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Passos N.165, Dezembro 2014

DOCUMENTO

A proposta de um caminho

Trechos de algumas colocações na assembleia mensal de Comunhão e Libertação realizada em São Paulo, no último dia 15 de novembro. Na ocasião, Marco Montrasi (Bracco), responsável pelo Movimento no Brasil, conduziu a reunião. O tema de trabalho foi a Jornada de Início de Ano com o tema “Não sou quando não estás aqui”

No início do ano, numa ocasião como essa, você respondeu a uma pessoa contando sobre os dois ladrões pregados na cruz ao lado de Cristo, e onde um deles pediu: “Senhor, lembra-Te de mim!”. Essa frase me marcou muito porque eu estava pedindo para reconhecê-Lo mais dentro das circunstâncias que eu vivo. Eu tenho cinco filhas pequenas e praticamente vivo dentro de casa cuidando delas. Fiquei muito marcada com essa frase e comecei a desejar viver isso, mas eu percebi que eu não podia dar a mim mesma essa unidade. E comecei a entrar todos os dias na capela do colégio das minhas filhas e pedir: “Senhor, lembra-te de mim!”. Era uma coisa muito simples, rápida, mas eu entrava ali com esse coração ferido e pedia. E Ele respondeu a esse pedido de um jeito imprevisto e inimaginável, através de um encontro em Angra dos Reis, nas férias do Movimento. Conheci uma amiga do Rio de Janeiro e através da belíssima amizade que nasceu com ela, pude me abrir para uma série de encontros e amizades que surgiram com as outras pessoas do grupo do whattsapp “mamães a bordo”. Eu não conheço pessoalmente todas do grupo, hoje somos 28, contudo, através do gesto da Escola de Comunidade via Skype, cada uma delas se tornou para mim ocasião de encontro com o Senhor. A partir dessa amizade, tudo adquiriu significado novo e comecei a perceber uma unidade que eu jamais poderia imaginar: primeiro, notei que comecei a estar mais inteira dentro de casa na rotina com as meninas. Antes, diante de tantos afazeres, eu não dava conta e ficava cansada e reativa com tudo. Isso mudou, ainda tenho muitas tarefas, mas agora faço tudo com um coração contente. Outra coisa é que comecei a me interessar por tudo, por exemplo, pela política. Diante das eleições, a partir do trabalho com esse grupo, fui ajudada a dar as razões do meu voto, e a entender os critérios justos a partir de um olhar novo sobre mim mesma. O mesmo aconteceu em relação à Coleta de Alimentos. Eu fiquei provocada a me lançar, e na semana que antecedeu o gesto fiz uma pequena panfletagem com alguns vizinhos e outras mães, movida por um desejo grande de dividir com as pessoas essa alegria que me contagiou. E foi incrível que no Dia da Coleta as crianças acordaram bem e participei como voluntária junto com minha família toda. Termino dizendo que “tudo” começou a partir de um pedido: “Senhor, lembra-Te de mim”, e Ele invadiu tudo de um jeito muito maior do que eu poderia imaginar e eu estou muito contente por isso.

Bracco: Estamos num caminho no qual Ele não me abandonou. Quem despertou essa história é fiel, lembra-se de mim. Quando eu percebo que sou olhado por Ele, tudo muda. Não mudam os problemas, não muda a confusão da casa, mas eu mudo. Eu mudo, então tudo muda. Se eu peço “lembra-Te de mim”, Ele me dá sempre alguma coisa a mais. Dentro desse olhar tem uma mudança e esse olhar acontece dentro de um caminho, no lugar onde Ele não me abandonou. Eu tenho que estar dentro desse caminho, seguir esse caminho, como eu sou, simples, como o bom ladrão. E Ele me leva ao paraíso. Imaginem que 28 mães se encontrem, e isso nasceu a partir de uma, duas mães, com esse desejo de ser a gaivota que quer voar e parecia que os filhos para cuidar, o marido que nunca está em casa, cor-tava as asas. “O primeiro fator de uma incidência política é a existência da comunidade cristã”. Aquilo que aconteceu com essas mães dentro desse caminho, por alguém que começou a seguir, tem uma incidência política maior do que mil discussões que não levam a lugar nenhum. Mães que têm que ficar em casa, que fazem uma experiência assim, mudam o mundo. É o mundo mudado. Imaginem quando ela vai encontrar as outras mães na escola, quando vai comprar o leite, quando vai ao supermercado, isso tem uma incidência política. Nós não temos consciência daquilo que somos, pois pensamos que a nossa existência de pessoas mudadas não tem incidência nenhuma, e temos sempre que fazer alguma coisa a mais. No entanto, o primeiro fator de uma incidência política somos nós, a nossa existência. A possibilidade de um diálogo e de encontros inimagináveis nasce do fato que existam pessoas mudadas assim, mais que todos os esforços que podemos imaginar.

