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Passos N.165, Dezembro 2014

IGREJA/ Após o Sínodo

Um trabalho aberto

por Davide Perillo

Muitos ficaram chocados dentro e fora da sala. Mas o debate sobre os desafios pastorais colocados pela família é um trabalho em andamento, que continuará pelo menos até o próximo ano. Padre ANTONIO SPADARO, diretor de Civiltà Cattolica, explica a verdadeira novidade que emergiu dos trabalhos, dos quais participou. E a marca que o Papa quis dar-lhe

Parresìa. Ou “falar claro, dizer tudo o que se sente”. Essa não era uma das palavras mais usadas, antes. Depois, quando se iniciou o Sínodo sobre a família, essa palavra – usada pelo Papa Francisco na abertura dos trabalhos como pedido aos 191 padres reunidos em Roma – aos poucos foi tomando forma. Com um efeito singular. Porque, nas duas semanas de debate, além do conteúdo (aliás, muito mais amplo do que a comunhão dos divorciados que se casaram de novo, ou da abertura para os homossexuais, temas dos quais a imprensa falou e destinados a ser um trabalho em andamento, pelo menos até o Sínodo de 2015, sobre o mesmo tema), o que também impressionou foi o método. A discussão aberta, justamente. O que chocou alguns observadores e provavelmente também alguns participantes. A indicar uma perspectiva, uma questão de método.
“Creio que a dinâmica do Sínodo não se limita àqueles dias: imprime um ritmo de movimento à Igreja em geral”, observa padre Antonio Spadaro, jesuíta, diretor de Civiltà Cattolica, autor da famosa entrevista com o Papa publicada em todo o mundo em agosto de 2013 e “membro nomeado pelo Papa” para participar do Sínodo. “De certo modo, ali se abriu um caminho”.

Em que sentido?
O Papa queria que cada um se expressasse livremente e, ao mesmo tempo, “escutasse com humildade”, pediu ele no início dos trabalhos. E o Sínodo deu uma resposta a esse apelo. Seu primeiro grande fruto foi ter mostrado uma Igreja capaz de se confrontar e expressar pareceres diferentes, sem a necessidade de parecer monolítica nem de sair com um documento final feito com precisão e equilíbrio. Do ponto de vista do conteúdo, os textos – os discursos, os relatórios, as sínteses dos grupos menores – são etapas de uma caminhada que apenas começou. Mas o método foi significativo.

Mas muitos ficaram chocados ao ver esse tipo de discussão...
Provavelmente nem a Igreja nem a mídia estavam preparados para essa forma. Acho legítimas todas as reações, claro. Mas a única coisa a respeito da qual mantenho cautela é confundir liberdade de expressão com confusão, como alguém escreveu. Isso pressupõe uma visão da Igreja como um monólito. Algo diferente do que encontramos, por exemplo, já nos Atos dos Apóstolos, capítulo 15, com apóstolos e anciãos se confrontando face a face, no Concílio de Jerusalém... A dimensão do confronto é algo que caracterizou a Igreja desde sempre. Reduzir a liberdade de expressão a “confusão” é muito perigoso.

Por que, então, essa discussão gera resistências ou até temores, como se fosse uma coisa preocupante?
Teme-se que, de certo modo, seja afetada a doutrina. Que, na realidade, no Sínodo nunca foi colocada em discussão: quando muito, houve um deslocamento positivo para os desafios que a Igreja está vivendo. Se esses desafios são aceitos de fato, nos damos conta de que não basta simplesmente repetir a verdade. É preciso esclarecer como a realidade de hoje nos leva a anunciar o Evangelho: os modos, a linguagem, a atitude... A resistência tem, no fundo, um medo doutrinário que, porém, no fim, arrisca produzir a imagem de uma fortaleza assediada. É uma resposta defensiva, mais do que de abertura. Desse ponto de vista, o Sínodo foi quase um Concílio. Seja por essa liberdade de expressão, seja porque, no fundo, falando da família e dos seus problemas, emergiram justamente visões e modelos de Igreja.

O senhor usou também a imagem do farol e da tocha, dos quais falou no Meeting de Rímini.
Justamente. A tocha dá a ideia de uma Igreja que sabe carregar a luz lá onde estão os homens. O farol faz luz, diz onde está o porto, mas não pode se mover. Se a humanidade, por muitas razões, se afasta, o farol não é capaz de alcançá-la. Sei que essa imagem criou problema para certas pessoas. Chegaram a mim muitas críticas e perguntas. Mas é interessante. Porque demonstra que o modelo de Igreja expresso no Concílio, por exemplo na Gaudium et spes, não foi ainda globalmente recebido. Permanece a imagem da Dei Filius, do Vaticano I: um estandarte com alicerce muito sólido.

Mas a clássica polarização “conservadores / progressistas”, recuperada pela mídia, expressa o que realmente aconteceu?
Diria que não. O que apareceu com evidência, quando muito, foi a diferença entre os que têm um coração de pastor, que se confronta com a vida do povo, e os que estão mais ligados às ideias, à formulação. Não necessariamente formando dois blocos. A diferença, aí, está na atitude do pastor, não tanto no fato de ser conservador ou progressista.

Num dos seus livros, Dom Giussani enfatiza um aspecto: a Igreja, sendo uma realidade viva, toma consciência de si na história, vivendo. Justamente como uma pessoa. Por isso, “não está isenta do esforço e do trabalho de uma busca evolutiva”. Não lhe parece que no Sínodo, no fundo, emergiu justamente isso?
Um dos padres sinodais usou também palavras semelhantes. Disse mais ou menos o seguinte: a nossa função é guardar a doutrina da fé e o patrimônio recebido, mas a pergunta é se de fato nós já entendemos tudo... O próprio Papa, quando cita São Vicente de Lérins na entrevista à Civiltà Cattolica (“até o dogma da religião cristã precisa seguir essas leis. Progride, consolidando-se através dos anos, desenvolvendo-se com o tempo, aprofundando-se com a idade”), me parece que insiste justamente sobre esse ponto. É uma dimensão que faz parte da vida eclesial. Como Cristo, a Igreja vive a lógica da Encarnação. E, portanto, compreende melhor a si própria ao viajar pela história.

Se não fosse assim, ela de certo modo seria privada da sua humanidade.
Se se pensa em evangelizar sem dialogar com a humanidade do homem, dentro e fora da Igreja, corre-se o risco de transformar o Evangelho numa ideologia. Veja, a dimensão conciliar que emergiu no Sínodo, no fundo, refere-se ao grande tema da relação entre a Igreja e o mundo, a história. O ponto é que, se Deus age por toda parte no mundo, o olhar que a Igreja é chamada a ter é positivo, é o olhar de quem sabe captar também as sementes dessa Presença. Presença que não é sempre plena, total: muitas vezes se manifesta gradualmente. Mas só um olhar aberto permite captá-la lá onde ela acontece, e, portanto, dialogar com todos os homens. Sobre isso discutimos bastante.

São temas já presentes com clareza na Evangelii Gaudium, o “documento programático” de Francisco. Pelo que o senhor o conhece e viu nestes dias, pensa que o Papa ficou contente com este Sínodo?
O Papa não tem uma ideia preconcebida e está muito atento ao que está acontecendo. Eu o vi muito sereno. Não é verdade o que escreveram alguns jornais, falando de um Pontífice tenso, preocupado. Ele vive essa dinâmica colhendo tudo o que há de positivo, mas vendo também as tentações, que explicitou no discurso final. Creio que ele está satisfeito, porque o percurso sinodal foi vivido plenamente. Mas é um percurso que apenas se iniciou...

Mas este Sínodo pode mudar alguma coisa no modo como o mundo e os fiéis o olham?
O Papa é, de fato, um líder mundial. Fiquei muito impressionado com a expressão de Omar Abboud, um seu amigo muçulmano que o acompanhou ao Oriente Médio. Ele refletia sobre o fato de que hoje o mundo tem necessidade de um líder global, com uma influência moral positiva sobre as pessoas. E essa pessoa a gente não vê por aí, no momento, a não ser Francisco. Ele disse isso como islamita. Francisco é uma figura com a qual o mundo se confronta, percebendo a sua autoridade moral. Mas não se trata de uma questão de imagem. E, no fundo, isso também não se relaciona tanto com o Papa, mas com a Igreja.

Por quê?
Em seus discursos sinodais, o Papa, de certo modo, reinterpretou a si mesmo. Fez referência ao ministério petrino pelo menos duas ou três vezes, confirmando a autoridade de Pedro, dizendo que é ele quem garante a estrada, mas num contexto em que legitimava totalmente a liberdade de expressão. Ele se concebe como a pedra, mas não no sentido de barreira, de obstáculo: é a rocha segura, o fundamento certo que permite às pessoas falar livremente. Porque, de qualquer modo, é ele quem garante a adesão à verdade do Evangelho. Baseia a liberdade de expressão dentro da Igreja no fato de que é ele quem tem a autoridade para garantir a ortodoxia da fé.

Em suma, o oposto da rendição que alguns atribuem a ele...
Exato. E o faz também para evitar que outros se autoproclamem ou se acreditem, sozinhos, como garantidores da doutrina.

Porém, alguns dos temas que mais o preocupam talvez tenham apa¬recido pouco na sala. A ênfase sobre o testemunho, por exemplo. Ou a prioridade do kerygma, do anúncio, sobre as consequências éticas. Parece que se falou mais de ética do que do antes.
Vamos esclarecer. Antes de tudo, o tema do Sínodo eram “os desafios pastorais”. O objetivo não era consolidar a família tal como ela deve ser. Não era o anúncio do kerygma da família, que será desenvolvido no Sínodo ordinário. A assembleia tinha uma função específica: evidenciar os desafios pastorais que a Igreja vive hoje. Não precisamos sentir-nos obrigados, todas as vezes, a repetir tudo, partindo de Adão e Eva: aqui deviam emergir os desafios. E os desafios emergiram. E, depois, dizer que não se falou do Evangelho da família é verdade apenas parcial, porque muitos acenos aconteceram.

Por que não foram publicados também os textos dos discursos? Foi algo estranho.
Veja, no início eu pensava que se tratava de uma decisão negativa. Depois mudei de ideia. Porque levou a consequências positivas. Antes de tudo, deu-se espaço à dinâmica do Sínodo, que é o conjunto do que aconteceu lá e não a soma de cada um dos discursos. Depois, os padres se sentiram livres para mudar o texto até o último momento. E uma certa discrição ajudava, pelo menos até que os debates se concluíssem. Em suma, favoreceu-se a discussão interna e, ao mesmo tempo, permitiu-se que os padres pudessem falar fora, com entrevistas, blogs e assim por diante.

Com o resultado, porém, de que se discutiu muito fora, em certos casos dando a impressão de uma divisão bem marcada...
Sim, os riscos existiram. Mas, ao invés de permitir aos jornalistas o exercício de equilibrismo a respeito desta ou daquela palavra lida na síntese de um discurso, nós os estimulamos a fazer perguntas, explicar, contextualizar. No fim, fazendo um balanço dos prós e contras, foi uma dinâmica virtuosa.

Mas todo esse debate fora da sala influiu sobre o que acontecia dentro?
Eu diria que não. O debate dentro foi sereno. Nunca se polarizou em torno de pessoas individuais. Obviamente a mídia não é neutra, mas o Sínodo refletiu sobre o que aconteceu. Alguns se inquietaram, outros ficaram positivamente maravilhados. Mas não houve um sínodo da mídia e outro real. Houve apenas um, que prossegue.

Antonio Spadaro, padre jesuíta italiano, é diretor da revista La Civiltà Cattolica, editada pela Companhia de Jesus na Itália, e professor do Centro Interdisciplinar de Comunicação Social (CICS) da Pontifícia Universidade Gregoriana. Em 2013, fez uma longa e profunda entrevista ao Papa Francisco, tornando-se um dos mais reconhecidos especialistas no pensamento do Papa atual. No Meeting de Rímini de 2014, num diálogo com Alberto Savorana, porta-voz de Comunhão e Libertação, apresentou o pensamento de Francisco e sua experiência de convivência com o Papa na sessão intitulada “A verdade é um encontro”.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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