Após receber os holofotes da imprensa que mostrou a devastação da ilha pelo terremoto de janeiro de 2010, a atenção sobre o Haiti está diminuindo, os financiamentos também. Porém, há uma vida silenciosa que pulsa gerando beleza também ali
Pelo segundo ano, fui visitar os amigos do Movimento que vivem no Haiti e República Dominicana e, além de participar dos Exercícios Espirituais da Fraternidade de CL, dediquei alguns dias para ficar com eles. Não é fácil viver no Haiti. Ele é o país mais pobre das Américas, assolado em 2010 por um terremoto catastrófico (cerca de 220.000.mortos, mais de 300.000 feridos, mais de 1,5 milhão de desabrigados). Ainda é muito dependente da ajuda internacional, sofrendo com a ação de gangues e episódios de violência urbana.
Não é fácil encontrar-se, sair para comer juntos, fazer um passeio. Cada gesto, que na experiência do Movimento em outros países é coisa normal, ali é uma conquista. Porém, na dureza desta realidade, vão acontecendo belas experiências de encontro e esperança.
Ao chegar ao aeroporto de Porto Príncipe, fui surpreendida com a presença do Giacomo (italiano do Movimento que trabalha para a Fundação AVSI) e do Crisner (motorista da AVSI) que me levaram para a casa da Irmã Marcella Catozza, missionária franciscana, que mora há oito anos no país, na favela Waf Jeremie, a maior e mais violenta favela da cidade, que chegou a ser definida como “um depósito de lixo”.
A região é controlada por gangues rivais que se enfrentam e, diferentemente do que acontece em muitas favelas brasileiras, frequentemente ameaçam também aqueles que realizam trabalhos sociais com a população pobre (ver “O desafio do Haiti três anos depois”, Passos, nº148, maio 2013). Mas ali, em meio a todas as dificuldades, é impossível não se comover com a beleza da obra que Irmã Marcella está construindo.
A obra, denominada de Vilaj Italyen, consiste em um Orfanato que, atual mente, tem 70 crianças (sendo a maioria com menos de 4 anos); uma Casa de Acolhida para voluntários; uma Clínica (que atende cerca de 150 pessoas por dia); uma Enfermaria (que atende as crianças do Orfanato); uma Escola de Ensino Fundamental (que possui cerca de 300 crianças); uma Creche em construção (que atenderá 160 crianças), um espaço livre onde será construído um campo esportivo; uma Capela e uma área destinada à casa da Irmã Marcella.
Durante minha permanência, pude perceber que as sementes plantadas no ano passado se transformaram em jardins com árvores e flores. Pensei logo na Beleza de Cristo. O impacto que tive ao chegar nesta obra também é o mesmo que acontece com outras pessoas que visitam Waf Jeremie. Irmã Marcella nos disse que até o Presidente do Haiti, ao sobrevoar a região e conhecer a sua obra, ficou marcado e decidiu investir na região construindo um projeto ao lado.
Durante os dias que passei na obra, conversando com as mulheres que cuidam das crianças do Orfanato, a lavadeira, a responsável pela limpeza, os vigias, o motorista, os professores, as italianas voluntárias e as enfermeiras, dei-me conta de como é verdade que temos o mesmo coração. Cresceu em mim o desejo de dominar a língua deles para poder compartilhar mais as nossas experiências e ser um instrumento nas mãos de Deus.
No domingo à noite, Irmã Marcella projeta vídeos infantis para as crianças do Orfanato. É impressionante ver como ficam atentas, elas que anteriormente moravam em barracos de zinco sem energia elétrica. Outro fato marcante é a possibilidade de ver algumas dessas crianças entrarem em silêncio na Capela para participarem da Missa ou das Vésperas.
Dentre essas crianças está Bonny, de 12 anos. Ela o encontrou na rua, onde passou a morar após ser expulso de casa. Ao ver seu amigo morrer atropelado por um caminhão, ele aceitou o convite da Irmã Marcella para ir morar com ela. Geralmente, ele acorda para as Laudes, às 5h30, e vai à missa das 6h com Irmã Marcella e as voluntárias. Durante a semana em que estávamos lá, a missa era celebrada às 7h na Capela, e ele estava sempre ao lado do padre Emílio, espanhol que me acompanhou nesta visita. Bonny me ensinou a pronunciar as palavras do Angelus em Crioulo, o idioma falado pela população da ilha. Ele gosta muito de cantar e de tocar instrumento de percussão e procura cuidar das outras crianças.
