Ela vive em estado vegetativo há 17 anos. No entanto, não para de gerar humanidade. Porque ao redor do leito desta jovem, nos arredores de Milão, existe um grupo de amigas que continua a lhe fazer companhia ao lado da família. E a aprender com ela sobre o valor da existência
“Silvia, mudei o vaso de ciclâmen de lugar.” “Por que, Anna?” “Enrica não consegue vê-lo.” Enquanto conversam, Angelo acaricia o rosto de Enrica. “Daniela vem hoje, acabou de chegar de uma viagem de trabalho”, diz a ela. Enrica, há 17 anos, está em estado vegetativo permanente. Tinha 32 anos, um filho de dois anos e meio, casada com Giovanni, dava aulas de inglês em uma escola de ensino médio de sua cidade, Concorezzo, nos arredores de Milão, quando um aneurisma cerebral a reduziu a esta condição. A mesma de Eluana Englaro, de 37 anos, em coma desde janeiro de 1992 devido a um acidente automobilístico, para quem no dia 13 de novembro último, o Supremo Tribunal da Itália autorizou aos médicos desligarem os sistemas de alimentação e hidratação assistidas que a mantinham viva. “Uma não vida”, alguém disse. E, no entanto, em volta do leito de Enrica o Mistério da vida que faz todas as coisas tornou-se poderosamente visível, através de um gesto de caridade, reflexo de um amor maior.
De fato, há 17 anos, Enrica nunca fica sozinha. Junto com Anna e Angelo, seus pais, e do marido, mais de trinta mulheres se revezam para estar com ela todos os dias na clínica onde está internada. Algumas são suas amigas desde antes da doença: compartilhavam a experiência do Movimento. Outras não a conheciam. Mas a caridade sempre ultrapassa qualquer previsão nossa e, assim, na paróquia, algumas senhoras se ofereceram para estar com ela.
Enrica tem o ritmo da vigília e do sono, respira autonomamente, não está ligada a nenhuma máquina. “Pelo seu olhar, percebe-se quando sofre. Uma vez, chorou. Estes doentes precisam apenas de assistência e de serem ajudados a se alimentar”, explica Giovanni.
Normalmente, as “amigas” de Enrica vêm em dupla e passam meio dia com ela. Se ela tosse ou tem dificuldade para respirar, elas a ajudam, falam com ela quando está acordada. Cada instante é cheio de atenção e cuidado. “Porque ela existe. É uma presença. Quando ela adormece, conversamos entre nós, mas nenhuma conversa pode ser banal. Durante esses anos, este gesto como que se purificou. No início, preocupava-me em fazer algo concreto. Fazia-lhe massagem, falava com ela, havia a possibilidade de alimentá-la através de uma seringa”, conta Camilla. Depois, a situação de Enrica mudou e não foi mais possível fazer quase nada, a não ser alguns gestos simples. “A tentação de que, de algum modo, algo dependesse de mim foi afastada. Sentada ao lado da cama de Enrica, percebi que realmente há um Mistério bom, a que é preciso apenas obedecer, senão vem o desespero. Até o meu relacionamento com Marina, com quem divido minhas horas no hospital, mudou, purificou-se. Enrica é uma contínua provocação.” Serena diz: “Preciso vir aqui. A fidelidade a este gesto obrigou-me a uma seriedade no trabalho, no relacionamento com meus filhos e meu marido, que nunca vieram aqui. Mas que, uma vez por mês, se organizam porque ‘a mamãe precisa ir visitar Enrica’.” Só uma presença provoca.
Todas elas têm família, trabalho, preocupações como todos. “Às vezes, chego cansada, com mil preocupações. Depois, varro o chão do quarto, sento-me e fico ali, diante dela, do Mistério que se faz fisicamente presente. Nessas horas, entendo que a realidade é maior do que eu, do que todos os meus pensamentos. Permanecem as preocupações, as situações a serem resolvidas, mas o horizonte é outro. O significado é um Outro. Isso permitiu pedir, em todos esses anos, um milagre. De podermos cantar outra vez no coro, como fazíamos antes daquele 16 de abril de 1991, quando ela adoeceu”, conta Daniela.
GESTOS DISCRETOS. Para Nanda, Enrica já fez os milagres: “A nossa companhia, que nos abraça”. “Eu sempre digo que, se não viesse aqui, seria ainda mais ‘desordenada’ do que sou. Até cheguei a lhe dizer: ‘Enrica, me ajuda’.”. Um gesto simples, discreto, que ligou essas mulheres em um vínculo mais forte do que a amizade e tornou-se um sinal para toda a cidade, como disse recentemente o pároco, padre Enrico, durante uma homilia: “Só o amor de Cristo permite estar de maneira adequada diante desses fatos. Olhemos para estes sinais que o Senhor nos dá”.
Em 17 anos, Enrica gerou uma série de relacionamentos inesperados. Como a senhora de setenta anos da paróquia, que nunca falta ao seu turno, e dizia a quem a cumprimentava pelo “belo” gesto: “Mas eu faço isso porque é bom para mim”. Ou, a colega de Sílvia, que não frequenta a igreja, mas que nunca deixou de visitar Enrica. Silvia, casada, com filhos, foi praticamente adotada por Anna e Angelo. Ela se preocupa com os turnos; se precisam de alguma coisa, a chamam. “São pais exigentes. O pai é o único que consegue acalmá-la quando está agitada, é o último a ir embora à noite, quando tem certeza de que já está dormindo. Com as duas mãos grandes a acode com devoção e delicadeza. Não lhes escapa um particular.” “Antes da chegada deles, procuramos deixar tudo organizado, tanto, que uma vez eu disse: ‘Enrica, eles chegaram, não faça a gente passar vergonha!’.”, brinca Marina. Mas a senhora Anna sempre alisa uma dobra do lençol ou arruma uma mecha de cabelo que está fora do lugar.
NO SEU QUARTO. Quando saiu o panfleto de CL sobre o caso Eluana, alguns se encontraram com seus pais num domingo, e o leram para eles. “Para nós, aquele juízo tão claro foi como a realização dessa história, foi o que nos sustentou”, conta Marina. Poucas semanas antes, Giovanni estava na casa dos sogros, e na televisão passava uma reportagem sobre Eluana. “Conversamos sobre o assunto. E eles não entendiam onde estava o problema. ‘Eles se perguntam se é justo ou não continuar? Mas ela existe’, disse-me Angelo. Eu entendo o pai de Eluana, a pergunta que tem no coração: se eu faltar, quem cuidará dela? Nós também passamos por muitos momentos difíceis, inclusive de desespero. Mas havia essa companhia que nos abraçava. Onde alguém fraquejava, o outro seguia em frente.”
É a obediência concreta ao Mistério, que carrega também a revolta por uma situação que parece injusta. Patrizia explica: “Mais de uma vez, entrei em seu quarto pensando: ‘Mas por que, Jesus, esta prova? Não seria melhor se tivesse morrido logo?’ A dor teria sido grande, mas... Mais uma vez, queria ‘organizar’ a realidade. Mas Enrica está ali, até os cabelos de sua cabeça são desejados, amados, a sua presença não é um acréscimo espiritual para quem tem fé”. É preciso apenas ter olhos e coração simples para ver. Na porta do quarto, Giovanni fala ao celular: “Giacomo, estou com a mamãe. Espero você”. Antes do Natal, as condições de Enrica se agravaram, aquele fio que a liga à vida tornou-se mais fino. Inclusive, poderá já ter-se rompido quando estiverem lendo estas linhas. “Decidimos, com os médicos, não fazer tratamentos invasivos”, explica Giovanni: “Nenhuma agressão terapêutica. Continuamos a cuidar dela, a amá-la e a deixar-nos amar por este Mistério tão potente”. Para por um instante. “Eu a amo mais do que quando me casei com ela.” Este é o desígnio bom que o Senhor tece para a nossa vida.
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