A Doutrina Social da Igreja coloca a pessoa como o ator principal na construção do bem comum. Sendo assim, o Estado não é concebido como fim em si mesmo, e coloca-se à serviço da sociedade
Se o atual momento da democracia brasileira, por um lado, dá sinais de uma séria crise política e econômica, por outro, paradoxalmente, até o presente momento, demonstra maturidade institucional. Isto porque, mesmo diante do maior escândalo de corrupção política da história do país, e quiçá do mundo, as instituições continuam funcionando, apesar das grandes tensões que convivem dentro do sistema, no qual fisiológicos e ideológicos parecem ter a palavra final.
Apesar de tudo, o povo continua trabalhando diariamente, desejando e construindo esta nação, na qual o “eu só quero ser feliz” é a palavra de ordem. No entanto, é isso que tem garantido a ordem social, embora este fato não seja percebido pela representação política, nem midiática, e muito menos constado como o maior recurso da democracia brasileira neste momento de tensão sem precedentes em sua recente história, que tem como marco a Constituição Federal de 1988.
Contudo não podemos conviver indefinidamente com uma situação como a atual, em que a palavra confusão parece ser a única que sintetiza os fatos e acontecimentos que diariamente nos apresentam os jornais e os meios de comunição. Sem percebermos, de fato, com o que podemos contar, como recurso primeiro para superação dessa crise, ganhar consciência dos fatores que nos podem auxiliar neste momento nos parece decisivo.
Neste contexto, emergem as perguntas: qual o ponto de partida para retomarmos a normalidade democrática? Qual é o recurso já presente que pode nos permitir refazer o tecido político e, consequentemente, a paz social tão necessária ao desenvolvimento pacífico da vida nacional?
O ordenamento constitucional brasileiro vigente constitui o Estado Democrático de Direito, e, desde o art. 1° da CF/88, informa: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição”. A constituição elege, como fundamento, a dignidade da pessoa humana (art. 1°, III) e como um dos seus objetivos, a construção da sociedade livre, justa e solidária (art. 3°, I). Esse objetivo está consolidado nos artigos 170 e ss., que pregam a valorização social do trabalho e a realização da justiça social. A saúde e a educação passam a integrar o complexo de direitos fundamentais do cidadão.
Por ocasião do discurso do Papa Francisco na audiência concedida ao Movimento Comunhão e Libertação, na Praça São Pedro, em 7 de março de 2015, o Papa fez uma citação de D. Giussani que pode ajudar na tentativa de resposta àquelas questões: “O cristianismo não se realiza na história como defesa de uma posição fixa que se relaciona com o novo como antítese , o cristianismo é um princípio de redenção que assume o novo, salvando-o”.
Neste sentido, a Doutrina Social da Igreja pode contribuir com esse novo momento histórico da democracia brasileira, repropondo critérios que podem ajudar na tentativa de resposta a ele.
A chave de leitura é a forma de relacionamento entre a Pessoa, a Sociedade e o Estado, como elementos integrados visando a uma finalidade: o bem comum. Este recurso é o que pode nos guiar nesse tempo de grande confusão.
O princípio da subsidiariedade supõe que a pessoa humana, por natureza, é um “ser social”: sua dignidade exige que esteja em relação com os outros seres humanos das mais variadas formas, desde a família até a participação social e política. A pessoa, ao associar-se com os outros, abre caminho para realizar-se mais em sua humanidade. O princípio da subsidiariedade evoca uma ideia filosófica e política de caráter transversal, que prescinde da pesquisa do melhor regime político (da alternativa entre democracia, monarquia, aristocracia), na medida em que coloca o problema de maneira diversa.
Colocando em segundo plano o problema do regime político, diante da crise que vive o estado democrático representativo, o princípio da subsidiariedade apresenta-se como uma efetiva garantia à democracia substancial e, consequentemente, como um meio para a efetivação dos direitos e garantias fundamentais. Esse princípio aponta não apenas para a liberdade individual, da pessoa frente ao Estado, mas, sobretudo, aponta para a liberdade da pessoa na sua dimensão social.