Naqueles dias estavam realizando uma Colônia de Férias com jogos e brincadeiras, músicas e poesias. Para tanto, os alunos (de todas as idades) e professores foram divididos em equipes nomeadas de acordo com as seleções da Copa do mundo. Participando de alguns momentos, fiquei marcada pelo envolvimento entre os alunos e os professores. Tais professores, ao mesmo tempo em que eram vistos como autoridade, valorizavam cada criança, se colocavam ao lado delas para realizarem as tarefas e tentarem vencer o campeonato.
Sherline e Yvenet. Um momento importante desta viagem foi a reunião pré-agendada com Dom Guire Pourlard, o Arcebispo do Haiti. Padre Emílio sugeriu que estivessem presentes conosco a Irmã Marcella e os haitianos Sherline e Yvenet. Inicialmente, padre Emílio nos apresentou, comentou sobre Comunhão e Libertação, Dom Giussani, padre Carrón e sobre a presença do Movimento no Haiti. Ao entregar os três livros de Dom Giussani que formam o percurso educativo do Movimento (O senso religioso, Na origem da pretensão cristã e Por que a Igreja) para o Arcebispo, padre Emílio comentou que estávamos disponíveis para segui-lo, obedecê-lo e participarmos dos gestos propostos pela Igreja.
Em seguida, diante de uma pergunta de Dom Guire, Sherline testemunhou o seu encontro com a experiência do Movimento e descreveu as mudanças que aconteceram na sua vida após esse encontro, no que se refere ao relacionamento com as pessoas que encontra no trabalho, com sua família e quanto ao seu relacionamento com Cristo.
Ela encontrou o Movimento há quatro anos, numa tarde em que estava no local onde Gloria, uma ex-funcionária italiana da Fundação AVSI no Haiti, almoçava com três amigos. A partir da conversa com eles, deu-se conta de que o Senhor está sempre presente na vida do homem, enquanto ela, antes, imaginava que Ele estaria presente somente quando o procuramos. E percebeu que ela também poderia fazer essa experiência de estar perto Dele.
Começou a olhar para as pessoas de outra forma. Os colegas não eram mais apenas colegas, mas pessoas, com seu próprio valor. Através deles, o Senhor podia estar presente. Antes, não tinha boas relações com sua família. Pensava que ela colocava obstáculos à sua liberdade porque não podia fazer aquilo que queria. Depois de ter trabalhado o capítulo sobre a liberdade, entendeu que a sua liberdade é outra coisa e que sua família é uma ajuda e não um empecilho. Antes, escolhia as coisas pelas quais se interessar, onde colocar sua atenção. Se não gostava de algo, parava. Agora, tudo lhe interessa. Esta não é uma experiência fácil de se fazer no Haiti, onde a realidade muitas vezes parece apontar muito mais para a negatividade do real.
Yvenet também descreveu o significado do Movimento para ele. Comentou sobre o fato de que, no início do ano, havia se separado da esposa, mas ao continuar o trabalho proposto na Escola de Comunidade sobre o capítulo 8 do livro Na origem da pretensão cristã, ele ficou tão fascinado que teve o desejo de compartilhar as suas descobertas com a ex-esposa. Ela, por sua vez, ficou curiosa para saber onde ele estava aprendendo aquelas coisas e, assim, eles passaram a ir juntos aos encontros. Ao reconhecer a importância de viver aquelas coisas junto com a esposa e os filhos, Yvenet decidiu voltar a viver com sua família.
Diante desses testemunhos, os olhos do Arcebispo brilhavam. Três dias depois, Yvenet estava na Cúria para resolver uma questão pessoal, e um padre veio ao seu encontro dizendo que o Arcebispo havia comentado sobre o encontro conosco e que gostaria que o Movimento CL fosse apresentado aos jovens de diversas paróquias de Porto Príncipe. De fato, esse encontro foi uma grande provocação para todos nós!
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón