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Passos N.164, Novembro 2014

ATUALIDADE / Brasil

A política diante da experiência elementar

por Marina Massimi

Uma reflexão sobre os nossos dias após o término das eleições presidenciais ocorridas em outubro no País

Nestas eleições, a confusão esteve presente não apenas no debate entre os próprios candidatos à presidência, como também nas discussões que a sociedade brasileira travou em torno deles, nos ambientes de trabalho e nas redes sociais. O predomínio de posicionamentos instintivos ou de tomadas de posição rígidas, sem abertura para a discussão e o diálogo com posições diferentes chamava a atenção. Parece que diante de um tema como a política, a razão não tem voz e o que domina é a emoção.
Dom Giussani assinalava no capítulo 3 de O senso religioso (Ed. Universa, Brasília, 2009), que uma redução positivista no uso da razão a separa dos âmbitos de interesses mais propriamente humanos, como a política. Hannah Arendt, uma das filósofas mais importantes do século XX, coloca as origens dessa redução aos inícios da história moderna, quando a razão se separou da experiência, dispensando a verificação da realidade e se co locando como o sujeito da construção do mundo. Nascia assim a ideologia.
Arendt observa que a experiência não interfere no pensamento ideológico desde o momento em que a ideologia estabelece a sua premissa, o seu ponto de partida. Deste momento em diante, o pensamento não pode aprender com a realidade (cf. Origens do totalitarismo, Ed. Cia das Letras, p. 524). E ainda: “A auto-compulsão do pensamento ideológico destrói toda a relação com a realidade. O preparo triunfa quando as pessoas perdem o contato com os seus semelhantes e
com a realidade que as rodeia; pois juntamente com esses contatos, os homens perdem a capacidade de sentir e de pensar. O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento) (Idem, p. 526). Segundo Arendt, uma característica da prevalência desta atitude é que “as ideologias nunca estão interessadas no milagre do ser” (Idem, p. 521). A novidade é impossível e a razão ideológica não aceita a categoria da possibilidade.
Outra característica é que se perde totalmente a relação com os fatos e com a verdade fatual, que na política é elemento fundamental do debate. Não interessa mais discutir acerca dos fatos, mas apenas sobre as performances das imagens midiáticas construídas pelos marqueteiros. Os posicionamentos no Facebook são exemplos desta posição: charges, piadinhas, etc. se substituem à discussão política dos fatos inerentes à gestão de poder, no passado, no presente e das possibilidades para o futuro (programas).
H. Arendt, ao falar do exercício do pensamento político afirma, “meu pressuposto é que o próprio pensamento emerge de incidentes da experiência vivida e a eles deve permanecer ligado, já que são os únicos marcos por onde pode obter orientação” (Entre o passado e o futuro, Ed. Perspectiva, p. 41). Para ela, “a verdade fatual relaciona- -se sempre com outras pessoas: ela diz respeito a eventos e circunstâncias nas quais muitos são envolvidos; é estabelecida por testemunhas e depende da comprovação; existe apenas na medida em que se fala sobre ela, mesmo quando ocorre no domínio da intimidade. É política por natureza” (Idem, p. 295). Isto implica colocar os fatos em discussão, para se chegar efetivamente a uma política comprometida com o bem comum: “Em sua inflexibilidade os fatos são superiores ao poder; são menos transitórios que as formações de poder que surgem ao se reunirem os homens com um objetivo, mas desaparecem tão logo ele seja realizado ou abandonado” (Idem, p. 319).

Um caminho educativo. Por sua vez, os fatos provocam o trabalho da razão – o juízo: “A atitude política diante dos fatos deve trilhar a estreita senda que se situa entre o perigo de toma-los como resultado de algum desenvolvimento necessário que os homens não poderiam impedir e sobre os quais, portanto, eles nada podem fazer, e o risco de negá-los, de tentar maquinar sua eliminação do mundo” (Idem, p. 320). Esta atitude política demanda um caminho educativo, a ser feito no cotidiano. Qual o núcleo da atividade política? “A política enquanto forma completa de cultura, só pode ter como preocupação fundamental o homem” (Giussani, O eu, o poder, as obras, Ed. Cidade Nova, p.161) e o que é fundamental no homem é o desejo. “Só existe possibilidade de se construir sobre o desejo presente, que é a única coisa que me torna capaz de ficar atentíssimo. (...) O desejo é também analítico ao olhar à sua volta: não lhe escapa nem um fio de cabelo sequer. Como energia de construção jamais se cansa e (...) por sua natureza escancara os homens diante da realidade” (Idem, p. 169). A intransigência e o fechamento intelectual e humano que se observam no clima sócio-político do País nestas semanas tem também uma nuança de indiferença e de hostilidade, onde o vale- -tudo para afirmar a própria opinião e o próprio poder, a desqualificação do outro, a difamação, etc., se tornam instrumentos “normais”.
Em texto de 1992, Giussani dizia que a confusão acontece quando “uma pessoa não admite haver nela uma parte de traição, de falta de vontade de perseguir o ideal que cada um carrega consigo”; então esta pessoa “não é mais autentica, não é mais verdadeira em nenhuma relação. Porque esquece a verdade existencial inicial, isto é, que a mesquinhez, a própria miséria, a preguiça, a maldade ofuscam o coração do homem, que é constituído pelo ideal” (Idem, p. 214-215).
Desta forma, a presença da comunidade cristã neste contexto tem, antes de tudo, a tarefa de lembrar aos homens seu desejo e seu limite diante do ideal. Ela repropõe que existe uma diferença entre um projeto a respeito do homem que nasce do desejo e um projeto político construído sobre uma concepção do mundo e dos homens inventada pelos intelectuais. “A análise e a construção dependem da intensidade realista do desejo. Por isso não é utopia, mas esperança [...]. A esperança cristã está dentro da picareta usada contra a rocha do instante. Não o instante abstrato, mas o instante de acordo com as condições concretas que carrega consigo”. Um projeto construído com amor “abraça a realidade segundo a correspondência ao próprio desejo a que essa realidade se presta” (Idem, p. 170).
Além disso, a comunidade cristã recoloca para todos os homens o fato de que o desejo da verdade torna a pessoa totalmente aberta diante do desafio que o outro é: “O amor à verdade é a exigência total, é a exigência última do coração, é a exigência que define o coração do homem. Por isso, quanto mais é vivo o desejo da verdade, tanto mais qualquer diversidade te solicita no desejo da verdade, não bloqueia o teu caminho nem é obstáculo, nem objeção, e sim é um convite. A diversidade é um convite” (Giussani, Tu, ou da amizade. Milão: Rizzoli, 1997). Esta é a abertura necessária para que haja diálogo político na busca do bem comum.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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