Com relação às eleições, eu percebi duas posturas nas pessoas: ou uma alienação baseada numa desilusão política; ou um ativismo quase fanático, com os dois lados acusando os outros praticamente das mesmas coisas. Durante todo o ano eu acompanhei essa questão política e participei de muitas discussões, mas considerando que eu ia estar de férias no primeiro turno das eleições, fui adotando uma postura mais cômoda e alienada. Ou eu não ia votar, e não precisava me preocupar, e como já tinha definido meu candidato, então não precisava me envolver com isso. No segundo turno, com as oscilações nas pesquisas, com os embates sobre a questão econômica, eu comecei a me provocar mais, só que foi de uma maneira negativa. A sociedade ficou muito dividida e eu me perguntava o que eu faria. Vi muita gente próxima claramente apostando a vida na vitória de um candidato, e eu me perguntava: onde está meu coração? Falamos sobre isso numa reunião com meu grupo de Fraternidade e eles me ajudaram a entender que defender um fundamentalismo partidário é defender uma verdade abstrata, achando que quem está do outro lado não tem nenhum valor. E essa postura é a mesma de quem fica apegado a uma discussão entre tradicionalistas e progressistas na Igreja. A discussão com esses amigos me encheu de confiança. Independente do resultado das eleições, eu pude perceber que eu tinha sido escolhido, que eu já fazia um caminho. E esse caminho já é salvo, e isso era exatamente o oposto do vazio que aquela postura fundamentalista gerava. Discutindo com alguns colegas de trabalho, tentei mostrar que existem motivos que levam o outro a votar em um diferente partido, e é possível dentro de um caminho que permite ouvir o outro, que promove o diálogo. Pude perceber claramente a incredulidade das pessoas, que não entendiam o que eu estava falando, e a confusão no rosto desses amigos. Mas tudo isso me encheu de uma estranha alegria, uma verdadeira letícia, que me acompanhou nestes dias seguintes, e me fez ficar muito mais contente. Agradeço ao Senhor por ter essa companhia, e por ter estes amigos vivos que me provocam e me acompanham como rochas que me ajudam a caminhar.

Bracco: Acho que a sua experiência nos mostra bem a alternativa que temos neste período. Ou a confusão que gera o medo, o desejo de pegar tudo e ir para outro país, ou uma raiva. Mas não tem outra posição? Ao que somos chamados? Eu fui reler de novo o que falava Carrón sobre Jesus com a Samaritana. “Essa mulher achava que poderia distrair Jesus, envolvê-lo em um debate ideológico, mas Jesus não se contenta com isso. Ele vê que, por trás daquele debate ideológico, ela está se escondendo porque não quer olhar para a sede que tem”. Muitas vezes usamos o debate ideológico para não falar das coisas que realmente nos preocupam, sobre aquilo que realmente nos interessa. Até que chega alguém como Jesus que a desafia: “Se soubesses quem eu sou, serias tu a me pedir água”. E ali a conversa começa a ficar interessante: “Quem tu pensas ser? Achas que és maior do que o nosso pai Jacó, que fez este poço?”. Ainda quer distraí-lo. “E Jesus continua: ‘Se soubesses quem eu sou, serias tu a me pedir água viva, porque eu sou a fonte que jorra para a vida eterna’. Então, essa mulher, que sabe qual é o desejo do que tem uma sede de felicidade que nem mesmo sete maridos puderam eliminar, se rende: ‘Dá-me desta água, para que eu não precise voltar aqui’. Tudo pode ser ocasião de um diálogo como esse. No Evangelho, as coisas principais da vida acontecem em qualquer lugar. Acontece ali, no diálogo com uma mulher ao lado de um poço; com Zaqueu, que está em cima de uma árvore; ou numa festa de casamento, num almoço com os publicanos... na vida. As coisas mais importantes da vida acontecem dentro da vida. Se a pessoa não fica bloqueada nas ideologias começa um diá-logo que permite um encontro e, então, a vida se torna uma aventura fascinante [no meio do medo, da confusão, das análises, é uma aventura fascinante]. porque cada coisa é uma ocasião de diálogo, de encontro, onde posso aprender e posso dar ao outro o conteúdo do meu parecer. Mas é um caminho que podemos estar dispostos a fazer, ou nos fecharmos desde o início por causa de uma posição ideológica. E, então, não encontraremos ninguém”. Cada um de nós tem que verificar se isso aqui é um discurso ou acontece assim mesmo. Cada um de nós tem o radar para identificar se aquilo que está seguindo é uma definição ou é uma experiência. Porque as definições levam a ideologias, e também o nosso discurso do Movimento pode se tornar uma ideologia que não leva a lugar nenhum e não se encontra ninguém.

Eu nasci numa família do Movimento e participo há muito anos. Fiz medicina, me especializei em neurologia e por inúmeras circunstâncias eu escolhi estudar cuidados paliativos. É uma área que trata de pessoas que estão com doenças na fase terminal e não existe um tratamento curativo, e a gente basicamente alivia o sofrimento das pessoas e acompanha para a morte. Então eu vivo muito essa frase do texto “Eu não sou quando não estás aqui”. Eu vivo agudamente essa dependência de que eu estou sendo feita agora, e por isso me identifiquei com essa música de Gaber, porque às vezes eu estou no carro vem a consciência da dependência, então é como se eu tivesse uma calma, uma esperança. Estou diante de uma Presença e vivo aquele momento. Isso tem acontecido cada vez mais frequentemente. E as pessoas às vezes me dizem: “Eu tenho visto que você sorri para o paciente”. Isso aconteceu diante de uma pessoa que fica praticamente presa no próprio corpo. Ela tem plena consciência, mas não consegue se mexer. E eu sorrio para ela, porque eu vejo essa esperança no desígnio dela. E isso tem acontecido, tenho muita certeza, pelo meu caminho na Escola de Comunidade (EdC), porque com o tempo, estudando isso, confrontado as coisas, sofrendo juntos, questionando tudo, é o que me permite, que me acompanha para que eu consiga ter esse olhar, porque as pessoas têm esse olhar para mim na EdC. Essa descoberta deveria ser muito radical, isso deveria mo¬ver todos os instantes da minha vida, e eu vejo que não é tão radical assim, e é essa a minha questão. Eu vejo que tem coisas nas quais eu não consigo sair da minha zona de conforto. Por exemplo, a Coleta mesmo. Eu sempre ia porque tinha que ir: vou lá e fico 2 horas, fico 4 horas, e vou embora. Neste ano eu me perguntei: por que eu vou na Coleta? E no dia eu levantei mais cedo e como eu não tinha ajudado em nada eu decidi rezar. Rezei as Laudes, que é algo que eu não tenho costume de fazer, depois eu li o texto da EdC, e eu fui rezando pelo caminho. Fui pedindo pela Coleta e para que eu me surpreendesse, porque no fundo eu vi que eu estava considerando as coisas óbvias. Aí eu cheguei e eu vi essas moças estudantes de engenharia, que estavam lá com a maior disposição, e comecei a ficar próxima, e o tempo passou rápido. E eu fiquei muito feliz, porque posso ter errado, posso não ter ajudado do modo como poderia, mas tudo pode ser resgatado.

Bracco: Você precisa guardar bem e olhar este momento. Você cresceu numa, família do Movimento, mas teve um certo momento no qual você se sente olhada, sozinha, por Cristo, por aqueles olhos. Como aconteceu que você decidiu rezar as Laudes pela Coleta? Guarda essa experiência, porque essa experiência é conhecer Jesus. Quando nos acontece algo assim, essa experiência é um momento de correspondência no qual você se surpreende que não é mais você mesma. Fazer experiência significa se dar conta de que você cresceu. Fez experiência de quem é mais esse Homem. É a experiência como se faz com um amigo. É ter a consciência de vibrar e se comover porque Ele te olhou. Mas como você falou, não é que mudou tudo na minha vida, pois vejo ainda tem aspectos que precisam mudar. E em Manaus na assembleia com o Carrón uma pessoa perguntou: “Eu estou muito bem, mas eu tenho 1% que eu vejo que resisto e isso me dá tristeza”. E ele começou a responder dando o exemplo de São Paulo, que teve uma das conversões mais estrondosas que conhecemos: cai do cavalo, fica cego por três semanas. E este homem, depois desta conversão, que não tinha dúvida, falou: “Quem me libertará desta situação de morte?”. Ele que tinha vivido aquele momento, percebeu na vida que tinha essa condição dentro e gritou: “Quem me libertará desta situação de morte?”. Então, como o Carrón falava, nós não temos que olhar o que ainda falta para mudar, porque o Senhor me olha pelo desejo que eu tenho. O Senhor me olha na esperança, não naquilo que eu sou agora com os meus limites. Ele te olha com todo o desejo que você tem de ser todo assim e ainda não consegue. E se você fala pra Ele: “Senhor, vence aqui neste pedaço”, Ele te olha por isso, não por aquele pedaço que ainda não está mudado. Tanto que depois fala: “Quem tem essa esperança se purifica como Ele é puro”. Nós temos que ficar preocupados em ver em quem coloco a esperança, quem queremos seguir, e ficar agarrados nisso. Quanto mais ficarmos agarrados, mais Ele vai cuidar do que precisa ser mudado.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón