ele está sendo organizado. Por isso, mesmo quem gosta muito de futebol muitas vezes apoia esses protestos – bem diferente das imagens feitas de que os amantes desse esporte são ingênuos ou despreocupados com as questões sociais.
Outro fato de como o futebol pode ser vivido de maneira não alienante é a reação da nossa sociedade no tema do racismo. Nos últimos cinco meses, profissionais do futebol brasileiro foram vítimas do crime: Tinga, do Cruzeiro; Arouca, do Santos; Marino, do São Bernardo; Assis, do Uberlândia, além do árbitro gaúcho Márcio Chagas da Silva. Outro caso, que chamou muita atenção, no final de abril, foi o de Daniel Alves, do Barcelona e da seleção brasileira, que pegou a banana atirada contra ele durante uma partida válida pelo campeonato espanhol e a comeu. Seu gesto rapidamente se espalhou pelas redes sociais e uma campanha contra o racismo ganhou o apoio de milhares de torcedores de todo o mundo, em especial dos brasileiros, que publicavam suas fotos comendo uma banana – inclusive vários artistas entraram na campanha. As reações contra o racismo são uma mostra de que os torcedores se dão conta da dignidade que toda pessoa possui, independente da cor da pele, reconhecendo o outro como alguém estruturalmente igual.
Concluindo, podemos viver o futebol e a Copa do Mundo de duas maneiras. Uma delas é reduzir a Copa do Mundo apenas aos seus problemas. É evidente que há questões sociais urgentes que merecem a devida atenção e luta por melhorias. É evidente que o dinheiro público deveria ter outras prioridades. É inadmissível que não olhemos para isso. É claro que o “padrão Fifa”, que nos últimos tempos adquiriu o significado de qualidade, deve estar presente em todos os serviços para a sociedade.
Porém, a outra postura é partir da hipótese positiva, porque só assim somos capazes de olhar para todos os fatores em jogo – quando partirmos da hipótese negativa, só enxergamos aquilo que já queremos enxergar e não colhemos muitos outros dados que a realidade nos diz. É preciso usar a razão de maneira adequada, encarando os fatores negativos e positivos, sem jogar nada fora. É preciso ter o olhar da escritora Adélia Prado, que em entrevista ao Estado de S. Paulo (06/12/2013) quando perguntada em que momento a realidade quotidiana se mostra como maravilhamento e em que momento não passa de mera realidade, afirmou: “Quando olho a pedra e vejo pedra mesmo, só estou vendo a aparência. Quando a pedra me põe confusa de estranhamento e beleza, eu a estou vendo em sua realidade que nunca é apenas física. A aparência diz pouco”.
Quer dizer: todos os problemas políticos, sociais e econômicos que a organização da Copa do Mundo trouxe ao longo desses anos, e são justamente criticados por muitos, machucam, sim, o amante desse esporte. Mas não podemos negar que a experiência da Copa traz coisas boas também. É por isso que ela igualmente pode trazer inúmeras alegrias.
O torcedor de futebol é como qualquer pessoa: quer ver brilho, quer ver talento, quer ver improviso, quer ver invenção. Sem a centelha do imprevisível, sem aquele drible genial, sem o gol de placa, nada feito. O torcedor de futebol quer encontrar quem está do seu lado e torcer junto com ele, ou mesmo brincar com o torcedor adversário. O torcedor de futebol quer compartilhar com o outro suas alegrias e tristezas. O torcedor de futebol vive de momentos de bem e de beleza. E que muitos deles possam acontecer na Copa do Mundo!

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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