De fato, não se pode falar em liberdade individual sem a sua dimensão coletiva, que se exprime no direito de reunião e associação, dimensão reconhecida e assegurada pela constituição de 1988 (art. 5°, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXI, CF/88). O texto constitucional consagra explicitamente, como dimensão da liberdade da pessoa, o direito de associar-se e, consequentemente, reconhece a pessoa e a associação com competências próprias que lhes garantem participar com autoridade e poder na resolução de questões que lhes são pertinentes.
Aqui, já se pode vislumbrar de forma mais visível o conteúdo essencial do princípio jurídico da subsidiariedade, pois já está presente entre nós o recurso: o bem, do qual podemos partir para refazer a normalidade social e institucional.
O termo subsidiariedade deriva do latim subsidium que, na terminologia militar romana, indica o contingente de reserva que permanece atrás da tropa de combate direto, pronto a intervir em ajuda àqueles que combatem na linha de frente. O princípio repousa na constatação, que remonta ao filósofo grego Aristóteles, depois reelaborada por Santo Tomás de Aquino, segundo a qual o bem comum é resultado de uma pluralidade de colaborações em um contexto comunitário e solidário, no interior do qual a personalidade humana pode desenvolver-se segundo suas possibilidades.
Pessoa e sociedade. Conforme essa visão, a pessoa, ator principal na construção do bem comum, necessita do subsidium que é oferecido pelas diversas formações sociais (família, escola, associações), inclusive pelo Estado. Esse princípio opõe-se à concepção que vê no Estado a fonte ilimitada do Poder. Encontra- se na definição do Papa Pio XI, em sua encíclica Quadragesimus Annus, o desenvolvimento da sua formulação clássica e reconhecida universalmente: “Assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e trabalho para confiar à comunidade, do mesmo modo, passar para uma comunidade maior e mais elevada o que as comunidades menores e inferiores podem realizar é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e de sua ação é coadjuvar de maneira supletiva (subsidium afferre) os seus membros e não destruí-los nem absorvê-los” (Papa Pio XI citado por Maciel, 2004).
De acordo com a definição da encíclica, o princípio da subsidiariedade guarda a garantia da dignidade da pessoa humana, na medida em que busca ordenar e harmonizar a ocupação dos espaços público e privado. Traz como eixo organizador central, a noção da responsabilidade que, por sua vez, é um pré-requisito da ideia de subsidiariedade. Objetivamente, só se pode imaginar uma sociedade subsidiária a partir do vínculo solidário que permite às demandas sociais serem realizadas na ação conjunta dos indivíduos.
O conteúdo essencial do princípio jurídico da subsidiariedade está em que uma entidade superior não deve realizar os interesses da coletividade enquanto entidades menores puderem supri-los, por si mesmas, de maneira mais eficaz ( Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 2006).
O princípio visa a salvaguardar a execução das decisões e competências estatais em relação à proximidade da pessoa, não in abstrato, mas da pessoa in concreto, de sorte que a regra que deflui do princípio é a seguinte: o Estado intervém na sociedade apenas quando a pessoa ou as organizações não possuem formas eficazes para solucionar suas demandas.
Sem dúvida, um Estado democrático carece desse princípio, como garantia da liberdade (dignidade da pessoa) e da pluralidade. Em outras palavras, ao Estado não deve caber o que possa ser feito, em plenitude, pelo indivíduo ou por grupo menor. A primazia é da pessoa sobre o grupo intermédio, do grupo sobre a sociedade e da sociedade sobre o Estado, instituindo uma cadeia de responsabilidades subsidiárias, reconhecendo a pessoa e seu direito de atuar, prioritariamente, com os seus meios para a satisfação dos seus interesses. Entretanto, entes superiores serão responsáveis por aquilo que a pessoa ou os grupos sociais não puderem fazer. Essa regra, portanto, se repete de ente a ente, partindo sempre do inferior, daquele que está mais próximo concretamente da necessidade ou do problema, de modo que a prioridade na tentativa da resolução é sempre do ente menor e mais vizinho ao mesmo, até se chegar à órbita das entidades supraestatais, como a Organização das Nações Unidas, por exemplo.
