Ela se chama Valentina, é ginecologista, fazia pesquisa na Inglaterra, depois se viu envolvida no trabalho em consultório. E se deparou com muitos problemas tão discutidos hoje em dia: a pílula, a fecundação assistida, o sexo. “Eu pensava que bastava conhecer a doutrina. No entanto...”. Eis o que está descobrindo ao aceitar o desafio lançado pelo Papa
Ela escrevia com pressa, para terminar o quanto antes, enquanto fazia as perguntas de praxe àquela mulher que mal tinha cumprimentado. Era a última paciente do dia. Doenças? Distúrbios? Precedentes familiares? “A certa altura, olhei aquela mão que se movia nervosamente ao escrever no papel. Fiquei incomodada comigo mesma. Parei e pensei: mas onde você está agora, Vale? Ergui os olhos e vi aquela senhora. Mas quem é essa mulher? É uma pessoa, é uma gota do Ser que eu não conhecia E agora está diante de mim...”.
Um instante. Coisa de nada. No entanto, foi ali que desabrochou de novo a vida. A história da doutora Valentina Doria é simples, mas ajuda a entender muitas coisas: os desafios que temos diante de nós, impensáveis alguns anos atrás; a oportunidade que se apresenta para quem decide enfrentá-los; e, também, o que quis dizer o Papa Francisco quando falou de uma Igreja que “acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros que possam ser”. Ou quando pede aos cristãos que “busquem formas e modos de comunicar, com uma linguagem compreensível, a perene novidade do Cristianismo”, porque “é preciso ser realista” e “muitas vezes é melhor desacelerar o passo, deixar de lado a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou à beira do caminho”, como recordava na mensagem ao último Meeting de Rímini.
Valentina tem 40 anos e um currículo invejável: seis anos de PhD em Londres, estudando as redes neuronais dos fetos, em projetos que a levaram até Estocolmo a fim de relatar as suas pesquisas para a comissão do Nobel. Depois, porém, toma um outro rumo: “A pesquisa é uma coisa linda, mas me faltava o contato com uma realidade mais viva, e eu quis voltar à clínica”.
No seu caso, a clínica é o Hospital Niguarda, em Milão. Chega ali em 2010, onde passa três anos “intensos e duros. A pressão, às vezes, pesa: se alguém sofre um infarto aos 70 anos e morre, a gente pensa ‘é o curso da vida’. Mas se uma mulher jovem tem complicações durante o parto, pensa-se logo que a culpa é do médico”.
Depois, de repente, o hospital faz uma reestruturação empresarial e cortes e ela fica sem trabalho. Começa a trabalhar como autônoma em ambulatórios e consultórios. Com uma dúvida dentro de si, plantada pela conversa de colegas: “Os consultórios, comparados aos hospitais, são considerados de segunda classe. Eu dizia a mim mesma: será que não estou desperdiçando todos os anos de estudo? Porém, a realidade era aquela: vagas em hospital não existiam”. É ajudada por uma centelha que foi acesa no diálogo com um amigo. “Ele me disse: Vale, veja bem: nós não construímos na vida se levamos a termo o nosso projeto: fazer medicina, depois a especialidade para se tornar ginecologista, depois o doutorado... Tudo muito justo, claro. Mas nós só construímos se respondemos a alguém no presente. Agora, fazendo o que você faz, o que está afirmando? O que você ama?”.
Ela logo consegue trabalho em diversos consultórios e as jornadas se enchem de desafios. “O impacto mais duro foi com as adolescentes. Lembro-me do primeiro dia, quando chega uma mãe com uma jovenzinha de 13-14 anos, praticamente a empurra para dentro do consultório e vai dizendo: ‘Doutora, é com a senhora, explique tudo para a minha filha, que eu não quero problemas. Estamos entendidas, certo? A pílula, por favor...’”. Isso se repete continuamente. As meninas vêm acompanhadas ou até mesmo sozinhas. E Valentina entra em crise. “Trabalho há quinze anos, sei o que diz a Igreja, li mil vezes a encíclica Humanae vitae: pensava que estava bem equipada”. Mas... “Percebi que essas meninas falavam outra língua. Eu me recusava a receitar a pílula, porque estou certa de que não é uma coisa certa e divide o humano em dois. Eu procurava explicar o que é o amor, a responsabilidade. Eu tinha uma lista de frases bonitas de Dom Giussani para citar, para impressioná-las. Porém, era um diálogo entre surdos. Não havia nenhuma palavra sobre a qual se podia estabelecer um acordo: amor, felicidade, plenitude, responsabilidade. Todo valor que eu procurava destacar era reduzido ou incompreendido. Eu não as atingia. E eu não podia viver procurando fazer com que o outro entendesse um valor. Não me bastava”.
