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Passos N.165, Dezembro 2014

CURDISTÃO/ Os refugiados cristãos

“Era um país belíssimo”

por Maria Acqua Simi

Foram obrigados, de um dia para o outro, a abandonar as próprias casas.
Antes, tinham uma vida; hoje, o Isis a levou embora. Viagem à cidade das tendas de Erbil, para encontrar Avas, Haidi e Marya. Em meio a conversões forçadas, mosteiros destruídos e crucifixos crivado de balas, encontramos pessoas necessitadas de tudo, mas não angustiadas. Por quê? A seguir, as razões


A picape balança em cada buraco da estrada. Avas, o motorista, procura evitá-los, sem muito sucesso. Aliás, não conhece as estradas poeirentas e sujas que ligam Erbil, capital do Curdistão iraquiano, às outras zonas periféricas dessa Governadoria autônoma, no interior do Iraque. Nem é um motorista profissional. “Antes, eu ensinava música no ensino médio”, conta ele. “Eu e minha mulher somos de Qaraqosh. Vivíamos ali com os nossos dois filhos e trinta pombas brancas. Qaraqosh era belíssima, antes”.
Esse “antes” diz tudo. Antes que chegassem os homens do califa Al Baghadi, antes que os cavaleiros de preto do jihadismo destruíssem casas, escolas, mosteiros, comércio, poços, plantações. As criações de pombas. As pessoas. Antes de tudo isso, o Iraque era um país belíssimo. Cheio de problemas, com certeza. “Mas as pessoas viviam em paz ultimamente; as coisas funcionavam”.
Parece que se passaram séculos, mas estamos falando de poucos meses atrás.Era final de junho quando a ofensiva islamita derrotou as frágeis forças armadas iraquianas e conquistou o norte do país.

As abelhas e a artilharia. Os buracos se tornam cada vez mais perigosos e dentro do carro o calor aumenta. O ar condicionado está quebrado, e ainda temos mais meia-hora de viagem. A meta são dez famílias iazidis refugiadas num terreno abandonado. “Eles não têm ninguém que leve ajuda para eles, a não ser a Igreja local”, continua Avas. “Cabe a nós fazer isso”.
Ele próprio é um refugiado, está no campo de Duhok, numa tenda marrom que compartilha com a família e três amigos. Dispõe-se a acompanhar jornalistas e agentes humanitários que giram pelo Curdistão. Não quer ficar o dia todo sem fazer nada. “Os iazidis foram massacrados pelo Isis (sigla do Estado Islâmico, em inglês) porque são considerados adoradores do diabo. Nós, cristãos, ao invés, podíamos escolher: converter-nos, pagar uma taxa ou ir embora. Eles, não; foram assassinados”.
O relato se interrompe. Ao longe, Avas indica uma invisível linha de fronteira. Além dali, se encontram aldeias que distam poucas dezenas de quilômetros da estrada que estamos percorrendo, mas hoje é impossível visitá-las. Quaraqosh, Mosul, Bartallah, Sinjar são nomes que aprendemos a conhecer. São antigos assentamentos cristãos na planície de Nínive, ao nordeste do Iraque. Lugares de uma beleza empolgante: montanhas íngremes e vales cheios de figos, caquis, e de mosteiros com paredes milenares. Terra de apicultores, camponeses e cristãos. Avas vem daí, onde “se faz o melhor mel do mundo” e onde há pessoas que falam o aramaico, a língua de Jesus. “Antes”, não havia grandes problemas. Hoje, o zumbido das abelhas é superado pelo ruído da artilharia.
O Isis conquistou, através das armas, toda a zona; chegou à região de Al Anbar e agora marcha – quase sem oposição – rumo à capital iraquiana, Bagdá. De maio até hoje, mais de um milhão e setecentos mil civis abandonaram as próprias casas para escapar da violência do Estado Islâmico. A maior parte deles refugiou-se no Curdistão, único enclave ainda protegido, graças aos ataques norte-americanos e à diligência dos peshmerga, os milicianos curdos que obstinadamente defendem as próprias fronteiras.
Mas a Governadoria também está em colapso: da Síria chegaram, no último ano, mais de 250 mil refugiados e hoje os desabrigados ocupam 70% das escolas, como conta Marzio Babille, o responsável da Unicef no país: “O ano escolar ainda nem começou: nem para as crianças curdas nem para o meio milhão de menores refugiados”. Os hospitais são inadequados, falta água potável, os preços foram quintuplicados para cada coisa. A pressão é enorme e quem entra na terra curda não pode esperar encontrar uma casa: os mais afortunados encontram abrigo nos pátios das paróquias ou têm à disposição as tendas oferecidas pela Igreja local ou pela UNHCR (Agência da ONU para os refugiados). Todos os demais procuram abrigo nos parques ou canteiros de obras.
Entre eles encontra-se Haidi, mãe de cinco filhos, com um marido cego. Está sentada num colchão de espuma que as irmãs dominicanas conseguiram recuperar alguns dias atrás. Tem olheiras profundas, os cabelos desalinhados, o olhar como que paralisado pela dor. “Meu marido é cego e eu não vejo televisão. Quando os daesh (bárbaros) chegaram, o povo fugiu da aldeia. Mas nós só compreendemos com alguns dias de atraso o que estava acontecendo. Escapamos, mas numa barreira de estrada nos pararam”. Todos os cristãos precisam pagar para poder deixar a cidade. Eles, porém, não tinham dinheiro para pagar a taxa. O Isis não negocia. E no lugar do dinheiro pega a menina mais nova. Dela não se tem mais notícia. “Cristina tem só três anos e três meses, não pode ficar sem nós”. Ela e o marido não se perdoam por não a terem protegido. “Rezo todos os dias a Deus para que me traga ela de volta”, diz a meia voz. O marido, agachado no chão e quieto até aquele momento, levanta a cabeça: “Mas nós Lhe agradecemos também, porque até agora nos manteve vivos”.

Tornar-se cristão. Há dezenas de casos semelhantes ao de Haidi. Cada um aqui, tem uma história de dor, que carrega com discrição. Há sacerdotes anciãos que foram obrigados a ver as próprias igrejas sendo incendiadas e as cruzes metralhadas. Há famílias obrigadas a se converter ao Islã e depois fugir, arriscando a vida para ir ao Bispo pedir a sua bênção e voltar a ser cristãos. “Tentamos fugir da nossa aldeia duas vezes”, conta Marya. “Na terceira, nos prenderam e ameaçaram: se não nos convertêssemos, matariam as crianças. Aceitamos, mas dentro do nosso coração sabíamos que éramos cristãos. De noite nos levaram a Mosul e, de manhã, nos obrigaram a abjurar diante do povo, num lugar que chamam de tribunal público da sharia. Eu não podia acreditar no que estava acontecendo. Logo depois, os daesh nos deram uma casa nova, comida e remédios. Mas nos tiraram Jesus. Depois, graças ao nosso tio e à ajuda de duas famílias sunitas – que correram muito risco por nós – conseguimos fugir para o Curdistão”.
Muitos perderam algum ente querido e todos agora vivem em condições duríssimas. No entanto, todos dizem, com palavras diferentes, a mesma coisa: “Estamos aqui, perdemos tudo, mas graças a Deus e a Maria conservamos a fé”. Não são cristãos fracos, que fique claro: eles são veementes em denunciar as ineficiências da comunidade internacional ou as violências do Califado. Mas não são pessoas angustiadas. Necessitadas de tudo, sim; sofridas, sim, mas não angustiadas.
Com as ajudas recebidas, os Bispos (muitos deles fugiram junto com o seu povo), os padres e as freiras se esforçam para acudir as emergências. Encontram cada um dos chefes de família, fazem um registro especial deles, estabelecem as prioridades e, depois, destinam os fundos para as operações mais urgentes: mulheres no final da gravidez, feridos graves, crianças e anciãos. Jamais fizeram isso, pois não são agentes humanitários. São pastores de almas que se veem diante do dever de acompanhar o seu rebanho nessas jornadas dolorosas. Há uma grande dignidade nesses grandes quartos cheios de moscas e muito quentes, ou nas tendas estendidas em volta das igrejas. Os que moram nelas procuram manter a limpeza, evitam palavras ofensivas, e dividem o pouco que têm.
Como Sharbel e Rone, dois sírio-ortodoxos que fugiram de Bartallah, onde o Estado Islâmico destruiu suas casas e a TV cristã para a qual trabalhavam. Contam que fazem parte de uma associação que trabalha para ajudar os cristãos do Oriente Médio a permanecer em suas terras. “Nós estamos aqui há mais de dois mil anos, falamos a língua de Jesus, temos uma história e uma identidade própria. Somos os primeiros cristãos. Se formos embora, esse patrimônio se perderá”. Alguns deles se organizaram também em milícias armadas de defesa (“não de ataque, escreva isso”, recomendam), defender as cidades ameaçadas pelo Isis. “Não nascemos para combater, não é a nossa função. Mas lá estão os nossos amigos, as nossas famílias. Se ninguém os defende, precisamos fazê-lo nós mesmos”. Dispostos a dar a vida por amor aos próprios amigos e a Jesus.
A Igreja, enquanto isso, continua a pedir que o conflito não seja lido e vivido como um confronto religioso. “Temos o direito de nos defender, mas a cultura da guerra não é nossa”, enfatizou recentemente Louis Sako, o patriarca caldeu de Bagdá. “O cristianismo nasceu da cruz. De um coração transpassado”, lembrava no Meeting de Rímini o padre Pierbattista Pizzaballa, guardião da Terra Santa. “Se nos esquecermos disso, cairemos na tentação de crer que serão as nossas obras que irão nos salvar, inclusive em nossa terra”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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