O Estado não é concebido como fim em si mesmo, mas como em relação à pessoa e à sociedade, e a serviço do bem comum, tendo como função subsidiar, mas nunca substituir ou subestimar os elos da cadeia. O Estado deve devolver à sociedade civil, democraticamente, a competência para enfrentar questões do seu legítimo interesse. O critério que justifica a distribuição de competências entre os entes é a melhor capacitação de realização da tarefa específica por parte da entidade que deve, na prática, resolver o problema.
Este princípio, por outro lado, fomenta a liberdade da pessoa e a responsabilidade do cidadão, visando, de forma equilibrada, ao bem comum. Isto, de forma alguma, significa uma eliminação ideológica das funções do Estado ou a redução deste às funções mínimas, como quer o neoliberalismo. O que se quer é o equilíbrio entre o papel do Estado e o papel da pessoa: nem o intervencionismo estatal, nem a redução do Estado a funções mínimas. Na realidade, o que aponta o princípio é a ética de atuação do Estado frente a pessoas e aos corpos intermediários que nascem da associação entre pessoas (família, ONGs, empresas, associações, fundações, etc).
Com o Princípio da Subsidiariedade, busca-se preservar a liberdade de iniciativa da pessoa e dos grupos menores, no exercício jurídico de direitos e obrigações. Assim, viabiliza-se a distribuição de competências entre os diversos níveis de poder, inclusive estatais ou não. Em suma, a autoridade superior não deve suprir as necessidades das entidades inferiores, desde que estas sejam capazes de fazê-lo. Contudo, não sendo capazes de enfrentar o problema, cabe necessariamente ao maior assumir.
Trabalho silencioso. O dilema que o atual momento da política nacional nos impõe é o “governo de homens livres”. Assim, a pessoa torna-se central para a consolidação da democracia na medida em que a democracia real só pode ser garantida com a participação estável e consciente da sociedade ou pelo menos de grande parcela desta no processo político, não apenas como agente de controle e fiscalização, mas, sobretudo, como protagonista do cenário político. “Historicamente, a ausência de uma maior participação das pessoas no Brasil tem mostrado que a democracia de procedimentos não tem conseguido legitimar-se por seus próprios valores, pois, presentemente, o grau de contestação é alto e a participação das pessoas em atividades convencionais (pertencer a partidos, participar de comícios, discutir política, entre outros) é reduzida. O dilema enfrentado pelo país é de que os recursos econômicos para satisfazer as demandas materiais básicas são insuficientes, levando a um processo acelerado de desagregação da vida social. A história recente tem mostrado que sociedades nessas condições dificilmente promovem o estabelecimento de culturas políticas participativas – ao contrário, caracterizam- se pela ineficiência, corrupção ou regimes despóticos” (Baquero, 2003).
Neste contexto, é que surgem as questões: qual é o papel da pessoa e da sociedade na construção de uma democracia efetiva, não apenas de participação, mas, de protagonismo? Quem fará do país uma democracia efetiva: o próprio Estado ou a pessoa e os corpos intermediários? Este processo de democratização do país pode ocorrer através da interação entre pessoa, sociedade civil e Estado?
Nesta época de redefinição da função da Sociedade Civil frente ao Estado e do papel da pessoa, a presença da pessoa associada a obras e empresas torna-se um poderoso instrumento na implementação de uma democracia real. Na medida em que forças vitais do tecido social que estão fora do aparelho do Estado, ou entre a sociedade e o Estado, sejam catalisadas, não cooptadas, promover-se-á a construção do bem comum.
A pessoa, politicamente organizada e juridicamente estruturada em corpos intermédios, pode participar na construção das respostas às suas próprias necessidades, tornando-se um recurso novo em favor do bem comum, passando a ser um ator decisivo na promoção da democracia, configurando-se em um recurso imprescindível na defesa do interesse geral.
A democracia não é fruto da ação dos poderosos, muito menos pode vingar como fruto de decisões unilaterais do Poder. A solução da crise passa pela experiência da pessoa que constrói silenciosa e cotidianamente a vida social e política do país. A tomada de consciência deste recurso pode ser um primeiro passo para a saída da crise.
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