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Passos N.168, Abril 2015

CULTURA

Na obediência, a realização suprema de si

por Raul Cesar Gouveia Fernandes

Partindo de um episódio verídico, o livro de Georges Bernanos descreve a frágil vida de religiosas que, na renúncia, medo e sacrifícios, respondem livremente seu sim ao Senhor

Em 17 de julho de 1794, no auge do período do Terror que se seguiu à Revolução Francesa, 16 carmelitas foram gilhotinadas na Praça da Nação, em Paris, após julgamento sumário que as condenou por fanatismo e traição. Grande público acompanhou a execução, e são conhecidos vários relatos da forte impressão que a serenidade das irmãs causou sobre os presentes. Elas renovaram seus votos em plena praça e se dirigiram ao patíbulo, uma a uma, entoando o Te Deum e o Veni Creator.
O martírio das religiosas do convento de Compiègne é o tema de Diálogos das Carmelitas, último livro do grande romancista francês Georges Bernanos, morto em 1948. Originalmente concebida como roteiro cinematográfico, a obra é baseada no romance A Última ao Cadafalso, publicado em 1931, por Gertrud von Le Fort. Embora trate de acontecimento verídico, Diálogos das Carmelitas não pretende reproduzir fielmente os fatos ocorridos; tanto é assim que, ao lado de personagens históricas (tais como Irmã Constância e Madre Maria da Encarnação), a verdadeira protagonista da obra é uma figura fictícia, Branca de la Force, criada por Gertrud von Le Fort e aproveitada na adaptação de Bernanos.
Desde o nascimento, marcado por acontecimentos trágicos e violentos, Branca ostenta como principal característica a insegurança. Por isso, sua decisão de entrar no Carmelo foi questionada pela família: estaria ela seguindo autêntica vocação ou apenas procurando um abrigo para escapar ao temor quase doentio que o mundo lhe inspirava? Consciente de sua fraqueza, a jovem responde ao Marquês de la Force, seu pai: “Há vários tipos de coragem, é o que penso agora. Uma certamente é a de enfrentar os mosquetes. Há outra, a de sacrificar as vantagens de uma posição invejável para viver entre companheiras e sob a autoridade de superiores com nascimento e educação muitas vezes inferiores aos nossos”.
Com efeito, a jovem acreditava que seu desafio seria somente o de renunciar ao conforto de uma vida calma no castelo da família. À medida que a perseguição religiosa recrudescia e a perspectiva do martírio se avizinhava, ficou claro que o outro tipo de bravura a que Branca se referiu (enfrentar os mosquetes e a morte) era algo que estava acima de suas forças. E assim, a receosa Branca – que ao entrar no Carmelo havia acertadamente adotado o nome de Irmã da Agonia de Cristo – atravessaria também sua noite de angústia e sofrimento, semelhante àquela do Monte das Oliveiras, em que o próprio Cristo pediu ao Pai que afastasse de si o cálice do qual havia de beber.

Caminho da santidade. Concentrando a atenção sobre personagem frágil e hesitante, Bernanos demonstra que a santidade não é algo reservado a personalidades excepcionais, dotadas de energia ou força incomuns – o que fica ainda mais claro ao lembrarmos que, afinal, poucos são os chamados a testemunhar a fé de modo tão radical, enfrentando a guilhotina. Sinal disso é o destino de Madre Maria da Encarnação: a religiosa mais enérgica do convento, que chegava ao ponto de quase desejar o martírio, foi justamente a única sobrevivente da comunidade, ainda que por causas fortuitas e alheias à sua vontade. Ao receber a notícia da condenação de suas irmãs, percebe-se que, para ela, ter sido poupada representava, ironicamente, sacrifício ainda maior que a morte.
Bernanos retrata, portanto, o caminho da santidade como o aprendizado de que a realização da vida consiste na resposta livre a uma tarefa que nos é confiada de acordo com as circunstâncias em que vivemos. Para trilhar esta senda, não há precondições: bastam a simplicidade de coração, como a de Irmã Constância, e a graça, aquele “tipo de coragem que Deus dispensa a cada dia, como que gota a gota”, de acordo com as palavras da Priora do convento.
Eis aqui, em suma, o grande paradoxo para o qual o livro aponta: aderir à vontade de um “Outro” não significa necessariamente anular a própria personalidade, mas pode ser a via para a realização suprema de si mesmo. É esclarecedora, neste sentido, a magnífica descrição do conceito de obediência que uma das irmãs faz às vésperas da execução. Longe de resultar numa atitude conformista, a percepção da dependência do “eu” é condição para o verdadeiro protagonismo da vida, diz a Irmã Clara em uma das últimas cenas da obra. Escutemo-la: “Obedecer não é se deixar conduzir passivamente, como um cego que segue seu cão. Uma velha religiosa como eu não deseja mais do que morrer na obediência, mas numa obediência ativa e consciente. Não temos nada neste mundo. É evidente. Mas não é menos verdade que nossa morte é nossa morte, que ninguém pode morrer no meu lugar”.
É o que demonstra com clareza o tortuoso percurso de Branca de la Force, que, não obstante sua fragilidade, descobre ser forte afinal – ou seja, torna-se finalmente capaz de afirmar seu “eu” e aderir à sua vocação com liberdade absoluta, sem temer as consequências de sua escolha.
Para concluir, vale notar que as carmelitas de Compiègne foram beatificadas em 1906 pelo Papa Pio X e após a publicação da obra de Gerturd von Le Fort, sua história ganhou grande repercussão nos meios artísticos. Antes mesmo do lançamento do filme, para o qual Bernanos escreveu o roteiro (rodado em 1960, sob a direção de Philippe Agostini e Raymond Leopold Burckberger), Diálogos das Carmelitas serviu de base para o libreto de uma peça musicada por Francis Poulenc, dando origem a uma das óperas mais influentes e aclamadas do século XX.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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