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Passos N.163, Outubro 2014

DESTAQUE / Sínodo da família

As consequências do belo amor

por Davide Perillo

A partir de 5 de outubro, os Bispos do mundo todo vão se encontrar em Roma para discutir a família. E no ano que vem, outra edição sobre o mesmo tema. Por que o Papa está tão preocupado com o assunto? O que está em jogo, além das questões de moral e doutrina? Fizemos essas perguntas ao Cardeal ANGELO SCOLA. Que parte de um fato: “A vida é uma resposta”

O “belo amor”, chama-o assim o Cardeal Angelo Scola, com uma expressão tomada de empréstimo da sabedoria bíblica. Resumindo, em duas palavras, páginas inteiras de antecipações e comentários, inclusive entre prelados. Todos tendo como objeto o próximo Sínodo dos Bispos sobre a família, que, ao se ler determinadas colunas da imprensa, pareceria destinado a enfrentar quase que somente questões éticas e jurídicas, como a comunhão dos divorciados ou a reforma da Sagrada Rota. Ao invés, será a ocasião para aprofundar “um tema que preocupa muito a Igreja, porque se trata de redescobrir o valor antropológico da experiência afetiva”. Palavra do arcebispo de Milão, que a esses temas dedicou diversos ensaios como teólogo, mas sobretudo os vê diante de si, em carne e osso, como pastor.
A reunião abre-se no dia 5 de outubro, com o Sínodo extraordinário, no Vaticano, que terá sequência no próximo ano. E, nos meses passados, nas dioceses do mundo todo, foram recolhidas opiniões, reflexões, testemunhos que levaram ao Instrumentum laboris, o texto de preparação.

Eminência, por que esse Sínodo é tão esperado?
Sobre a questão dos afetos está em curso, há pelo menos vinte anos, uma radical transformação de comportamentos. Basta olhar para o modo como vivem essa dimensão não só os adultos, mas também os jovens, partindo do ensino médio. A Igreja quer convidar a todos para refletir sobre essa pergunta: qual é o verdadeiro significado da dimensão dos afetos e do amor na vida do homem e da mulher? O que é apresentado como um clima de liberdade, em que vige o critério “faça o quiser, inclusive no campo sexual”, é na verdade adequado ao crescimento da pessoa, à perspectiva de felicidade das mulheres e dos homens? Essa é a verdadeira razão dos dois Sínodos. Para discutir questões éticas ou problemas levantados pela bioengenharia genética, que são de grande importância porque podem dar a essa transformação dos comportamentos uma marca irreversível, é preciso aprofundar um fator que vem antes. E a Igreja ocupa-se com isso porque é, por sua própria natureza, um sujeito educativo.

Pelos trabalhos preparatórios emerge o que o senhor chama de “defasagem significativa” entre as afirmações da Igreja, mesmo quando continuam a ser vistas como um ideal, e a experiência real da maior parte dos homens. Por que essa distância?
Digamos, antes de tudo, que a fragilidade humana neste campo sempre existiu. A Igreja sabe disso, e sempre respondeu propondo a verdade e a plenitude da experiência do “belo amor”. Distinguindo o pecado do pecador, sendo muito compreensiva com o pecador, mas pondo-o frente à sua responsabilidade e exigindo dele passos precisos para a reconciliação e o amadurecimento. Só que, nestes últimos tempos, as coisas mudaram muito.

O que mudou?
Mudou o costume. Os comportamentos, hoje, são claramente exibidos em nome de uma concepção da liberdade entendida como descompromisso em relação a qualquer vínculo. E, então, coisas que antes pareciam inaceitáveis – e que talvez até certos cristãos ajudaram, com sua rigidez, a tornar mais espinhosas –, são apresentadas como uma libertação.

E, no entanto, o “belo amor”, o fascínio e o desejo do “para sempre”, é conatural ao humano. Como se perdeu essa estrada?
Agora tenho uma certa experiência como Bispo, encontro com frequência os namorados. Conversando com eles, percebemos que não foram muito ajudados a ver a dimensão profunda do amor. Não só por responsabilidade dos homens de Igreja. Tem muito peso também a pressão da opinião pública, a mídia... Mas muito frequentemente se insistiu sobre o “você deve” sem motivá-lo, sem dar-lhe as razões. Sem explicar que esse dever nasce da beleza da relação intrínseca entre a afeição que abre para o dom de si, à unidade do homem e da mulher e ao fruto dessa relação que é o filho. Há anos chamo o cruzamento desses três fatores de “mistério nupcial”. Considero necessário e libertador repropor com ênfase essa visão compreensiva.

Por que doutrina e pastoral parecem tão separadas que se precisa colocar o problema de “conjugá-las”? É uma preocupação que emerge, com frequência, nos relatórios que afluíram da preparação para o Sínodo...
É uma questão que vem de longe. É preciso, antes de tudo, levar em conta um dado: os preceitos e as leis são, por sua própria natureza, universais, mas os atos são sempre singulares. Portanto, a ação moral precisa ser avaliada a partir daquela pessoa que realiza determinado ato, e isso já mostra a dificuldade de toda ética e também da moral católica. Todavia, a separação entre doutrina e ação pastoral está ligada a uma visão estática do homem: pensa-se ainda, com um certo intelectualismo ético, que o único problema seja aprender a doutrina certa para se poder aplicá-la à vida: “A autêntica doutrina, uma vez proclamada, vencerá”. Essa posição, porém, não leva em conta um dado: pelo simples fato de ser “lançado” na vida, o homem passa a fazer uma experiência da qual nascem perguntas, interrogações. A doutrina, que evidentemente para o cristão baseia-se na experiência originária do seguimento de Cristo proposta autenticamente pelo magistério, deve ser descoberta como resposta orgânica aos “porquês” que nascem da experiência. Do contrário, não basta.

O Papa, nesse ponto, está dando um forte empurrão.
Parece-me que o Santo Padre viu com clareza a necessidade de se inclinar sobre as feridas do homem, inclusive nesse aspecto. Quando convida toda a Igreja, através de um dos seus órgãos mais importantes, como o Sínodo, a refletir sobre o significado da família, penso que pretende enfrentar essa situação, com o realismo que lhe é próprio, para dar de novo esperança e confiança não só aos cristãos, mas a todos.

O senhor insiste muito, em seus discursos, sobre a necessidade de se recuperar o “horizonte sacramental” do casamento. Por que é essencial enfatizá-lo? O que quer dizer que o casamento é, antes de tudo, um Sacramento?
Para o cristão – mas, se bem entendido, esse discurso vale para qualquer experiência humana – a questão de fundo é se Cristo é o coração, o “centro afetivo” da minha vida. Se é o motor da minha vida, Cristo precisa ser meu contemporâneo. É o grande desafio lançado por Lessing: “Quem me ajudará a superar esse tremendo fosso que me separa de Cristo que viveu há dois mil anos?”. Kierkegaard dizia: “Só alguém que é meu contemporâneo pode me salvar”. De que modo Cristo pode ser meu contemporâneo? A estrada foi indicada pelo próprio Cristo, oferecendo à nossa liberdade o sacramento, isto é, o dom permanente da sua Paixão, Morte e Ressurreição, na Eucaristia. O Sacramento é a possibilidade, a mim dada todos os dias, de uma interlocução diária com Jesus, que se realiza plenamente na Eucaristia, mas que coloca de maneira analógica todas as circunstâncias e as relações que Deus me propõe ao longo de uma jornada. Relações e circunstâncias são um “quase sacramento”; isto é, têm na Eucaristia o paradigma pleno, mas são um modo como Jesus se torna contemporâneo à minha vida. Então, desse ponto de vista, o que é o amor? O que é o concreto enamorar-se de uma mulher? É uma provocação, ou seja, um chamado que um Outro dirige à minha liberdade, para que eu me envolva junto com Cristo através da assunção responsável desse apaixonar- -se. Responsável porque requer um trabalho. Devemos aprofundar com zelo a ligação entre a Eucaristia e o matrimônio, justamente porque a Eucaristia é a poderosa expressão da dimensão nupcial da relação entre Cristo e a Igreja. Como diz a Carta aos Efésios, a união do esposo e da esposa se torna símbolo da união entre Cristo e a Igreja. Esses são temas sobre os quais os Sínodos se concentrarão: justamente para se ter um horizonte bastante amplo e poder enfrentar também as questões éticas.

A propósito das questões éticas: em certas tomadas de posição sobre os divorciados recasados, não se corre o risco de se entender mal justamente a ligação que o senhor está relembrando entre Eucaristia e matrimônio? Parte-se das feridas abertas, que certamente existem, mas às vezes parece que quase se acaba por reclamar um direito...
O problema é complexo. Para enfrentá-lo em termos realistas, isto é, segundo toda a sua verdade, é preciso antes de tudo olhar de frente a singularidade das experiências. Reagrupar no “gênero dos divorciados e recasados” uma experiência inevitavelmente pessoal é, de fato, algo que vai contra a realidade: não encara nem o processo de maturação afetiva e sexual do indivíduo, nem o valor da Eucaristia como condição da contemporaneidade de Cristo à minha vida. Além disso, a doutrina cristã já disse com grande clareza que os divorciados e recasados não estão fora da comunhão eclesial e já indicou as muitas formas como podem participar da vida da Igreja: são pelo menos nove, como diz a Sacramentum Caritatis, ainda que não seja possível o acesso à comunhão sacramental. Claro, é preciso corrigir um pouco o modo como em geral se aborda a questão na prática, oscilando entre o laxismo e o rigorismo, além de acompanhar todos dentro de uma experiência viva de comunhão. Penso que se deve e se pode olhar em termos mais substanciais e positivos também esse aspecto. A outra coisa que precisa ser bem avaliada são os critérios de comprovação da nulidade do casamento e o modo como essa comprovação é feita hoje na Igreja: talvez se possam encontrar formas mais pastorais. Assim como o fenômeno maciço do afastamento de uma prática cristã consciente, põe também o problema do peso de um mínimo de fé como condição para se contrair o sacramento matrimonial. É preciso trabalhar, entender e encontrar os caminhos que respeitem a singularidade na experiência do amor e também no nexo objetivo entre a Eucaristia e o matrimônio.

Qual é a função dos cristãos em tudo isso? Da Instrumentum laboris emerge a necessidade de “testemunhas”. Mas o que quer dizer testemunhar a beleza do casamento?
Quer dizer fazer o que tantos jovens fazem, isto é, aceitar entregar o êxito da própria vida, que é a santidade, à estrada que o Senhor – através de sinais precisos – nos indica como a via privilegiada para se alcançar essa realização. Trata-se de testemunhar que se pode amar assim, amadurecendo pacientemente, na dificuldade e talvez na contradição, a dimensão afetiva da própria existência. O testemunho vai além do bom exemplo: é um modo de conhecer a realidade – neste caso, a realidade do belo amor – e, consequentemente, de comunicá-la na sua verdade.

O que não quer dizer que se está batendo em retirada: sublinhar que a chave mestra é o testemunho não implica no desinteresse pelo debate público, pela política, o empenho para fazer com que as leis sejam as melhores possíveis..
Pensar que as duas coisas se opõem nasce de um equívoco no modo de olhar o testemunho: como “bom exemplo” e pronto. Como o testemunho parte da pessoa, do sujeito, ele é subjetivado, considerado um fato privado. Mas o testemunho assume, por si mesmo, também aquelas formas concedidas pelo direito, que são diferentes segundo a sociedade em que a pessoa vive. Se vivemos numa sociedade plural, esse tipo de testemunho pode percorrer as estradas previstas na democracia e dar vida também a propostas legislativas, em público debate, e, se for o caso, em manifestações. Trata-se de decidir, em cada caso, o que é proporcional à missão, tanto mais decisivo numa sociedade plural, de oferecer a própria visão das coisas ao livre confronto, em vista de um reconhecimento recíproco, porque isso é construir uma democracia. Nesse contexto, é, além disso, fundamental aprofundar o valor social da objeção de consciência. Faço votos de que esse tema se torne ocasião para um profícuo debate.

Mas se o senhor tivesse diante de si, agora, dois jovens que lhe perguntassem por que vale a pena se casar, o que o senhor lhes diria?
Que a vida é sempre uma resposta. Se o homem não pode se autogerar, e jamais poderá fazê-lo, se eu venho de um Outro, então eu preciso responder. E dado que a vida – para além de todas as descobertas científicas – é breve e é uma só, então é preciso descobrir que a experiência da relação e do amor é o seu fundamento, porque o amor vence a morte. Eu sou chamado a desenvolver, ao longo de toda a minha existência, a promessa contida no bem de ter sido colocado no mundo – com todas as contradições, as dificuldades, e assim por diante – a fim de que possa acontecer o que eu vejo todas as vezes que vou a uma paróquia. Ao final da missa, há sempre algum casal de anciãos que, sorrindo, me diz: “Eminência, cinquenta anos de casamento, sessenta anos de casamento...”. Penso que uma experiência assim é formidável, incomparavelmente mais satisfatória do que aquela de quem trocou doze parceiros durante sua vida. Por isso digo aos jovens que vale a pena. Busquem essas testemunhas: elas existem!

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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