Nas crateras geladas de um corpo celeste a 500 milhões de quilômetros da Terra, estão congelados os primeiros instantes do Sistema solar. ANDRÉ ACCOMAZZO, responsável por todas as operações interplanetárias da Agência Espacial Europeia, fala sobre seus dezoito anos de trabalho para chegar lá em cima. E explorar, pela primeira vez na história, o núcleo de um cometa
Sua mulher ficou com ciúmes quando encontrou um folheto escrito “Rosetta” e um número de telefone alemão. E, para ele, foi difícil convencê-la de que se tratava de uma missão interplanetária para levar a humanidade até um cometa a cinquenta milhões de quilômetros de seu quintal. Quando fala com Passos, de sua casa em Darmstadt, Alemanha, André Accomazzo está gripado. “É a diminuição da tensão”, ri, depois de dezoito anos de trabalho com “a respiração suspensa” até àquele minuto (às 12h03 do horário de Brasília, do dia 11 de novembro de 2014), quando o mundo viu Philae, um pequeno robô branco aterrissar sobre uma “estrela” que se desloca em direção ao sol.
Rosetta é um dos mais importantes e arriscados empreendimentos jamais tentados na exploração espacial. O italiano André, nascido em 1970, em Val d’Ossola, no meio dos Alpes, é o responsável por toda a operação realizada pela Agência Espacial Europeia. Neste trabalho perseguiu o cometa 67/P Churyumov-Gerasimenlo porque deveria esconder entre os seus abismos gelados o segredo do universo, assim como era 4,6 bilhões de anos atrás: os instantes iniciais da formação do Sistema solar quando, a partir de nuvens de pó e gás, se desenvolveram os planetas e outros corpos celestes, como os cometas. Se a pedra de Rosetta permitiu decifrar os hieróglifos, os arqueólogos do espaço querem escavar a profundidade do cosmo e da própria eterna pergunta: por que a Terra se formou? Por que há vida sobre a Terra?
Philae é o módulo que Rosetta carregou no ventre durante dez anos e que se acometou. Uma palavra que antes não existia, porque todas as outras explorações de cometas tinham se aproximado apenas centenas de quilômetros, durante horas, quando não minutos, sem parar: essa é a primeira aterrissagem sobre o núcleo de um cometa. Rosetta viajou por mais de seis bilhões de quilômetros para alcançar a mesma velocidade do 67/P e há alguns meses está orbitando a 30 quilômetros de distância, com o objetivo de ficar lá por mais um ano. Foi lançada no dia 2 de março de 2004, mas André começou a trabalhar na missão oito anos antes. Já quando trabalhava em uma empresa perto de Roma, a BPD Defesa e Espaço (tendo, depois, se tornado a Fiat Avio), ocupava-se de um subsistema de Philae. Desde 1999 está no Centro de Controle da ESA, na Alemanha. Queria ser piloto militar. Depois do ensino médio, estudou dois anos numa Academia da Aeronáutica, “mas não era o meu lugar”, e preferiu inscrever-se em Engenharia Aeroespacial no Politécnico de Milão. Hoje, o piloto faz aquilo que não poderia imaginar, guiando sondas que viajam a centenas de milhões de quilômetros da terra e a sessenta mil quilômetros por hora. “São efetuadas manobras com uma precisão de uma fração de milímetro por segundo”. Fala sobre isso com a simplicidade de quem aperta um parafuso. “A vertigem que se experimenta diante dessas distâncias e dessas velocidades, para nós, é familiar. A respiração suspensa, não. Eu ainda a tenho, agora. Carrego para sempre”.
O que significou trabalhar durante vinte anos em algo tão distante no tempo, sem poder ver o êxito?
O risco é que a espera se torne frustrante ou que prevaleça a sensação de não ser capaz. Se você não está motivado, é difícil. Quando comecei, a missão parecia-me algo muito distante. E era. Mas, com o tempo, apaixonei- me de tal forma que nunca pensei em parar. Eu e meu chefe, Paolo Ferri, sempre nos perguntamos: como poderíamos manter viva a experiência, o conhecimento e a motivação durante tantos anos? O primeiro pensamento é que a solução seria a troca de pessoal. Eu acompanharia a operação até a hibernação de 2011 e, depois, seria substituído. Mas, depois, por decisão compartilhada, fiquei.
E como a motivação se manteve viva?
É a própria missão que oferece as ocasiões. Acontecem tantas coisas, que acabamos nos apaixonando outra vez. O trabalho contribui para manter o entusiasmo. Há um objetivo ou um problema e, junto com a equipe, você tenta responder. Por exemplo, precisamos usar o efeito estilingue dos planetas para lançar a sonda cada vez mais longe, uma manobra que é realizada em pouquíssimas operações. Ou, passamos duas vezes por asteroides e aproveitamos para fazer observações.
Durante a hibernação, não houve mais contato com a Rosetta durante três anos. Como foi esperar o “despertar”?
Foi um dos períodos de trabalho mais intensos. Preparamos detalhadamente tudo o que aconteceu naquele ano, um plano operativo que respondesse às reivindicações dos cientistas, que fosse factível, robusto e de longo prazo. Ainda naquele período, muitas coisas mudaram em nossa equipe: um de nós participou do lançamento de um satélite, outra colega teve dois filhos e eu e minha esposa adotamos um menino da Tailândia. Havia anos que esperávamos por ele e nos ligaram dois dias depois da hibernação. Naqueles três anos, o computador principal de Rosetta permaneceu ativo e, a cada quinze minutos, verificava as resistências elétricas para mantê-las na temperatura certa. Mas nós não tínhamos contato. Quando seu relógio interno deu o sinal, começou o processo de descongelamento: a última atividade foi o sinal de rádio, que chegou a nós.
Neste momento Philae está desligado?
A bateria de Philae descarregou três dias depois, como previsto. Para continuar as operações há painéis solares, mas na aterrissagem não se ancorou e ricocheteou, acabando na parte mais distante do sol. É como mergulhar no Polo Norte no inverno, por isso, agora, sua parte eletrônica está desligada, porque a temperatura sobre o cometa é de menos 70 graus. Quando for iluminado novamente, se não tiver sofrido danos permanentes, se reativará.
Vocês estudam as reivindicações dos cientistas e pensam em como poder recolher os dados que eles buscam.
Sim, trabalhamos a serviço dos cientistas: precisamos levá-los aonde querem chegar. O que eu gosto, é ter que pensar em como colocar em prática um plano de ação para poder fazer manobras tão complexas. Para chegar a comandar a sonda em voo são necessários anos de trabalho: análises técnicas, conceitos, estudo das trajetórias... A última fase, para a qual nos preparamos muito, é a gestão dos problemas. É preciso pensar em um processo de decisões bem definido e treinar as pessoas.
Não é possível controlar tudo.
Depender de coisas que não dependem de nós é um desafio para melhorar ainda mais a nossa resposta, experimentando, fazendo testes, imaginando as situações mais imprevisíveis. Sempre disponíveis a mudar o nosso plano. Nosso trabalho é, em grande parte, fazer planejamentos no papel, mas o que pode acontecer é imponderável. Por isso, mesmo que se tenha calculado tudo, a emoção e a surpresa no momento da aterrissagem são muito fortes. Eu chorei muito.
O que pensou naquele momento? E no dia seguinte?
O momento da aterrissagem foi estranho. Sob alguns aspectos, foi uma libertação. Mas o dia seguinte foi ainda mais bonito. Depois de ter deixado Philae na noite, às cinco e meia voltei para o Centro de Controle. Estávamos apenas em cinco, não havia mais os repórteres do mundo inteiro. De repente, na tela, aparece: bip, bip, bip, bip, bip... Aquela foi a emoção maior. Depois de 12 horas de silêncio, aquela sonda que tinha passado a noite em alguma parte do cometa, estava viva. E começou a nos enviar sinais.
Houve momentos de desânimo nestes anos?
A comunidade que está por trás de nós é grande: quando fazemos as reuniões de Rosetta com todos os pesquisadores e os cientistas há uma centena de pessoas. Reunir todas as exigências foi a missão técnica mais difícil e também a mais bonita. Ali, não há mais a segurança do cálculo matemático. O aspecto humano pede para cooperar com um compromisso, um caminho que talvez não seja o ideal para ninguém é o bem para todos. Os momentos em que me desesperei, foi apenas por isso, não por causa das operações técnicas. Por exemplo, o processo de seleção do lugar de aterrissagem para Philae foi uma experiência fantástica, mas consumiu as minhas energias... Na entrevista coletiva na Sede Central da ESA, em Paris, quando tornei público o local da aterrissagem, disse: ”Depois de anos de trabalho, projeções e batalhas, agora realmente chegou o momento de fazê-lo”.
O trabalho de pesquisa científica é paradigmático da importância de uma comunidade.
Não é possível prescindir da comunidade. Mesmo nestes dias, é surpreendente o que está se verificando: nós não sabemos exatamente onde Philae está na superfície do cometa, sabemos a região, mas não o ponto exato, e desde que aterrissou, todas as equipes compartilham as informações para nos ajudarmos a entender onde está. É um esforço coletivo não óbvio: os cientistas são ciumentos dos próprios dados, porque deverão ser o ponto central das suas publicações, mas os colocam à disposição de todos.
O que descobriu sobre si, nessa missão?
Quando você se coloca à prova, descobre muitas coisas sobre si que não imaginava, que não sabe dizer. Eu, por exemplo, sou alguém que por natureza tenderia a trabalhar sozinho, também na Universidade eu era assim. Porém, não se pode chegar a parte alguma sozinho e isso me entusiasmou. Aqui, no período de dois anos passei do dirigir a mim mesmo a dirigir uma equipe. Depois da aterrissagem, disse aos meus amigos que a experiência mais forte foi o trabalho em conjunto.
A missão Rosetta dá a todos nós a maravilha pelo mundo e pela grandeza do homem. Diante da descida à lua, Paulo VI disse: “Dominado pelo cosmo como um ponto imperceptível, o homem, com o pensamento, o domina. E quem é o homem? Quem somos nós, capazes de tanto? Faremos bem meditando sobre o progresso. Hoje, o desenvolvimento científico e operativo da humanidade atingiu uma meta que parecia inalcançável: onde o pensamento e a ação do homem ainda poderão chegar? Mas, da possível idolatria do instrumento, devemos olhar para nós. É verdade que o instrumento multiplica a eficiência do homem além de qualquer limite; mas essa eficiência está sempre a seu favor? Torna-o melhor? Mais homem? Tudo ainda depende do coração do homem”. O que lhe dizem estas palavras?
Muitas pessoas nos perguntam e fazem críticas sobre os custos de uma missão. Rosetta custou um bilhão de Euros em quase vinte anos e todo esse dinheiro seguramente poderia ser usado para outra coisa. Mas eu acredito que não é possível parar: o homem se encontra onde está hoje pelo desejo de querer se lançar sempre mais além. Não sei se o homem precisará abandonar a Terra para sobreviver, mas sei que essa busca é um comando que temos dentro de nós e devemos segui-lo. Não seríamos quem somos se não escutássemos este impulso, se o tivéssemos reprimido. Seria a negação de nós mesmos. Mas estou totalmente de acordo que a tecnologia seja usada com muita atenção. Não é o desejo do homem, a sua vontade de saber que são perigosos, é a sua fraqueza, que o leva a usar mal o próprio engenho. Fazer grandes projetos, como uma missão aeroespacial, requer dedicação, sacrifício, disciplina. A mesma coisa vale diante das nossas fraquezas.
O que o espera agora?
Há dezoito meses sou Diretor da Space Operation da ESA, ou seja, sou responsável por todas as operações das missões interplanetárias. Além de Rosetta, estou me ocupando de todas as outras já em curso: Vilnus Express, Marcel Express e Cluster. Mais todas as novas missões a serem enviadas ao espaço: a Marte, com Exomars, em 2016; Bepi Colombo, para andar sobre Mercúrio entre 2016 e 2017; Solar Orbiter para orbitar o sol, que deverá terminar em 2017-2018. E, ainda, Jus, para ir a Júpiter, que deve ser lançada em 2022 para chegar lá em 2030-2032.
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