No sertão de Pernambuco e da Paraíba a morte é chamada “Caetana”. E Ariano Suassuna foi ter com ela no dia 23 de julho de 2014. Experimentei um misto de profunda tristeza e de imensa gratidão. O reconhecimento de um caminho feito, da graça da beleza e da amizade possível, da utilidade mesma da vida.
Eu tinha 20 anos quando conheci Ariano Suassuna, em Recife. Foi durante uma grande aula-espetáculo, com participação de grupos de maracatu e frevo, com música armorial, com painéis de arte rupestre, xilogravuras, pinturas, trechos de poesias de cordel e repentes. Fui tomada de um maravilhamento que jamais esqueci e sou capaz de descrever cada momento ali presente. Ariano, na ocasião, lançava o “Projeto Cultural Pernambuco-Brasil” planejado para os quatro anos do então governo de Miguel Arraes, no qual assumiu o cargo de Secretário de Estado de Cultura.
Ariano dizia que não era um homem político, mas um escritor com preocupações políticas com seu país e seu povo. Para uma jovem sedenta como eu, seguir um escritor assim foi fácil. Não à toa, acabei escolhendo a cultura popular como tema de meus estudos na universidade, de militância política, e direcionando meu trabalho como antropóloga e produtora cultural. Atualmente dedico-me inclusive a projetos que contavam com a participação de Ariano.
Apaixonado pela vida que era, Ariano preferia a beleza e a esperança como respostas à finitude do viver. Ao lado dele, bem como em suas obras (que foram muitas, em forma de teatro, romance, poesia, prosa, ensaio, aulas, discursos, entrevistas...), aprendi mais sobre o maravilhoso contido no cotidiano. Não apenas como coisa de espetacular (apesar de conter também essa face que encanta), mas como aquela noção de Infinito contido no finito de tudo o que é belo.
Nas últimas vezes em que estive com Ariano, ele recitou sempre o mesmo poema: Padrão, de Fernando Pessoa. Por sorte do destino, é o único poema que sei de cor e assim, ajudava-o a lembrar partes momentaneamente esquecidas, fazendo-me sentir próxima daquela beleza em comum. No poema de Pessoa, a viagem do navegador português à procura do caminho para as Índias, pela costa da África, era marcada pelos padrões, ou marcos, lugares que sinalizavam um importante e difícil trecho percorrido e abriam a possibilidade de seguir adiante.
“O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
Que faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.”
Pode ser uma ousadia minha dizer isso, mas no fundo penso que Ariano experimentava e expressava com toda força e beleza essa dimensão do desejo que nos constitui a todos, e carregava a certeza de que somos feitos para este Infinito. Como ele mesmo citou, numa entrevista em dezembro de 2013, quando perguntado sobre a conclusão de seu último livro: “o por-fazer é só com Deus”.
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