As jornadas eram áridas. E não por causa do ritmo de trabalho, as 20-24 consultas diárias, poucos minutos para cada paciente e horas de deslocamento de um ambulatório a outro. “Eu estava incomodada. Chegava, pegava a lista das consultas e fazia as contas. `Esta está na menopausa: ok, sem problema. Meu Deus, esta é jovem: o que será que vai querer?´ Enfim, a jornada nem tinha começado e eu já a tinha catalogado em ‘problemas a resolver e coisas a evitar’. Uma loucura”. Algo roía por dentro. “Um pouco depois, me vi pensando: talvez não seja tão verdade que Cristo responde. Se não pode responder a elas, por que deveria responder a mim? Era um ponto de conversão total. Lembro-me de um dia ter dito às minhas amigas: ou me reavalio, ou me perco de vez”.
A reavaliação veio com aquela senhora. Sem dizer nenhuma palavra. “Era um jornada pesada, eu já havia consultado muitas pacientes. Ela entra. Eu fazia perguntas em cascata, para poder ir pra casa o mais rápido possível. A certa altura me veio muito forte aquela pergunta para eu estar presente. Ergui os olhos e vi a mulher. Não creio que ela percebeu todo o meu sofrimento interior, mas foi uma coisa intensíssima para mim. O que aflorou foi o desejo de viver a realidade tal como ela se apresentava. Foi ali que comecei a entender que não queria escapatórias. Foi uma reviravolta total, inclusive no meu relacionamento com Cristo”. Em que sentido? “Em vez de partir de uma boa intenção de viver com Ele no centro da vida, de repente eu disse: ‘Mas se Ele não está aqui na realidade de agora, em toda a lista das pacientes, vai estar naquelas que eu desejo? Ao final, Quem é Ele? Nada. Eu O reduzo aos meus pensamentos’. Ao refletir assim, a terra tremia sob os meus pés”.
E multiplicava-se a necessidade de compreender. “Comecei a pedir ajuda, concretamente: a colegas ginecologistas, católicos e não. A famílias, jovens, padres...” Um deles revirou de novo sua perspectiva, alargando- -a: “Ele me disse: ‘Valentina, antes de tudo você precisa fazer o seu trabalho. Qual é o primeiro trabalho de um médico? A anamnese: fazer perguntas. É isso, você precisa aprender a fazer as perguntas’. Por isso, aos poucos, comecei a fazer perguntas verdadeiras às pacientes, reais, não aquelas cujas respostas eu já sabia”.
Acabou fazendo outra descoberta. O Teen Star, um método de educação para a afetividade criado por Pilar Vigil, doutora chilena, e muito difundido na América Latina. “Baseia-se na teologia do corpo, de João Paulo II”, explica Valentina. “Restitui à corporeidade sua plena dignidade. Coloca no centro a pessoa. E, sobretudo, parte da experiência. Porque aos jovens não se pode ensinar nada que não tenha relação com o que vivem”. Exemplo? “Se você diz a uma adolescente: ‘Veja que você não é só o seu corpo, mas há também um aspecto espiritual; por isso, por favor, não use...’, hoje é muito provável que isso entre por um ouvido e saia pelo outro. Pilar, ao invés, manda fazer um exercício. Diz: ‘Olhe nos olhos de quem está na sua frente por uns 40 segundos’. Elas riem, não conseguem, é muito difícil. E quando lhe pergunta o que aconteceu, dizem: ‘Não, professora, é uma bagunça’. ‘Por quê?’ E vem à tona uma mocinha como aquela que uma vez me respondeu: ‘Porque por trás dos olhos há uma outra coisa’. Entendido? Não esconda nada, e na próxima vez reparta daí”.
A resposta de Deus. Está aí, naquilo que acontece, que Valentina começa a encontrar as respostas e um caminho. “Pense nos métodos naturais. Muitas vezes falava deles e tudo caía no vazio. Eu pensava que me faltava uma verdadeira compreensão da doutrina, ou um profissionalismo pleno, para ser capaz de dizer a coisa certa no momento certo. E depois a Igreja fala disso num contexto de casamento: as minhas pacientes quase nunca são casadas. Eu me dizia: jamais vão entender. Mas um pouco depois chega Grace”.
É o nome (de fantasia) de uma jovem nigeriana, em torno dos 25 anos. É prostituta. Uma tarde chega ao ambulatório e diz: “Doutora, eu, por causa do meu trabalho, uso preservativo”. Um instante de constrangimento. “Mas com o meu homem não quero usá-lo, porque aí é uma outra coisa”. Mais uma pausa. “Porém, já temos dois filhos e agora não podemos mais ter. A senhora me ensina os métodos naturais?”.
Valentina sorri ao contar o caso. “Pedi para ela repetir três vezes, achava que não tinha entendido direito. Mas não, ela tinha ideias muito claras. Aquela jovem foi uma resposta de Deus para mim. Era Ele quem me dizia: ‘Você acha que o homem de hoje não é capaz de entender? Bem, eu lhe mostro lá onde você nem espera’. Para mim foi fundamental”. Por quê? “É o método da Encarnação. A gente vê em ação algo que desejou ardentemente desde sempre: de repente acontece e a gente entende que é o que desejava... É como se o meu eu tocasse a realidade. Tac! Você toca algo e isso o muda, é como uma vacinação. Dali em diante, temos instrumentos novos. Aconteceu. Eu não sei como acontecerá com outras mulheres, mas a mim basta dizer que ‘não é verdade que elas não conseguem entender’. Depois, a coisa mais interessante será descobrir junto o caminho, os passos a serem dados”. E Grace se tornou amiga, e o mesmo aconteceu com outras colegas dela.
Perguntas certas. Mas essa estrada resolveu os problemas? A pílula para as meninas, por exemplo: como você faz, o que mudou? “Estou mais segura ao propor uma alternativa. Não estou reescrevendo a Humanae vitae, imagine! E não desenvolvi nenhuma casuística de aplicações justas. O cume da montanha permanece alto e estupendo. Mas sei que a caminhada é feita com a paciência de esperar. E não é que abaixando o cume se faz o homem mais feliz”. Você está mais serena? “Nunca estou plenamente satisfeita, estou em contínua confusão. Porém percebo que, aos poucos, estou me comunicando com essas jovens; e eu também estou dando alguns passos reais. Todas as vezes que entra uma jovem que eu acho que quer a pílula, procuro entender em que contexto ela vive, qual a sua história, até que ponto posso chegar”.
Anamnese, justamente. As perguntas certas. Aquelas que tocam o coração da mulher tunisiana que entra no consultório querendo abortar “porque já temos três filhos e não podemos ter mais”. E agora teve uma filha, que se chama Doria. “Ela me disse: não posso chamá-la de Valentina porque é um nome cristão. Mas quero chamá-la com o seu sobrenome, porque quero que seja feliz como a senhora. Não disse boa, disse feliz...”. Ou aquelas perguntas que fazem vir à tona o coração de outro casal. “Duas pessoas muito simples, ele operário, ela dona de casa”. Não conseguiam ter filhos e foram convencidos a tentar a inseminação artificial. “Chegaram no meu consultório quando já tinham feito todo o procedimento. E eu: bem, mas por que vocês estão aqui? ‘Para entender’. Entender o quê? ‘Se é certo ou errado’. Como assim? E eu via que ele estava incomodado. Até que desabafou: ‘Doutora, quero entender o que é certo, humano, que não me deixe tão mal. Porque eu fiquei com muita raiva. Sinto que usurparam de mim um espaço com minha mulher que é sagrado e é só meu’. Eu fiquei chocada: ele havia entendido sozinho, por sua própria experiência. É bonito ver um coração que está descobrindo algo por si próprio. Ali já estava tudo. Estava acontecendo. Depois lemos juntos trechos da Humanae vitae e da Donum vitae, porque sempre as trago na bolsa. E isso iluminou o coração deles, ajudou-os a julgar”.
Iluminar o coração. Acompanhar a redescoberta do humano, partindo do terreno mesmo da experiência. Eis o que faz o cristianismo, em qualquer situação.
“Na semana passada vejo aproximar- se esse casal de indianos, muito jovens. Para conversar com os estrangeiros temos um livrão que contém as frases fundamentais em 145 línguas. A deles não constava ali. Ele é cozinheiro, ela trabalha em casa. Uma menina pequena (1m45), pesava 33 quilos e estava grávida. Ela estava perdida, vomitava muito e se preocupava”. Primeiro filho? Sim. “Prescrevemos os exames, eu a tranquilizei como era possível, falando através do marido, que sabia um pouco de italiano. Depois, a certa altura, perguntei: Mas você está bem? Está feliz? E o marido: ‘Sim, está feliz’. Acontece muito isso: a gente pergunta à mulher e quem responde é o homem. Eu insisto: desculpe, mas faça a pergunta a ela. Você jamais perguntou isso a ela?”. E ele? “Ficou surpreso. Depois virou-se e perguntou a ela: ‘Você está feliz?’ Não sou capaz de descrever o rosto deles. Como se se olhassem pela primeira vez”. Como se alguém tivesse olhado para eles pela primeira vez.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón